Plinio, aos oito anos

Após uma infância plena de felicidade, regada de graças sensíveis, o papel do amor à lógica no momento da opção decisiva, ao se iniciarem as lutas da adolescência. Eis um resumo do itinerário espiritual de Dr. Plinio, conforme ele mesmo diz.

Nossa Senhora me obteve, no tempo de minha inocência, uma felicidade muito grande, no sentido de acreditar que as coisas fossem boas. De um lado, eu percebia muito bem o que elas tinham de reto e de santo; em segundo lugar, isso me dava uma grande felicidade terrena.

De maneira que eu fui um menino profundamente feliz. Quase angelicamente feliz.

Mãe do Bom Conselho, cultuada na capela do Colégio São Luís. O pequeno Plinio costumava rezar diante dela. “Nossa Senhora era bem a causa da minha alegria!”

E pela ordenação com que a graça punha isso na minha alma, a fonte principal de minha felicidade não era usufruir de alguma coisa determinada, mas sim notar no que aquilo, no fundo, era santo.

O que se passava comigo poderia até escandalizar uma pessoa para quem um menino muito chamado deveria ter desejo de fazer sacrifícios, de flagelar-se, etc.

Não era o que ocorria. Era algo que, sob certo ponto de vista, preparava-me para a vocação que Nossa Senhora me deu.

Um bem-estar físico, corolário do amor à virtude

Por exemplo, em casa, sábado à noite trocava-se a roupa de cama. Quando era hora de dormir, e eu via que a roupa de cama estava fresca, dava-me grande satisfação deitar-me ali, e sentir o frescor, a boa categoria da roupa de cama, o conforto, o gáudio inocente que isso dava. Mas o que mais me causava contentamento era ver que isso tinha relação com a santidade, por ser bom, reto e ordenado.

A roupa de cama limpa, como uma lavadeira negra, chamada Madalena, sabia preparar (e ela era tida como admirável nesse ponto), deixava sentir algo de especial. Apesar de ser doente, a Madalena timbrava em cumprir seu ofício de modo exímio. E eu gostava de olhar quando ela, meio reumática, descia para a lavanderia, que ficava na parte baixa da casa, pegava pilhas de roupa de cama e colocava sobre uma mesa, para as empregadas dos vários moradores irem pegar. Aquela roupa vinha como que nimbada de alguma coisa que, no fundo, era a pureza. E a Madalena era, aliás, muito piedosa.

Depois de a roupa de cama ser trocada, eu sentia um gosto físico em deitar-me ali, que era corolário do prazer espiritual da pureza que transparecia naquilo. Eu passava a mão embaixo do travesseiro, sentia aqueles lençóis frescos, limpos, com um pouquinho de goma; e a fronha também. Isto me dava um bem-estar físico dentro do qual eu sentia o gosto da virtude.

Assim ocorria com cem outros gáudios! Eu era uma criança muito alegre, e de um gênio muito igual.

Essa situação constituía um horizonte de deleite terreno que tinha como centro a felicidade de ser puro, de ter fé, de ser um bom menino que sentia a graça palpitar. Sem ainda saber no que consistia a graça, eu a sentia e me regozijava.

Exímia formadora, a Fräulein Mathilde, com seu espírito alemão, foi um dos instrumentos da Providência para incutir em Dr. Plinio um grande amor à lógica

Essa ordenação rumo a Deus era a fonte da minha alegria. A Ladainha de Nossa Senhora chama Nossa Senhora Causa nostrae Laetitiae. Era bem a causa da minha alegria.

Convite para trocar a felicidade pelo gozo

Em determinado momento estoura uma bombarda. Começam as solicitações que desfecham nisso: “Rompa com a causa de sua alegria, e deixe de ser diferente. Do contrário, você passará por um dilúvio de padecimentos (eu percebi isso logo perfeitamente). Se você se mantiver fiel, veja bem o que o espera!”

Quer dizer: “Não se iluda! Esta vida suave que você leva só poderá ser gostosa se você trucidar a causa de suas alegrias atuais. Do contrário, elas vão se transformar em dor, e você vai ter luta!”. Esta opção se apresentou para mim com toda a clareza.

Vinha-me a idéia muito clara de que a felicidade que eu obteria, se fosse infiel à inocência, seria uma felicidade sporcatta. Seria um gozo, mas não uma felicidade.

E eu fiz esta escolha: ainda que me tornasse infeliz, eu queria a união com Deus, com Nossa Senhora, com a Igreja; em alguma medida, com mamãe.

E aí começou a batalha!

Eu percebia com toda a lógica qual era a coerência da posição para que eu era convidado por Deus; uma posição coerente com Ele mesmo; e a da posição para a qual me chamava o demônio, por seu lado coerente com ele. As coerências das duas vias me eram inapelavelmente claras.

A luta me causava um entusiasmo,  sem vibração, mas enorme, pela lógica. Eu pensava: “Ela é a luz da vida, é tudo, é a lógica! Eu preciso ser lógico. A lógica me leva a essa escolha. À vista disso, verei o que fazer. A lógica me obriga a um calvário. Eu preciso aceitá-lo…”

Punham-se para mim, então, duas idéias: a busca da felicidade, sim; mas ainda que não houvesse felicidade, a lógica impunha sacrificar tudo para seguir aquilo que eu devia seguir.

Pecado contra a lógica

Parecia-me que a maior vilania que se poderia fazer não estava tanto em seguir os apelos do corpo, mas em ser tíbio no tocante à lógica.

Há gente que pensa: “A lógica pode me mostrar tal coisa, mas eu não me incomodo com a lógica. O que eu tenho a ver com ela? Eu a vi, porém não a amei. Mais ainda. Achei que podendo fraudá-la, ludibriava a vida. Não dei meu coração a ela, não quis ser inteiramente lógico. Quis, pelo contrário, viver de fraudes”.

“Vieram os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Ah! A lógica! Não tem coisa igual!”

A lógica não impressiona essas almas, para elas não significa nada: “A lógica? Ora, a lógica… Vamos tocando a vida!” Muita gente infelizmente é assim.

Essa espécie de tédio diante da lógica pode ser pior que a própria impureza.

Amor à lógica e estudo de latim

Eu amava imensamente a lógica. Nesse ponto Nossa Senhora me preservou, utilizando principalmente três instrumentos: acima de tudo, a Religião Católica; depois, a Fräulein Mathilde, minha governanta alemã, e o jesuíta Mestre Costa, meu professor no Colégio São Luís.

Na Fräulein Mathilde, eu admirava enormemente aquela lógica do espírito germânico, que chega até o fim. Se há um dever a cumprir, é preciso fazer, não tem remédio. Ainda que for desagradável, não se pode recuar. Eu às vezes me impacientava, porque era obrigado a fazer algo penoso. Coisas de menino…

A Fräulein me obrigava, por exemplo, a decorar as declinações em latim: rosa, rosa, rosae… Qual é a primeira declinação, qual é a segunda, a terceira, a quarta, a quinta? Os casos: nominativo, genitivo, dativo, ablativo, acusativo, vocativo… Depois no plural, no singular. Substantivo masculino, feminino, neutro, etc.

Eu tinha má memória para coisas que é preciso decorar. E na nossa sala de estudos em casa — minha, de minha prima e de minha irmã — havia uns aparelhos de ginástica, entre os quais uma escada, presa por um gancho no teto quando havia falta de espaço. Quando não, ficava no chão. Eu arranjava um jeito de trazer a escada para baixo e trepava até o último degrau, por causa de impaciência e de aflição.

A Fräulein continuava a fazer perguntas, e no alto da escada eu respondia.

Ela, de baixo, mantinha a calma:

— Pliniô! Rosa, rosa… Diga de novo!

Eu me virava para o outro lado da escada, e de costas continuava a falar. Mas via aquela calma dela, e aquela obstinação. Tinha de ser!

Eu passava a aula inteira mexendo-me naquela escada. Mas acabava por concluir o seguinte: “Ela, afinal de contas, é uma educadora excelente!” E era. Eu dificultei o trabalho dela, mas nós nos entendemos. Não me revoltei contra ela, e criava dificuldade até certo limite. Ela entendeu e tolerou. Mas nunca consentiu que minhas atitudes a contagiassem. Ficava sentada à mesa com minha irmã e minha prima, e nem olhava para mim na escada.

— Pliniô!

— O que é?!

—  Rosa, rosa, rosae… — dizia ela com o livro aberto. Eu esbravejava interiormente, mas não me manifestava. Mas aprendia a lição.

Ao terminar, eu percebia que tinha aprendido as declinações. Mais ainda: percebia que tinha tomado um certo gosto pela lógica da composição da frase latina. E a lógica da ordem inversa: “Como é bonita a ordem inversa!” Porque é muito bonita.

E saía de lá pensando: “Afinal, não deixa de ser verdade que essa declinação é para o espírito o que essa escada é para o corpo. A gente sobe, desce, entra por aqueles vãos, etc., mas sai de dentro mais forte. Assim aqui também, aquela conjugação… Como é, então: qual é o sujeito, qual é o verbo, qual é o objeto direto, qual é o objeto indireto, o que é que faz aqui o substantivo, o que é que faz o adjetivo, o que é que faz a preposição, etc.

Aquela mecânica toda das palavras no latim, um pouco parecida com a mecânica celeste, acabava me regalando.

O Pe. Costa e alguns dos prêmios que Plinio recebeu por seu bom aproveitamento nos cursos lecionados pelo Mestre jesuíta

O entusiasmo pela lógica é o esteio da alma

Mais ou menos nesse tempo, quando o aprendizado com a Fräulein ia terminando, eu estava começando meus estudos no Colégio São Luís.

Eu tinha um professor amazonense, que ainda não era padre, mas estava naquele estágio que os jesuítas chamam de mestre. Era o já mencionado Mestre Costa, muito loquaz, mas de uma extraordinária lógica no raciocínio, que eu percebia ter sido aprendida na Companhia de Jesus.

Eu pensava: “Esse mestre sabe isto porque está aprendendo aqui. De quem? De Santo Inácio! Foi quem fundou isto, e organizou assim”.

Pela mesma época conheci os Exercícios Espirituais de Santo Inácio: “Ahhhh! Lógica! Não tem igual! Mas, então, a vida tem de ser lógica. E só tem beleza, digna de ser vivida, se for coerente. E se eu tiver que sofrer, porque essa lógica impõe um medonho sofrimento, eu quero ou não quero esse sofrimento? Já que Nosso Senhor morreu por mim na Cruz, etc., eu quero! E vou caminhar por essa via até onde tiver de ir!”

Há um entusiasmo pela lógica que vale mais do que qualquer entusiasmo sentido. E esse é de fato o esteio da alma. Porque o entusiasmo pela sensação é como a maré: sobe, desce de acordo com a lua. Mas, pela lógica, não. Sendo-se inteiramente lógico, inexoravelmente as coisas caminham.

O entusiasmo vem da persuasão de que tudo o que não vá na via da lógica acaba sendo mentira, fraude, frustração, catástrofe, derrota, sujeira.

Por maiores que sejam as adversidades que venham por cima de nós, se formos lógicos, o resultado acaba sendo magnífico.