O senso católico e um arcabouço de certezas se harmonizavam no espírito de Dr. Plinio

Continuamos hoje a publicação de uma conferência, iniciada no nú­mero anterior desta seção. Nela, Dr. Plinio expõe de modo informal seu método de formação das certezas no espírito humano.

Um atestado da excelência de tal método é a própria riqueza de observações, análises e explicitações presentes nas palestras, aulas, artigos, ensaios, conversas, reuniões de estudo, etc., de Dr. Plinio, estampadas em nossa revista ao longo dos últimos três anos.

Nos excertos transcritos em seguida, ele aponta falhas dos sistemas filosóficos nascidos no século XVII — cartesianismo e empirismo —, cuja nociva influência ainda perdura no mundo.

Para cartesianos e empiristas [seguidores da doutrina da ta­bula rasa, de John Locke], tu­do é explicável pela razão, e se houver algo para o que não se encontra uma explicação, esse algo deve ser rejeitado 1.

Há algum tempo atrás, li numa revista de história francesa, a crítica que um alemão fazia a esse método errado de raciocínio, adotado por certos histo­riógrafos. Com muito critério, ponde­rava ele o seguinte:

Um livro de his­tó­ria escrito por um cartesiano é uma ma­ravilha de clareza. O leitor entende tudo perfeitamente. Mas, afinal, essa capacidade de explicar é qualidade ou defeito? Ora, dado que a realidade tem plumas e tem brumas, o cartesiano, ao se recusar a incluir na sua narrativa o aspecto brumoso da história, e se limi­tar a contar apenas aquilo que ele en­ten­deu, não faz uma descrição abran­gente. Ele oculta as incógnitas que não compreendeu.

Parece-me uma objeção magistral. Aliás, tratava-se de um francês que re­sumia a objeção do alemão, e talvez daí viesse esse punhal incisivo cravado na cultura cartesiana. O pensamento, porém, aponta de modo expres­siva­men­te germânico esse equívoco pro­veniente do espírito cartesiano, pa­ra o qual um fato sem explicação é como uma vergonha que precisa ser ocultada, pois, pensa ele, o cartesiano: “Só devemos fazer a história do explicável”.

Como já disse, não concordo com esses métodos. Para mim, a marcha do pensamento é comparável ao desen­volvimento de um corpo, que nasce e cresce como tudo quanto é vivo: aos poucos, célula por célula, tomando em conta as verdades e certezas pri­mei­ras, nascidas daquele bom senso que é pa­tri­mônio comum de todos os homens.

“A marcha do pensamento é comparável ao desenvolvimento de um corpo, que nasce e cresce como tudo quanto é vivo”

Bom senso versus cartesianismo em face da Religião Católica

Essa diferença de procedimentos in­telectuais se torna mais viva quando o assunto é religião. Por exemplo, dian­te da necessidade de demonstrar que a Religião Católica é verdadeira.

Segundo o método do car­tesianismo e afins, um es­tudo para pro­var essa ve­racida­de de­ve partir do zero e incluir eta­pas como estas:

Primeiro, a verificação da autentici­dade e inautenticidade dos livros, historicidade das revelações havidas, crí­ticas dos testemunhos, etc., em todas as religiões.

Segundo, confronto das doutrinas de todas as religiões.

Terceiro, qualquer conclusão sobre o assunto: tal religião é verdadeira; ne­nhuma é verdadeira; todas são verda­deiras; etc.

Quarto, respostas a objeções. Po­der-se-ia dizer que só esta etapa já ocuparia vinte vidas de vinte homens que iniciarem o primeiro balbucio sobre a matéria.

Os adeptos do sistema cartesiano e de tudo o que se baseou nele conside­ram pura idiotice um estudo baseado em métodos diferentes. Se, na discus­são com um deles, para justificarmos nossa adesão à Igreja Católica, não for­necermos essa batelada de análises, com­­parações, gráficos, etc., acharão a demonstração insuficiente. Dirão tra­tar-se de uma religiosidade rotineira, supersticiosa, derivada da indolência e de atavismos.

Exemplo da sensatez de tudo quanto existe no catolicismo, o luxo do Papado e a pobreza religiosa coexistem e se ordenam numa superior posição

Ora, nós temos uma idéia, ainda que sumária, das várias religiões. Temos, também, um bom senso nutrido pelo Batismo, com o qual a Religião Ca­tó­lica se harmoniza inteiramente. A es­se respeito, lembro-me das minhas me­ditações enlevadas no meu tempo de menino: “Como a Religião Católica satisfaz por completo a necessidade da alma humana! Que maravilha! Po­de-se dizer que, de algum modo, é a re­ligião do homem! Porque, se a Reli­gião Católica não existisse, e quiséssemos imaginar aquilo capaz de fazer com que o homem fosse o melhor pos­sível, era preciso inventá-la!”

O que mais me chamava a atenção era a sensatez de tudo o que havia no catolicismo: como as verdades apa­ren­temente mais opostas se fundiam numa síntese equilibrada superior, sem nunca a Igreja tremer com esses contrastes, mas guardando toda a sere­ni­dade, e tirando daí uma verdade líquida, límpida, extraordinária.

Recordo-me, por exemplo, do meu entusiasmo de criança tanto com o lu­xo do Papa, quanto com a pobreza dos religiosos. Eu pensava: “Caramba! Essas coisas deviam chocar-se. Entretanto, os católicos que conheço acham a coexistência desses contrastes a coi­sa mais natural do mundo. Aceitam isso, porque há uma superior posição onde tudo se ordena. Como isso é humano! Como a vida não seria vida se não fosse assim! Como tudo seria inexplicável se a Religião Católica não fosse verda­dei­ra!”

Devo dizer que nunca me interessei por provar que a Religião Católica é autêntica. Trata-se de uma preocupa­ção que jamais me passou pela mente. Não condeno que se façam pesquisas e estudos aprofundados sobre a ques­tão. Pelo contrário, louvo que assim procedam, mas considero que o objetivo não deve ser provar a veracidade da Religião Católica, e sim acrescentar novos testemunhos de que ela o é 2 . Essa convicção parte da minha cer­te­za nativa, do meu bom senso calmo, plan­turoso, embrionário, do meu gosto pe­las coisas como elas devem ser, e também da minha rejeição a tudo quanto seja atitude ou doutrina que não se coa­duna com a natureza humana, e assim faz pressão sobre os meus nervos.

Uma vida inteira de estudos poderia levar um homem logicamente à Fé; porém, sujeito a não se sabe quantos enganos ao longo desse caminho…

Com efeito, todas as verdades têm de ser coerentes com os nervos do ho­mem. Aquilo que os abala é errado, do mesmo modo como não pode ser verdade o que é contrário à boa ordem da natureza humana.

Temos assim, a propósito da Igreja, uma visão do modo pelo qual, do senso do bem e do mal, acrescido do bom senso e do senso católico, nasce uma flor, alva, calma, perfumada, de vida longa, resistente a insetos e ao mes­mo tempo muito delicada: a cer­teza.

Bom senso e método científico devem andar juntos

Eu pergunto: alguém pode ad­qui­rir a Fé católica pelo processo científico?

Se um homem passasse a vida in­tei­ra estudando, creio que chegaria logica­mente à Fé. Mas, com quantas possibi­lidades de se enganar ao longo dessa vida? Por aí podemos perceber que esse processo é inidôneo para a aqui­sição da certeza.

Alguém poderia me objetar:

— O senhor então condena a pes­quisa e o método de dedução científicos?

Não! Longe de mim condená-los! Acei­to-os. Contudo, não começando com a dúvida métodica de Decartes nem com a ta­bula rasa do empirismo, nem tampou­co afirmando que só por esses métodos se alcançam as grandes certezas. Digo mais. A convicção da própria certeza científica se adquire por causa dessas certezas anteriores que se desprendem do bom senso e iluminam o método cien­tífico.

Eu condeno, sim, a ruptura entre o bom senso e o processo científico.

Para uma demonstração ter valida­de, é preciso que suas grandes linhas, as linhas capitais, estejam de acordo e em consonância com as grandes linhas do bom senso. Essa consonância e es­se acordo é que têm importância; o resto são pormenores que, se em algo são falhos, não comprometem o ra­cio­cí­nio. Por exemplo, se estou apresentando a visão correta de um fato histórico, mas me equivoco a respeito do nome de um personagem (digamos, de um rei), e alguém me corrige: “Não, não é tal rei assim, é tal outro”, eu não fico esmaga­do por causa do meu engano. Agra­de­ço a retificação e digo: “Ah, meu bom secretário, é tal rei? Vou tomar uma no­ta, porque já tinha me esquecido des­se pormenor”. Está acabado.

Segundo Dr. Plinio, numa demonstração, importa que suas grandes linhas estejam em consonância com as do bom senso

Realidades inesgotáveis, equilíbrio e nervosismo

Concluo acrescentando mais um da­do.

Um dos pressupostos dos sistemas derivados do cartesianismo é que uma realidade pode ser conhecida e esgotada por inteiro. Daí ouvirmos pergun­tas deste tipo (feitas, aliás, de modo excitado):

— Você já leu tudo sobre tal coisa?

Ou seja, para um adepto de tais sistemas a realidade sobre um determinado pon­to é completamente esgo­tá­vel pelo estudo. Por causa disso, fa­zen­do-se du­zentos estudos, esgotando-se duzentas realidades, chega-se a tal certeza. Es­se modo de pensar re­vela uma limitação e uma falta de aristocracia de espírito a toda prova. Pois toda realidade é ines­gotável, o que se traduz até por uma atitude física: em vez de eu olhar para uma realidade de perto, a fim de devorá-la, preciso considerá-la meio de lon­ge, com recuo e panorama.

Dou-lhes um exemplo. Imagi­ne­mos que, em determinada universidade nor­­te-americana, alguém com uma mentalidade como essa que descrevemos se interesse em pesquisar as algas ma­rinhas. Começa, então, por formar um pequeno departamento de algas no Ins­tituto de Botânica Oceanográfica ads­trito ao Setor de Geografia da Faculda­de de Ciências, etc. (porque, é cla­ro, tudo ali já é ultra-especializado).

Depois, trata-se de conseguir do Go­verno uma verba de tantos bilhões de dólares para fundar uma própria Universidade da Alga, a qual, por sua vez, se divide em diversas Faculdades e em várias seções.

Pois bem: ao cabo de dois mil anos desse sistema, o desdobramento ainda não terá terminado, nem a pesquisa terá chegado a seu fim. Porque, em úl­tima análise, cada alga é uma realida­de inesgotável, e para se estudar um mi­núsculo pedaço de alga, uma universidade não basta.

Então não se devem estudar as algas? Sim, deve-se pesquisá-las, não com o objetivo de esgotar a aná­lise, mas para se descobrirem os aspectos dominantes dessa realidade chamada alga. Esse é o modo de proceder mais ordenativo, mais calmo e mais nobre da mente humana.

Claro que se alguém quiser dar a um de nós um pormenor sobre a alga, devemos aceitar gratamente essa contri­buição. Mas com a condição de a nova informação não dominar a nossa vi­são. E de, com nossas linhas gerais, sermos donos do assunto, e não uns eruditos.

Um espírito equilibrado possui não apenas os três sensos já mencionados (o senso do bem e do mal, o bom senso e o senso católico), mas ainda o senso do metafísico, o do orgânico, enfim, to­dos os sensos inerentes a uma reta inteligência.

Para Santo Tomás de Aquino, não há como adquirir a certeza sem o auxílio de determinadas verdades primeiras que são evidentes

Ora, os cartesianos e os empiristas querem esgotar o inesgotável, e desejam que isso caiba na mente do ho­mem. É o erro deles, que acaba originando problemas nervosos, pois, sem a ordenação e a serenidade interiores, a pessoa acaba se jogando num precipício de gagueiras. Por isso sou da opinião de que muitos dos distúrbios psiquiátricos verificados hoje em dia vêm do fato de que a formação em certos ambien­tes modernos já falseia na criança esse equilíbrio interior primeiro. E uma vez falseado, o indivíduo fica lesado em sua paz de alma e não vive bem.

Um inevitável círculo vicioso

Em resumo, eu afirmo que da nossa escola sai a certeza. Das outras escolas saem apenas afirmações categóri­cas, aliás, temporárias, pois só serão válidas até nova descoberta.

Imaginemos que vem dar uma conferência um professor universitário, es­pecialista em algas do Baixo-Mediterrâneo. Informadíssimo, mas não é ho­mem de certezas. Ora, alguém que seja muito bem informado, mas não possua certezas, pode até ser muito inte­li­gen­te — presto homenagem à inteligência de­le — mas é um pobre coitado.

A um sábio desse gênero, eu gos­ta­ria de propor esta questão:

— O senhor deseja, naturalmente, construir seu raciocínio sobre umas primeiras noções. Mas que certeza o senhor tem de que o raciocínio humano conduz à verdade? Se o senhor afirmar isto sem prova, estará forman­do um preconceito. Não seria me­lhor partir de um estudo sobre esse problema criteriológico?

O sábio me responderá:

— Perfeito. Então eu vou começar por aí…

— Não, não, devagar! Há uma dificuldade. O senhor vai provar por meio de ra­cio­cínios que o raciocínio conduz à verdade. Ora, exis­te aí uma petição de princípio, por­que o senhor vai usar o raciocínio para justificar a si próprio. Para provar que o raciocínio conduz à verdade, é preciso haver um elemento anterior a ele. O senhor quer me dizer em que sua certeza se funda? Qual é o início?

Ora, se for considerada co­mo certa a tabula rasa do empirismo, não há uma base para o começo! É o mesmo problema da dúvida metódica cartesia­na, que ignora tudo o que é adquirido anteriormen­te ao raciocínio abstrato 3 .

Na realidade, há verdades pri­mei­ras — São Tomás de Aquino o demonstra muito bem — que são evidentes por si mesmas, e sem as quais não há como adquirir a certeza.

1) Uma esclarecedora amostra do empirismo é encontrada no seguinte trecho de Hume: “Se tomarmos nas mãos qual­quer volume de teologia ou metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: ‘Contém ele algum raciocínio abstrato a respeito de quantidade ou número?’. Não. ‘Contém algum raciocínio experimental a respeito de assuntos de fato e existência?’ Não. Entregue-o então às chamas, pois não poderá conter nada se­não sofistaria e ilusão” (Peter Gay, “A ilha da razão”, in Folha de S. Paulo , ca­derno Mais! , 15/4/2001)

2) Claro está que Dr. Plinio excetua aqui as necessidades apologéticas, das quais era entusiasta.

3) Foi para tentar sanar essa fatal lacuna de seu sistema que Descartes imaginou a tese da existência de idéias inatas, considerada absurda pela sã fi­lo­sofia.