A observação e análise da realidade com os critérios da Fé estavam na base do pensamento filosófico de Dr. Plinio. Não era ele um filósofo abstrato, e sabia, no dia-a-dia, mesmo passeando de bonde, elevar-se do
criado ao mundo dos arquétipos, com a ajuda da graça. Eis a transcrição de uma de suas reflexões acerca do valor da lógica e do raciocínio.

No meu tempo de menino e adolescente, isto é, de 1908 a 1928, costumava-se desdenhar a potência da alma que, de modo primordial, faz a verdadeira grandeza do homem — a vontade.

Como se sabe, a inteligência é um dom natural, passível de se aprimorar, porém não ultrapassando um determinado limite. A vontade, pelo contrário, em certo sentido da palavra é ilimitada, pois é a capacidade que temos de amar, como também de odiar. É segundo ela, e não pela inteligência, que seremos julgados. Com efeito, o homem bom possui vontade reta, e o mérito de nossa vida, com vistas à existência eterna, deriva da retidão da vontade e não da maior ou menor inteligência.

Nem tudo se reduz ao raciocínio

Ora, chamava-me a atenção o fato de os homens da geração anterior à minha realçarem muito o valor da inteligência e do raciocínio. Se, de um lado, essa atitude me entusiasmava (pois me encantava
raciocinar), de outro, percebia que nem tudo podia se reduzir às excogitações, posto ser dado ao homem adquirir muitos conhecimentos não provenientes de sua faculdade intelectiva.

“Em meu isolamento durante os trajetos de bonde, raciocinava e pensava em diversos problemas, procurando na
Doutrina Católica a solução e a verdade”

Entretanto, não me atrevia a fazer aos meus professores, que exaltavam o raciocínio, a seguinte pergunta: “Existe o silogismo: todo homem é mortal; Pedro é homem; logo, Pedro é mortal. Mas, se o conhecimento vem do raciocínio, como posso saber que todo homem é mortal? Em segundo lugar, como sei que Pedro é homem? E, sobretudo, a questão mais delicada: como sei que Pedro é mortal também? Só pelo raciocínio? Ó razão! Se for para te apanhar com tuas próprias garras, onde estás? Qual é o ponto de partida?

“Em outros termos: se da premissa todo homem é mortal, aliada à premissa Pedro é homem, eu concluo que Pedro é mortal, então eu cheguei a esta conclusão a partir de duas premissas derivadas de onde?”

Perguntava-me, assim, qual seria o primeiro pensamento que justificava todos os outros, e qual a razão prévia que fundamentava a ponderação inicial. Esse é um problema pertencente à parte da filosofia chamada criteriologia.

Lembro-me de que, em meu tranqüilo isolamento durante os trajetos de bonde, olhando para as coisas da rua sem
prestar muita atenção, eu ficava pensando, pensando, pensando… “Solidões em bonde” — quantas recordações poderia escrever sob esse título! Momentos nos quais me vinham à mente raciocínios semelhantes ao evocado acima. E, como sempre, pela graça de Deus, reportava-me à Doutrina Católica para aprender a verdade.

O interessante de uma “problemoteca”

Assim, durante anos mantive em meu espírito uma espécie de arquivo de perguntas e de problemas para os quais não tinha respostas. Quando surgiam fatos ou dados novos, relacionava-os com o
arquivo, e pensava: “Isto está resolvido; aquilo ainda não…”. Era uma “problemoteca”, quase tão interessante quanto a “solucionoteca”.

As dificuldades desse gênero tornam a vida atraente, pois um problema é como um licor que se começa a tomar, ou como uma flor cujo perfume nos acaricia. Quando se tem Fé, e sabe-se que a Igreja nos oferece a solução para qualquer dúvida relacionada com ela, não devemos nos furtar de sorver o perfume da flor, com receio de encontrar um
verme escondido na corola. Não! Respira-se a plenos pulmões, porque essa corola se reveste do carisma da infalibilidade, que jamais
cessará de atender inteiramente o nosso desejo da verdade.

Portanto, o problema não é uma charada, e sim uma primeira abordagem, no fim da qual a Igreja nos sorrirá e dirá: “Meu filho, a verdade é esta”. E nós repousaremos na posse da verdade. Nesse sentido, a “problemoteca” é mais um conjunto de botões a desabrocharem do que caroços a serem descartados.

Na minha “problemoteca”, a pergunta acerca do raciocínio e da lógica ficou guardada por longo tempo…

As harmonias da criação, como a existente entre o céu e o mar, nos fazem apreciar a ordem do universo…

O senso do ser, base do conhecimento

Até encontrar a resposta em São Tomás de Aquino. Folheei-o nas minhas poucas horas vagas, e ele me forneceu a explicação perfeita para o assunto.

Segundo o Doutor Angélico, existem os transcendentais e os primeiros princípios do ser, caso contrário ninguém poderia construir a base na qual se assenta o raciocínio. Entre esses conceitos fundamentais está, exatamente, o senso do ser, por meio do qual sabemos que existimos, nós e os nossos semelhantes, e que somos distintos uns dos outros. A partir dessas
noções iniciais, é possível fazer um ato de confiança na verdade que nos é dita de fora para dentro.

Assim, fito o céu e digo: “É azul”. Alguém perguntará:

— Como sabe que é azul?

— Porque eu sei que a palavra “azul” indica a mesma cor de muitas outras coisas. E se me perguntarem como sei que
esta cor está presente nessas outras coisas, respondo: porque eu vi, e sei que conheci a verdade por causa do senso do ser
arraigado em minha alma.

Portanto, há uma convicção primeira, um lumen concedido por Deus à nossa inteligência, o qual nos confere esse senso do ser e a capacidade de sabermos de muitas
coisas, pelo próprio fato de sermos homens. É esse senso do ser que nos faz conhecer e amar a ordem do universo. E percebendo
esta, não podemos deixar de notar — sem que seja necessária uma aula de filosofia — que todas as formas de ordem são conexas, irmãs umas das outras, como as notas de uma música. A música é uma ordem de notas. O universo é uma música de realidade.

… enquanto o gosto pelas desarmonias — como o ulular cacofônico do jazz band — revela uma sede inconfessada de caos

A felicidade de admirar a ordem do universo

A natureza — e muito mais a graça — nos convida a nos maravilharmos ao contemplá-la, e a ter aquela forma de felicidade que o admirar a ordem traz consigo:

“Que beleza! E percebendo que ainda poderia ser mais belo e melhor, minha alma gostaria de contemplar o que está acima e por detrás do que vejo. O quê e como será? Oh! Como é agradável olhar para o ponto em que o mar se encosta no céu, sabendo entretanto que esse encontro não se realiza, pois há outros mares, outros mares e outros mares! E há outros céus e outros céus! Como seria bonito se, nesse ponto de união imaginário, houvesse uma escada conduzindo àquele lugar além do mar e além do céu!”

Essa alegria da admiração é despertada não apenas a propósito das realidades inanimadas, mas também em relação às pessoas. Às vezes discernimos nas diferentes almas, ora uma tradição que corusca, ora um ato de fé que reluz, ora uma forma de retidão que se manifesta. E somos levados a dizer: “Como são belas as almas vistas nesses momentos! Como é agradável olhá-las! Como é nobre considerá-las! Como seria uma alma que só tivesse momentos assim!? Como seria admirável o mundo se as almas fossem perfeitas, como percebo que devem ser! Como tudo isto me eleva, pois me
conduz ao conhecimento de uma harmonia muito mais valiosa do que as harmonias
do universo inanimado, pois as almas são os símbolos espirituais do próprio Deus. Oh! maravilha! Oh! beleza!”

Compreendemos, assim, que a ordem do universo encerra esplendores que constituem um Céu na Terra. Sentir essa ordem, analisá-la e, a partir dela, formular um conceito que aponta para Deus onipotente, faz
com que as partes mais nobres de nossa alma tendam para o infinito.

Harmonias e desarmonias

É interessante notar que o gosto pela ordem do universo é similar àquele que experimentamos com as harmonias musicais, por exemplo. Alguém pode apreciar muito a nota “dó”, ou a “ré”, mas nunca levará essa preferência ao extremo de não querer ouvir as outras notas, reunidas para compor uma melodia. Assim também, devemos nos comprazer com as coisas cada qual em seu próprio âmbito, porém completadas por outras, à maneira das notas numa música.

A esse propósito, lembro-me de que, no meu tempo de menino, os valores que nos vinham da velha tradição européia eram, em geral, todos feitos de afinidades. Tinha-se a noção de que o afim era uma regra da vida. E mesmo quando algo parecia desarmônico, por detrás se encontrava uma harmonia oculta. Como era o caso de uma composição de um músico europeu, na qual ele tocava duas notas dissonantes. Entretanto, eu percebi
que o artista vibrava aquelas notas à maneira de uma espièglerie, ou seja, como gracejo de alguém esperto que comete um erro e logo o repara, para demonstrar destreza.

Assim, a música passeava harmonicamente, retornando de quando em quando àquela cacofonia, consertada em guirlandas de acordes, para em seguida desafinar
outra vez. Eu pensei: “Como é inteligente esse jogo, e como o autor faz malabarismos com as notas!”

Mas, apesar de tudo, essa música não me agradava, porque continha uma gota de desarmonia. E por menor que esta
seja, eu a rejeito. Lembro-me de meu horror ao escutar as primeiras músicas de jazz band, verdadeiro ulular da cacofonia. Entrei numa sala onde alguns homens as tocavam, um deles manobrando o saxofone, como faria um bêbabdo com sua garrafa: voltava o instrumento para trás e depois se balançava para a frente, com todos os meneios do ébrio. Do outro lado, o trombonista esticava e encolhia a vara do seu trombone,
de metal niquelado. Minha impressão era a de estar dentro de um circo de palhaços. Mas aí havia senhoras dignas, sentadas com toda a calma, como se aquilo não as desagradasse. Presentes também casais que, dançando ao ritmo daquelas músicas, pareciam enlouquecer. Era bem o que eu não queria!

Ora, a música com aquela espièglerie (mencionada anteriormente), com seu pingo de desarmonia, era a bisavó do jazz band. Alguém poderá objetar: “Mas essa espièglerie é muito engraçadinha…”. Eu respondo: passou de contrabando algo que não deveria ter entrado na arte musical. Quando um indivíduo sente o desejo de beber uma gota de desarmonia, ele conserva no fundo da
alma uma inconfessada sede de caos.

Se, no meu tempo, eu afirmasse não gostar do jazz, “desabaria a casa” sobre minha cabeça. Era prematuro. Então, tomei um ar de naturalidade diante daquela execução musical, mas nos meus círculos de amigos eu procurava manter toda a polidez antiga, como meio de preservar e aperfeiçoar a harmonia de minha alma. Comecei a me deslumbrar com o Ancien Régime1, percebendo que neste ainda estava presente a Idade Média. Pus-me à procura de uma luz mais ou menos como quem caminhasse rumo ao sol, no ocaso, com a esperança de que, à força de andar para trás, encontrá-lo-ia ao meio-dia!

Harmonias que governam e movem outras harmonias

Encantava-me também outra forma de harmonia, não já de caráter horizontal (como a que acabo de descrever), mas oblíqua. Eram, então, diversas coisas iguais entre si, tendo como causa primeira uma harmonia
superior que as ordenava e movia. Um ponto mais alto, mais nobre, mais
excelente, que possuía a força de gerar uma órbita em torno de si.

Nesse sentido, deleitava-me apreciar, por exemplo, a influência boa de um professor inteligente dentro da sala de aula. Ele transmitia
determinado ensinamento que atraía a atenção dos inteligentes, e o aluno medíocre, sem vistas para notar a qualidade do professor, acabava percebendo-o, por
causa do companheiro inteligente. Assim é a vida: o olhar do medíocre alcança discernir o colega sagaz, porém não chega a reconhecer o mestre sábio, que paira acima deles. O medíocre confunde o bom professor com aquele que demonstra facilidade de expressão. Coisa bem distinta da inteligência…

O professor de categoria ensina o aluno inteligente e este, sem se dar conta,
eleva o colega medíocre. Este, por sua vez, à procura de claque, arrasta atrás de si os mais fracos, e desse modo a classe inteira cresce culturalmente.

Essa espécie de regra de três que ressoa como uma nota com os seus vários ecos ao longo das vastidões de um país, de uma cidade, de uma família ou de uma sala de aula, sempre me encantou.

“Afinal, encontrei o princípio ordenador de tudo, aquilo sem o quê eu ficaria louco: a infalibilidade pontifícia!”

Infalibilidade papal, princípio ordenador de tudo

Ora, em meio a esses embevecimentos, eu sentia o choque com o mundo moderno, e percebia que, em geral, os maus elementos detinham o prestígio nas salas de aula. Para contra-arrestar a sua má influência, eu preparava argumentos lógicos e os soltava nas discussões com eles. Então eu notava que os alunos ruins recebiam aplausos de todos, e a lógica não persuadia, ou o fazia em escala mínima, não chegando a mudar a mentalidade de ninguém.

“Mas, se a lógica não convence, quem convencerá?” — perguntava-me. Tudo era jazz band para esses meus colegas. Jazz band de idéias, de sentimentos, de música, de negócios! Como Deus podia permitir que o homem, rei da Criação, vivesse no caos enquanto passeava num jardim mais ordenado do que o de
Versailles, ou seja, em meio à natureza feita por Ele? Não era possível!

Então, qual é o princípio que ordenaria tudo?

Em certo momento, fiat lux, ficou-me claro: é a infalibilidade papal.

Aquela infalibilidade que comecei a amar na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, nas suas imagens, na sua liturgia, nas suas cores, no órgão e em tantos de seus outros aspectos. Tudo o que eu examinava nela só produzia em mim a sensação de unum e de harmonia. Impressões que me falavam sempre da ordem universal. Passei inclusive a perceber que meu amor a essa ordem do universo vinha do fato de
eu ser uma célula viva daquela Igreja. Ela era, de modo magnífico, o exemplo, o padrão, a geradora da ordem.

Entusiasmava-me saber que a Igreja é infalível, e que no seu comando existe um homem capaz de reunir os bispos do mundo inteiro num concílio e proclamar: “Eu, presidindo o concílio, sou infalível. Mas sem o concílio sou também infalível! E, invocando o carisma da infalibilidade, em nome do Apóstolo Pedro, do qual sou sucessor, eu defino um dogma e todos acertam o seu
pensamento comigo!”

Sessão do Concílio Vaticano II e imagem de Papa, em Roma

Oh! Que maravilha! Encontrei aquilo sem o quê eu ficaria louco, e o mundo inteiro — não se sujeitando a essa inerrância — cairia em desvario.

Alguém dirá: “Mas, não havia na época do senhor, milhões de brasileiros que acreditavam na infabilidade papal?”

Eu respondo: Claro, havia. Ainda há. Mas quantos levavam as conseqüências dessa crença a um extremo de veneração e de entusiasmo, compreendendo que os dogmas que o Papa define são sóis dentro do firmamento das verdades que a Igreja ensina, das quais decorrem, por via de conseqüência, inúmeras outras verdades que regem a ordem temporal?

Um ensina e outros obedecem. Em torno daquele gravita o mundo. Unidade e harmonia. Estava encontrado!

1) Período da História da França que precede a Revolução Francesa.