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A Igreja e a História

Escrevemos este livro a fim de esboçar, nas linhas gerais, a admirável fisionomia da Cristandade, espelho da fisionomia de Cristo, como a criatura é espelho do Criador, e a obra é espelho do artista.

Assim começava Dr. Plinio o exórdio do livro “Cristandade — A chave de prata”, que ficou inacabado. Continuamos a transcrevê-lo nestas páginas.

Para se compreender em toda a sua profundidade os documentos de Leão XIII, é necessário, antes de tudo, ter em consideração qual é, na mente de seu autor, a natureza e o fim desses documentos.

Um escritor — que seja matemático, poeta ou historiador, por exemplo — não se julga, em via de regra, pessoalmente responsável pelos destinos da ciência, da poesia, da pátria, e por isso não escreve necessariamente para intervir numa determinada ordem de acontecimentos culturais, sociais ou políticos, para os incrementar ou combater. Limita-se a expor — sem outro objetivo — o que pensa ou sente.

Um escritor, ademais, não é necessariamente um mestre. Seu livro — e é o que sucede com a maioria dos livros — pode não ensinar fatos ou doutrinas, mas apenas propô-los ao conhecimento de terceiros.

E, quando expõe ou analisa o pensamento de terceiros, o escritor sabe que é falível, que pode ter dado a esta palavra ou àquele matiz do autor um sentido que este talvez não tivesse em mente.

De modo geral, o escritor procura não ser mero intérprete ou expositor do pensamento de terceiros, preferindo acrescentar-lhe sempre algo de próprio.

Nos documentos oficiais, o Papa ensina como mestre da verdade

Pode-se dizer que, em via de regra, nada disso ocorre com um Papa, quando se manifesta em documentos oficiais. Seus pronunciamentos têm sempre um caráter essencialmente magisterial: o Papa não expõe opiniões meramente pessoais, nem as publica para serem trabalhadas e valorizadas pela livre análise e pela livre discussão, mas ensina como representante autorizado de Jesus Cristo.

Os documentos papais também não são publicados sem intenção de intervir na ordem concreta dos fatos. O ensino pontifício não é a exposição meramente científica de certo número de verdades. Os Papas, além de Mestres, são Pastores. Eles devem não só apontar o caminho, mas também atrair para ele as almas, guiá-las ao longo do trajeto, animando-as, protegendo-as contra os lobos e desviando-as dos abrolhos e dos precipícios. Por esse motivo, os Papas — ainda quando enunciam verdades ou leis válidas para todos os tempos e todos os lugares — insistem mais num ponto ou noutro, desenvolvem mais uma matéria, enriquecem de preferência outra, com novos ensinamentos e novas leis, tudo ao influxo do que lhes vai pedindo a solicitude pastoral à vista das diversas vicissitudes por que vai passando o gênero humano ao longo da história. Considerados sob este ponto de vista, os documentos oficiais de um Papa são, em certa medida, o espelho da época. E, considerando que esses documentos oficiais formam uma imensa série que abrange os vinte séculos da era cristã, haveria campo para um belíssimo estudo da história da Cristandade e até da humanidade, se se considerarem de modo sistemático e ininterrupto os reflexos que os fatos de cada centúria, de cada lustro, quiçá de cada dia foram deixando nos documentos de ensino e de governo dos Pontífices Romanos.

Um Papa, ademais, não se tem por mestre de ensinamentos por ele próprio elaborados. Os ensinamentos estão contidos, todos, no depósito da Revelação. Ele explica, interpreta, ensina o que neste depósito está contido. Mestre infalível, tem ele a garantia de jamais errar nesta função. O não errar consiste em não adulterar, não subtrair, não acrescer em nada a Revelação, limitando-se a ensiná-la, a lembrá-la, a apontar seu significado verdadeiro caso surjam dúvidas entre os fiéis.

Estas últimas noções exigiriam uma explanação mais pormenorizada da doutrina católica sobre Deus, Jesus Cristo, a Revelação e o magistério infalível. Estas noções são familiares a todos os católicos, mas é provável que leitores menos informados da doutrina católica estimem encontrá-las aqui, pois constituem pressuposto indispensável para a compreensão dos documentos de Leão XIII.

Razão e Revelação

O homem pode conhecer a Deus por duas vias: a razão e a Revelação.

Pela razão, isto é, pelo mero esforço de sua inteligência, considerando o universo, o homem pode concluir em todo o rigor de lógica a existência de um Deus pessoal e eterno, infinitamente sábio, bom e poderoso; a espiritualidade da alma, o livre arbítrio, as regras fundamentais da moral, a vida eterna, as recompensas e os castigos de Deus.

Contudo, a inteligência humana não encontra, na consideração do universo, elemento algum para chegar ao conhecimento de outras verdades, como a existência de três Pessoas em Deus, dos Anjos, dos demônios, etc. Essas verdades, o homem não as conhece pela razão, mas pela Revelação.

A palavra “revelação” é empregada aqui num sentido que, radicalmente, é o da linguagem corrente. Revelar é o ato pelo qual uma pessoa dá a conhecer a outra algo que para esta era oculto, ignorado; algo que essa pessoa não descobriria pelo uso de sua razão, e que chega a conhecer pelo simples fato de que alguém lho manifestou.

Deus revelou aos homens um conjunto de verdades inacessíveis à sua razão. Para isso, Ele lhes falou diretamente, ou por meio de seus anjos, de seus profetas, de seu Filho Unigênito, de seus apóstolos, de seus evangelistas. Dessas revelações, o que deveria ficar para a posteridade até a consumação dos séculos ficou registrado nos diversos livros da Bíblia, constituindo a parte anterior ao nascimento de Jesus Cristo, o Antigo Testamento, e a parte posterior, o Novo Testamento. Este último não é o contrário daquele, mas antes a sua perfeição, a sua plenitude.

Como Mestres e Pastores, os Papas em seus documentos não só apontam o caminho a seguir, mas procuram animar e atrair as almas, protegendo-as contra os lobos, desviando-as dos precipícios
(“São Pedro com as chaves do Reino”, biblioteca Sixto IV, Vaticano)

Revelação oficial e revelação privada

A Bíblia constitui a Revelação oficial, que se distingue essencialmente das revelações particulares. Várias pessoas, em todos os séculos de existência da Igreja, têm narrado as revelações que receberam do Céu. Essas revelações — falamos das verdadeiras, pois diversas são falsas — são essencialmente particulares, pois se destinam apenas a edificar uma ou muitas almas. Sobre elas pode cada um fazer o juízo que lhe parecer mais acertado. Não têm as características da Revelação oficial, que é autenticada por milagres incontestáveis, e é feita para conhecimento de todos os homens, que são obrigados a aceitá-la, sob pena de eterna condenação.

Revelação como fato histórico e Fé

A Revelação é um fato histórico suscetível de demonstração segundo as melhores regras da crítica científica. Em outros termos, é um fato perfeitamente histórico. Prova-se a autenticidade dos Livros Sagrados, a veracidade dos fatos que narram, o caráter sobrenatural das curas e outros fatos miraculosos que contam, mediante o emprego dos princípios genuínos da crítica científica.

Por meio de seus anjos, profetas, apóstolos e evangelistas, Deus manifestou aos homens um conjunto de verdades que constituem a Revelação oficial, registrada nos diversos livros da Bíblia
(Acima, “Os evangelistas”, catedral de Estrasburgo, França; ao lado, Bíblia medieval, usada por São Luís IX

Provado que Deus falou aos homens, é razoável que estes creiam na palavra de Deus. Não se deve confundir a convicção de que Deus falou com a crença na veracidade do que Ele nos disse. Provando-se com argumentos históricos o fato de que Deus nos falou, devemos aceitar o conteúdo do que Ele nos disse, porque, sendo Deus infinitamente sábio e bom, não poderia enganar-se, nem enganar-nos. Esta crença no conteúdo da Revelação é propriamente a Fé. Chama-a São Paulo um “rationabile obsequium”, porque realmente nada mais razoável do que crer o homem no que Deus lhe diz.

Apresentação objetiva e honesta dos fatos históricos

Alongamo-nos um pouco nessas considerações para pôr em evidência o nexo íntimo que prende a doutrina católica à história, a importância que a Igreja dá à história e a tudo quanto com ela se relaciona; e, pois, o extraordinário calor com que Leão XIII reivindica para a Igreja, como ponto de honra, o zelo pelos estudos históricos e por uma apresentação objetiva e honesta dos fatos históricos; e que todo o ensinamento da Igreja se baseia sobre a historicidade da Revelação.

“Se a Ressurreição é falsa, nossa Fé é vã”, dizia São Paulo. E tinha razão. Se a Ressurreição não é um fato histórico, suscetível de se apoiar em provas genuínas, rui por terra o edifício da Fé. E o que se diz da Ressurreição pode-se afirmar de todos os demais fatos históricos em que se baseia a Revelação.

Leão XIII

Bem entendido, a história tem ainda com a Revelação outro ponto de contato que importa acentuar. Os livros do Antigo e Novo Testamento estão cheios de afirmações históricas: guerras, revoluções, migrações de povos, etc. Ora, se realmente esses livros foram escritos sob a inspiração de Deus, não podem conter narrações inverídicas. E, pois, se a história demonstrasse alguma inverdade nos Livros Sagrados, teria implicitamente provado que não são revelados. Outra razão para a Igreja se sentir particularmente empenhada nos estudos históricos.

Esses motivos não são os únicos. Retomemos o fio de nossa exposição, cuidando das relações entre a história e a Revelação. Poderemos, então, de passagem, considerar novos aspectos das relações entre a Igreja e a história.

A Igreja, intérprete da Revelação

Estudando-se a Revelação, á fácil perceber que o seu sentido é muitas vezes difícil de entender. Basta considerar as muitas seitas em que se têm dividido protestantes e cismáticos, as muitas controvérsias entre os próprios teólogos católicos, para se ter uma idéia da dificuldade que há em interpretar a Bíblia.

De onde se segue que, ou a Revelação se dirige a uns poucos privilegiados, e não a todos os homens, ou há um mestre, infalível por assistência divina, que jamais erra na interpretação da Bíblia.

De modo geral, esta mestra é a Igreja, infalível na sua tradição, nos seus concílios ecumênicos, e no Romano Pontífice.

Entre órgãos infalíveis não pode haver contradição. Quando um órgão infalível publica um documento, não é só para ensinar a Revelação, mas para completar harmoniosamente todos os ensinamentos que, ao longo dos séculos, foram sendo promulgados pelos outros órgãos da infalibilidade da Igreja.

Nessas condições, as verdadeiras fontes para a interpretação de um documento pontifício segundo a mente do autor são todos os documentos anteriores, promulgados por ele e seus antecessores, os atos dos concílios ecumênicos, a crença constante e universal da Igreja.

Como seguiremos com freqüência esse método, pareceu-nos importante acentuar preliminarmente sua legitimidade.

Em suma, Chefe da Igreja, Mestre Supremo da doutrina católica, o Papa professa tudo o que a Igreja ensinou antes dele, e que faz parte do patrimônio de suas próprias crenças, e serve de alicerce para seus próprios ensinamentos.

A Igreja, mestra em história

Tratamos pouco acima das relações entre a Fé e a história. Devemos, já agora, assinalar outro ponto de contato entre uma e outra.

Pertence ao domínio da história analisar as sucessivas decisões do Magistério infalível da Igreja, a fim de apontar a íntima coerência entre elas. É digno de nota que, em épocas e regiões muito diversas, sob o influxo de circunstâncias históricas e ambientais tão diferentes, os concílios e os papas jamais se hajam contraditado. Se uma contradição real se apontasse, o Magistério estaria desmentido.

A verdadeira Igreja de Deus deve exercer sobre os homens um influxo moralizador e dignificante. Cabe à história verificar se de fato tal influxo foi por ela exercido, e se seus santos, seus doutores, seus ministros, as almas que se consagram a seu serviço, o povo fiel em geral, têm dado ao mundo, no decurso dos séculos, a prova de uma virtude relevante.

O influxo da verdadeira Igreja deve ainda proporcionar aos povos e aos Estados frutos temporais insignes: ordem, paz, cultura, bem-estar. Cabe à história dar testemunho de que a Igreja cumpriu de fato esta tarefa.

Em seu conjunto, trata-se aí de pontos muito delicados, a serem estudados em uma imensa mole de acontecimentos, envolvendo a história do povo eleito e da Sinagoga antes da Redenção, e depois a história da Igreja e da Cristandade, não só em si mesmas, como também em confronto com os povos pagãos, hereges e cismáticos.

Isso no terreno apologético. Mas num terreno um pouco diverso, o interesse desse estudo também é manifesto. A Igreja tem uma árdua missão a cumprir nos dias que correm, e, segura da promessa de Jesus Cristo de que ela durará até a consumação dos séculos, considera a perspectiva de continuar essa missão por um número indefinido de séculos. O cumprimento dessa missão — que consiste essencialmente em atrair e elevar as almas, formando-as para a virtude com vistas à vida eterna — supõe que ela seja capaz de despertar a simpatia, a confiança, o entusiasmo dos indivíduos e dos povos; que possa contar com a cooperação das instituições culturais, sociais e econômicas cujo concurso possa facilitar-lhe a atividade.

No cumprimento de sua árdua missão de elevar e salvar as almas, deve a Igreja ser capaz de despertar a confiança, o entusiasmo dos indivíduos e dos povos

Ora, quando uma instituição tem vinte séculos de história, ela só despertará esses sentimentos se puder demonstrar que seu passado proporciona certas razões para tal. Não se trata aqui, como pouco acima, de uma consideração apologética, isto é, tendente a converter as almas pela prova de que a Igreja é divina. Diante de Estados ou instituições leigas, a Igreja — cujo coração sangra com o laicismo — tem se empenhado em tornar patentes suas benemerências para conservar o direito de dizer, no momento oportuno, com a autoridade de seu grande passado, de seu imenso e luminoso papel na história, uma palavra de conselho, de esclarecimento, de orientação, cujos efeitos redundarão, em última análise, em benefício da Cristandade e do mundo.

Veremos quanto essa preocupação é sensível em muitos dos mais notáveis textos de Leão XIII sobre a História.

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