Que razões levam o homem a viver em sociedade? Num artigo que se destinava a vir a lume numa revista católica européia, em 1960, Dr. Plinio procurou responder a essa questão, a fim de estabelecer a conceituação do “temporal” em face do “espiritual”. Fugindo dos padrões estabelecidos pelas escolas dominantes, incursionou pela Sociologia, Teologia e Filosofia da História, abordando o tema de um ângulo incomum. Por razões que não vem ao caso esmiuçar, a matéria não foi publicada. Como chegou até nós o próprio rascunho redigido por Dr. Plinio, transcrevemo-lo aqui em primeira mão.

A revista Pensée Catholique publicou dois estudos muito esclarecedores sobre a questão, hoje tão debatida entre escritores católicos, das relações entre a Igreja e o Estado. De um e outro trabalho ressalta claramente que o assunto de há muito já foi elucidado pela Igreja, e que, para dissipar as dúvidas surgidas em nossos dias a este respeito, basta apelar para os documentos oficiais dos Papas e os ensinamentos tradicionais dos Doutores e da Teologia.

Neste sentido, aqueles dois trabalhos já disseram o essencial. A título meramente subsidiário, julgamos entretanto que talvez não fosse inútil analisar alguns aspectos de uma das teses fundamentais da Igreja no problema das relações entre o espiritual e o temporal, que é a “ministerialidade” deste último em relação àquele.

Parece-nos que o ambiente de nossos dias de tal maneira inculca uma concepção materialista e puramente econômica da vida temporal, que exerce uma influência sensível no feitio de espírito, nos hábitos mentais, nas tendências ideológicas de pessoas que, em tese pelo menos, se presumem fiéis às grandes linhas do pensamento católico e até tomista. Pessoas como essas teriam menos dificuldade em aceitar a posição da Igreja sobre a ministerialidade do temporal se se lembrassem bem exatamente de todo o conteúdo humano da esfera temporal.

O homem é social pela própria natureza de sua alma, princípio este que não pode ser esquecido numa conceituação do “temporal”. Na página anterior, detalhe do “Juízo Final”, afresco de Fra Angélico

Para que esse conteúdo não apareça tão claramente a todos os olhos, têm concorrido — involuntariamente, é claro, e por motivos explicáveis — excelentes escritores.

O fator “alma” é esquecido

Os autores que sustentam a doutrina de que a sociedade humana não existe em conseqüência de um pacto arbitrário estabelecido por certo número de homens em eras que se perdem na noite dos tempos, mas é uma conseqüência espontânea, legítima e inelutável da própria ordem natural, expõem detidamente, e com todo o esmero, os argumentos proporcionados à sua tese pela observação da vida quotidiana: necessidade da especialização e da colaboração para assegurar a subsistência material e o progresso; necessidade de uma autoridade para dirigir a colaboração, etc. E, pois, necessidade natural de uma sociedade com todas as suas características essenciais.

Estabelecida nesta base, a demonstração, além de irrepreensível, é altamente didática, pois versa sobre fatos claros, simples, palpáveis, que se situam no âmbito da observação direta e pessoal de qualquer leitor.

“O mundo hodierno elevou o corpo à altura de um ídolo e negou a primazia da alma, quando não a própria existência dela. O resultado está diante de nós: a cacofonia da grande confusão de nossos dias…” (Ao lado, Dr. Plinio em meados da década de 1960)

Compreende-se que um autor, premido pela obsessão de resumir, que o corre-corre hodierno impõe, passe por alto sobre outros argumentos, ou silencie mesmo sobre eles. É o que acontece não raras vezes com o argumento tirado de que o homem é social pela natureza de sua própria alma, abstração feita de qualquer necessidade do corpo. Em não poucos dos livros de toda espécie, feitio e tamanho, que põem ao alcance do público as linhas-mestras do Direito Natural, este argumento não é explorado em toda a sua riqueza.

Decorre daí, na formação da mentalidade do leitor, uma conseqüência importante. Grande número de estudiosos se habitua a ver na sociedade humana algo que existe única  ou pelo menos principalmente para atender as necessidades físicas do homem. Não que esta convicção decorra de uma afirmação expressa deste ou daquele tratadista; mas ela se forma no subconsciente à maneira de impressão geral que, se não é lógica, é pelo menos explicável. Pois se os argumentos mais insistentemente mencionados, mais largamente desenvolvidos, são os que se fundam nas necessidades materiais, econômicas, práticas, não é de surpreender que se forme a noção de que a sociedade existe sobretudo para atender a essas necessidades, e que aos poucos os fins da sociedade relativos à alma humana passem do segundo plano para um olvido completo.

Como dissemos, a atmosfera contemporânea é de molde a favorecer poderosamente este fenômeno. Vivemos em um ambiente saturado de materialismo, em que a todos os momentos ouvimos opiniões que só seriam verdadeiras, presenciamos ações que só seriam legítimas, somos postos em presença de instituições e costumes que só seriam razoáveis se a alma humana não existisse. O materialismo está imanente e subentendido em quase tudo quanto se passa em torno de nós.

Não é, pois, de espantar que, tantas e tantas vezes, veja-se este ou aquele católico — que estudou honestamente as linhas gerais da filosofia moral e que leu em São Tomás (De Regimine Principum, Cap. I) que a sociedade temporal tem por fim remediar a insuficiência não só física, mas intelectual do homem — tomar diante dos problemas políticos, sociais e econômicos com que se defronta uma atitude prática que em pouco difere do materialista ou agnóstico.

Restabelecer o primado do espiritual

Sendo o homem constituído por dois princípios distintos, corpo e alma, é claro que tudo quanto lhe diz respeito será muito mais importante no que concerne à alma do que ao corpo; pois o que é espiritual e imperecível vale mais do que o que é material e mortal.

Como em passadas épocas, importa que o homem contemporâneo dê o melhor de sua atenção e solicitude ao que diz respeito ao bem-estar e equilíbrio de sua alma

Toda a sociologia que procede desta verdade deve dar o melhor de sua solicitude e atenção ao que diz respeito à alma humana, seu equilíbrio, seu bem-estar, seu desenvolvimento. Por mais interessantes e respeitáveis que sejam os problemas materiais, por maior que seja o talento, a diligência, o vigor que se deva empregar em os resolver, cumpre nunca esquecer esta verdade fundamental.¹

Evidentemente não se trata de consagrar à vida material menos do que ela merece, pois o homem é homem e não um puro espírito angélico. Mas, ainda quando se dê largamente à matéria o que se lhe deve, é preciso não romper a hierarquia dos valores e conceber os problemas materiais dissociando-os da realidade humana plena e total, isto é, de que temos também uma alma, e de que ela vale mais, incomparavelmente mais do que nosso corpo.

O mundo hodierno desconheceu esses princípios, elevou o corpo à altura de um ídolo e negou a primazia da alma, quando não a própria existência dela. Tudo se organizou como se o homem tivesse apenas o corpo.

O resultado está diante de nós: as neuroses, as psicoses, as perversões sexuais monstruosas, o existencialismo, a cacofonia da grande confusão de nossos dias. O livro de Alexis Carrel — ao qual haveria, aliás, restrições a fazer — já se vai tornando velho, mas pode ser relido com vantagem pelos que desejam informar-se sobre o que está custando ao homem essa subestimação ou negação da alma, no progresso técnico-material de nosso século.

Trata-se, pois — e muitos o reconhecem — de restabelecer o primado do espiritual. Mas, para que esse intento não fique apenas no mundo das afirmações sonoras e se transforme em uma ação palpável, de fins definidos, cumpre investigar no que consiste, bem exatamente, o papel do espiritual na vida que o homem leva em sociedade.

O que se passa numa sociedade de almas?

Consideremos a alma humana em sua natureza, suas potências, sua atividade. Em que sentido pode ela ter uma vida social?

[A conceituação de uma] vida social que compreenda relações puramente espirituais de homem a homem pode parecer situar-se em altura tão etérea, que nada de definido e de útil se possa dizer dela. Essa impressão se dissipará, caso recorramos ao que a Igreja nos ensina sobre os Anjos.

O Anjo é um ser puramente espiritual, criado para conhecer, amar, louvar e servir a Deus. Sendo esta a sua única razão de ser, é para este fim que se ordenam todas as suas potências, todas as suas inclinações naturais. E é para este fim que o ilumina e o sublima a graça, quando o eleva à ordem sobrenatural, dando-lhe a visão beatífica e o amor sobrenatural.

O Anjo tem, pois, necessidade de uma sociedade: a de Deus. E não poderia viver na ignorância do Criador. Mas essa sociedade lhe basta por dois motivos. Primeiramente, porque Deus é a própria perfeição, e quem O possui não tem necessidade de mais nada. Em segundo lugar, porque a natureza do Anjo se ordena para Deus e só para Ele.

Em rigor, é tal a natureza de um puro espírito que Deus poderia ter criado só a ele, ou ter disposto que ele não conhecesse outro ser senão o próprio Deus.

O Criador constituiu, entretanto, de outro modo a criação angélica. Quis Ele que os Anjos se conhecessem uns aos outros, estabelecendo, pois, entre si uma vida social que, evidentemente, é toda espiritual. Esta vida social, entretanto, tem Deus por objeto último. Pois os conhecimentos que os Anjos comunicam uns aos outros transmitem apenas o que cada qual pode anunciar de Deus. De tal sorte que cada Anjo tem todas as operações de suas potências aplicadas em Deus de dois modos: um direto, na medida em que tem comércio imediato com Ele; e outro mediato, enquanto se comunica com Ele por meio de outros Anjos.

Assim eram as coisas antes da criação de nosso universo. Quando este foi criado, seu conhecimento foi patenteado aos Anjos. E como nosso universo, à sua maneira, também anuncia as grandezas de Deus, os Anjos adquiriram em cada ser material criado objetos de conhecimento, que os conduzem por suas vias próprias a Deus, objeto único, constante, de todas as operações angélicas.

Tudo pelo que a consideração do sol, do chuvisco ou do trovão elevava a Deus o Salmista; ou pelo que uma flor ou um pássaro elevava a Deus um São Francisco de Assis; ou ainda pelo que as maravilhas do átomo podem elevar a Deus o homem moderno, o Anjo o conhece e o utiliza como via para Deus.

Quem poderá jamais, nesta vida terrena, senão a Santíssima Virgem, retraçar o que é a meditação e o amor de um Anjo que conhece todo o nosso universo, até o menor de seus segredos? Que, num só olhar, vê a pulsação simultânea da vida em todos os seres e o movimento incessante e misterioso da matéria nos espaços incalculavelmente grandes em que se movem os astros; nos espaços incalculavelmente pequenos em que giram os universos e as constelações dos átomos, e em tudo discerne a Sabedoria eterna, o Poder absoluto e inabalável, a perfeição do Amor “que move o sol e as outras estrelas”?

Falamos mais detidamente do conhecimento e do amor. Uma palavra sobre o louvor e o serviço de Deus.

Vivendo na sociedade de Deus, os Anjos transmitem uns aos outros os conhecimentos que têm do Criador (Portal da Catedral de Notre-Dame de Paris)

Feito para louvar, o ser angélico é de uma natureza, por assim dizer, exclamativa. O conhecimento e o amor não se perdem sem ressonância nas augustas profundidades de seu próprio ser. Ele transmite, comunica, exprime o que lhe vai no íntimo, por um dever de justiça e de amor para com Deus, sem dúvida, mas também por um impulso de sua própria natureza. Daí o louvor angélico incessante, cuja magnificência a Escritura nos manifesta tantas vezes, com termos e símbolos tão diversos.

Feito para servir, o Anjo não é apenas contemplativo, mas à sua maneira tem natureza ativa. Ele comunica aos outros o que sabe de Deus — é um serviço docente. Ele é o agente da vontade de Deus na direção do universo, pois é por meio dos Anjos que Deus governa a criação visível. E esta função executiva comporta um aspecto militante, pois ele é o guerreiro de Deus, que antes dos séculos abateu Satanás e os rebeldes, e hoje combate o inferno, protege os fiéis e a Igreja na luta contra o poder das trevas.

Eis, pois, o que o Anjo faz por sua própria natureza, o que ele faz como membro da sociedade angélica, e o que a sociedade angélica faz em seu conjunto, enquanto sociedade, segundo o impulso e o desígnio de Deus.

(Continua no próximo número)

1 Vem ao caso uma palavra sobre a chamada “sociedade dos animais”. Diz São Tomás que eles não constituem propriamente sociedade. Têm, sim, um instinto gregário que os leva a viver juntos, pelo que há o rebanho. É pela alma que a sociedade humana existe.