Enquanto Rosée e Plinio eram mui­to pequenos, Dª Lucilia deles nunca se separou, nem mesmo por oca­sião de viagens, raras então. Com o correr do tempo, as circunstâncias impuseram separa­ções mais longas ou menos, que tiveram como resultado o início de uma expressiva correspondência, da qual, felizmente, Dª Lucilia conservou inúmeros postais e cartas.

Traçadas com letra segura e elegante, quase desenhada, redigidas em despretensioso estilo, as missivas de Dª Lucilia exprimem um oceano de afeto por seus filhos, bem como as saudades que as ausências, mesmo quando não tão longas, faziam brotar em seu maternal coração.

Os primeiros escritos são dois cartões postais de 1919, enviados do Rio de Janeiro, onde Dª Lucilia esteve, pos­sivelmente em março, por ocasião dos funerais do célebre Conselheiro João Alfredo, tio de Dr. João Paulo:

Minha filhinha querida!

Recebi teu telegrama, portador de boas noticias tuas e de teu irmãozinho, o que muito me alegrou! Estou muito conten­te de ver que vocês estão tão bonzinhos e ajuizados… que Deus os abençoe e os faça muito felizes!

Penso a todo momento com muitas saudades em vocês, mas espero seguir depois de amanhã sem falta!  para abraçar os queridinhos de meu coração.

Abraça-te com imenso afecto, tua mamãe extremosa,

Lucilia

Meu filhinho querido!

Fiquei muito satisfeita ao receber teu telegrama! Deus permita que continuem a passar bem e desejo encontrá-los bem bonzinhos e alegres. Fui hoje mesmo procurar uns brinquedi­nhos para vocês… Tenho achado uma falta enorme em vo­cês, parece-me ouvir a cada instante suas vozes! Até quinta pela manhã, se Deus quiser.

Abraça-te com imenso afecto, tua mamãe extremosa,

Lucilia

Tal transbordamento de carinho não podia deixar insensíveis Rosée e Plinio que, como era natural, sentiam muito o estar longe de tão dedicada mãe. É o que nos mostra este bilhete, deixado por Plinio antes de uma rápida viagem:

Quando muito pequenos, Plinio e Rosée (ao lado) nunca se separavam de sua mãe extremosa. Sobrevindas as imperiosas separações…

… Dª Lucilia as atenuava, por meio de expressivas e carinhosas correspondências (acima e página anterior)

Quase adorada mãezinha

Já antes de sair senti tantas saudades que lhe deixo aqui 500.000 beijos. Esteja sossegada. Logo que chegar eu lhe telefonarei. Eu levei meu ca­pote. Eu volto amanhã durante o dia.

100.000.000.000.000.000 de beijos e abraços de

Pigeon

No meio de todos os cuidados para com seus filhos, Dª Lucilia entretanto não se olvidava de um velho amigo, que há muito não via, e que estivera exposto às agruras da Primeira Grande Guerra: seu cirurgião, Dr. Bier.

Preocupação com a sorte de Dr. Bier

Dizia alguém, com acerto, ser a gra­tidão a mais frágil das virtudes. Não porém em Dª Lucilia, que guardava profundo reconhecimento em re­la­ção a quem lhe proporcio­nasse algum be­ne­fício. Jamais se esquecia do bem recebido e pro­curava com generosidade retribuí-lo. O mero interesse pessoal nunca penetrou em sua nobre e grandiosa alma durante toda a sua longa existência. Até o mal que lhe fizessem, ela pagava com bondade ainda maior.

Dª Lucilia sempre se mostrou profundamente reconhecida para com o Dr. Bier (no destaque), famoso médico alemão que lhe salvara a vida em 1912. Por isso manifestou particular preocupação pela sorte de seu benfeitor durante os sangrentos combates da Primeira Guerra Mundial

Por isso mostrou-se sempre muito grata para com o mé­dico que lhe salvara a vida, o famoso Dr. Bier, mantendo com ele amável correspondência. Apesar de suas ocupa­ções como cirurgião de renome universal e médico pessoal do Kaiser, ele nunca deixava de responder às cartas de Dª Lucilia. Porém, sobreveio a guerra e as comunicações se tornaram difíceis, sobretudo depois do rompimento de relações entre o Brasil e a Alemanha. Dª Lucilia, não tendo mais notícias dele, externava em algumas conversas preocupação pela sorte de seu benfeitor. Embora a prestigio­sa função de Dr. Bier junto ao Kaiser Guilherme II tornas­se pouco provável sua participação pessoal nos combates, as vicissitudes de um conflito armado sempre trazem consigo surpresas, o mais das vezes trágicas.

Tão logo terminada a primeira conflagração mundial, Dª Lucilia voltou a lhe escrever, pedindo notícias dele e da família, e perguntando se precisavam de algo. Talvez por julgar um pouco excessivas tantas mostras de delicadeza, alguém amavelmente comentou:

— Lucilia, vejo que você faz isso por bondade, mas Dr. Bier nem se lembra mais da cirurgia que lhe fez…

Ela, motivada muito mais pelo amor de Deus do que por um natural e legítimo sentimento de gratidão, respondeu com toda a serenidade:

— Ele deve recordar-se de mim, porque ficamos bons amigos. Mas ainda que não se lembre, não importa, eu me lembro dele. E por isso lhe escrevo.

Transcorrido algum tempo, Dª Lucilia recebeu, com gran­de contentamento, amabilíssima carta do Dr. Bier, em fran­cês, na qual ele agradecia a atenção e contava haver ficado completamente surdo, pois um estampido de canhão lhe rompera os tímpanos. E acrescentava que, se ela qui­sesse ser gentil, lhe mandasse um pacotinho de café, produto ra­ro na Alemanha do pós-guerra.

Em sua ilimitada bondade, Dª Lucilia lhe enviou, não um pacotinho, mas uma saca inteira…

Dr. Bier, comovido, escreveu mais uma vez agradecendo. Sua morte, em 1949, causou tristeza a Dª Lucilia, que devotamente rezou em sufrágio de sua alma.

Se a difícil situação de um antigo médico dera a Dª Lucilia ocasião de poder manifestar sua imensa benevolência, quanto mais uma persistente moléstia de seu queridíssimo filho.

Doença interminável

Grande foi sua solicitude quando Plinio se viu atacado por uma dessas doenças comuns na infância, aliás não de todo isenta de riscos, a caxumba. Essa enfermidade foi especialmente penosa para ele, não tanto pela gravidade do mal, mas pelo demorado da convalescença, verdadeiro tormento para uma criança.

Objeto da incansável solicitude de sua mãe, o pequeno Plinio lhe retribuía com truculentas manifestações de afeto…

Plinio não sabia que a caxumba podia passar de uma parte para outra do organismo. Quando se julgava próximo da cura — pois os sintomas iam progressivamente di­minuindo — e começava já a fazer planos de brincar no jardim, para seu desconsolo tudo recomeçava, com o reapa­recer dos mesmos incômodos. Era então a hora dos sua­vi­zantes bálsamos da resignação que só Dª Lucilia sabia apli­car:

— Filhão, tenha paciência, isto passa, como já passou des­te lado da garganta.

Quando estava quase são da garganta, Plinio sentiu uma forte indisposição. Seu quarto era ao lado do de Dª Lucilia. Chamou-a:

— Mamãe, faz favor.

Ela veio, afável e sorridente, e ele explicou o que estava sentindo.

— Filhão — disse-lhe com voz meiga — a caxumba passou para o aparelho digestivo.

Ele de novo teve dificuldade em manter a paciência:

— Mas isto passa para onde mais? Para os olhos, para a língua?

— Não — respondeu ela — fique calmo. Agora é mesmo a última vez. Esteja consolado, vou arranjar um brinquedo para você. Tenha confiança!…

Esse “tenha confiança”, dito por ela, de fato comunicava ao filho uma doce serenidade de espírito que o tranqüi­lizava. E para retribuir tão imensa solicitude, Plinio não pou­pava suas manifestações de ternura…

Marcas de um agrado

Certa feita, no decurso de um almoço em casa de Dª Ga­briela, um participante notou que Dª Lucilia tinha no bra­ço esquerdo uma pequena mancha roxa, fruto evidente de contusão, mal disfarçada por uma pulseira de marfim com incrustação de bronze. Ao lhe perguntarem a causa do inu­sitado sinal, Dª Lucilia com doçura respondeu:

— Foi um agrado do Plinio.

Todos deram uma gargalhada, e ela também riu. Alguém lhe indagou então por que permitia da parte do filho tão truculenta prova de carinho. Ela respondeu:

— Recusar agrado de filho meu, nunca me acontecerá na vida. Desde que não seja o mal, Plinio pode fazer o que quiser.

Essa contínua benquerença de Dª Lucilia, nunca desmentida, levou-a, certa vez, a dispensar seu filho de um ti­po de atividade não condizente com as inclinações dele.

Aulas fracassadas

Quando Plinio entrou na adolescência, Dª Lucilia lhe deu mais liberdade de ação para que ele sentisse sobre si o peso da responsabilidade, mas não deixou de se preocupar com a saúde dele. Por isso lhe recomendou fazer exercício físico e aprender a nadar.

Mestra na escola de afeto e bondade, Dª Lucilia procurava outrossim o aprimoramento dos dotes naturais de seus filhos. Ao lado, Rosée e Plinio tocam a quatro mãos uma melodia no piano

Naquela época a natação não tinha os inconvenientes mo­rais de hoje, tudo se fazendo com recato nos trajes e a de­vida compostura.

Foi assim que, em um dos estabelecimentos balneários especializados e de alto padrão de São Paulo, Plinio passou a receber aulas numa piscina, alugada por Dª Lucilia só para ele. As professoras de ginástica e natação eram suecas. An­tes de entrar na água, procedia-se aos exercícios de aque­cimento. Plinio, pouco afeito a esforços desse gênero, ia repetindo, sem grande atenção, os movimentos que a enér­gica mestra fazia. Conformava-se com aquelas pequenas “torturas” apenas para agradar a sua mãe.

Depois passava para a piscina. Apesar de todo o empe­nho e insistência da instrutora, não havia forma de Pli­nio aprender sequer a boiar. Todas as tentativas acabavam em naufrágio, sem maiores conseqüências além de uns indesejados goles de água. Por fim a professora perdeu a paciência e lhe disse que a única solução seria jogá-lo numa piscina funda. Ele teria de sair de qualquer jeito do outro lado, aprendendo de uma vez por todas a nadar.

Quando ele voltou para casa, Dª Lucilia lhe perguntou como tinha sido a aula. Plinio explicou o ocorrido, certo de que sua mãe insistiria para que ele continuasse. E ele não se­ria capaz de lhe recusar um pedido. Po­rém, as impo­si­ções não se coadunavam com o modo de ser ameno de Dª Lucilia. Vendo que seu filho não tinha pendor para a nata­ção, não quis obrigá-lo a retornar às aulas. Afinal, o que acabaria realmente mostrando-se eficaz para dar vigor à frágil saúde de Plinio ­seria sua maternal solicitude que, à força de carinho, haveria de transformar aquele fran­zino adolescente num robusto e saudável ­moço.

Lições de piano, de afeto e bondade

Dos bons costumes daqueles tempos, fa­zia parte ter em casa um piano. Dª Lucilia ti­nha gosto em tocá-lo e via com esperança a possibilidade de transmitir a sua filha essa arte.

Assim, contratou durante certo tempo um professor pa­ra dar aulas particulares de música a Rosée. Era o Prof. Wan­colle, uma das principais figuras do corpo docente do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. No decurso das aulas, a que Dª Lucilia assistia com freqüência e grande comprazimento, formou-se entre professor e aluna uma sincera amizade, da qual Rosée guardou, até o fim de sua vida, emocionada recordação.

Mais tarde quis Dª Lucilia que sua filha aprimorasse seus dotes musicais, matriculando-a no próprio conserva­tório. Rosée continuou a manifestar excepcional talento para a música, e se tornou, já no primeiro ano, uma das melhores alunas do egrégio estabelecimento.

Foram estes os únicos cursos que Rosée freqüentou, além da escola de afeto e bondade, na qual Dª Lucilia era a grande e inimitável mestra naquele abençoado lar…

(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)