Dona Lucilia em 1959

Dr. Plinio não perdia ocasião para retribuir o afeto de sua mãe. Isto compensava, de alguma forma, as ausências impostas por suas obrigações e, sobretudo, a aliviava do isolamento. Muitas vezes externava este reconhecimento por amenos gracejos: o invólucro de um dito espirituoso dava maior alcance aos seus filiais sentimentos.

“Minha mãe é muito melhor que a sua!”

Certa ocasião, estando Dª Lucilia no “Salão Azul”, sentada ao lado do “filhão” em agradável conversa, ele lhe perguntou, referindo-se ao quadro de Dª Gabriela:

— Mamãe, quem é aquela senhora que está naquele quadro?

Dona Lucilia, estranhando a pergunta, respondeu num tom de voz que denotava ligeira surpresa:

— Meu filho… aquela é mamãe…

— Pois, olhe, minha mãe é muito melhor que a sua!

Dona Lucilia, um pouco desconcertada diante de um elogio que a colocava acima de sua própria mãe, a quem muito admirava, não tendo o que responder, tocando com a ponta dos dedos suavemente na mão de Dr. Plinio, como era seu hábito, apenas lhe disse:

— Ora!… meu filho, meu filho…

Quando muito elogiada por ele, Dª Lucilia alegava serem exagerados seus ditos, por não merecer tanto. Ele brincava então, e lhe chamava “Madame Merece Mais”, não permitindo que ela vencesse a carinhosa disputa. Dava-lhe a entender desse modo o quanto seus louvores ficavam sempre aquém da realidade.Um dia ele lhe perguntou com uma pontinha de afetuosa ironia:

“Minha mãe é muito melhor que a sua!” — dizia Dr. Plinio a Dona Lucilia, referindo-se à avó, Dona Gabriela (acima)

— Mamãe, eu sou o filho que a senhora esperava?

Sem aguardar resposta, continuou:

— De fato, a senhora gostaria que eu fosse um advogado brilhante, com barba longa…

Era o tipo humano do homem bem-apessoado do tempo do pai dela, Dr. Antônio.

— Pois bem — concluiu ele — a senhora acabou tendo um filho polemista!

Na intimidade, Dr. Plinio não poupava elogios nem manifestações de carinho à sua mãe, deixando-a por vezes enternecida. Era nessas ocasiões que, imitando sotaque português, Dr. João Paulo dizia a ela, gracejando:

— Não te derretas!…

Distraindo-se com um orador português

Quando Dª Lucilia manifestava um certo gosto pelo pitoresco ou mesmo pelo espirituoso, fazia-o sem empanar a atmosfera de respeitabilidade que sua presença suscitava. Certo dia ela foi levada por seu filho para assistir a uma conferência numa semana de estudos, durante a qual fez uso da palavra um professor universitário luso. Em seu discurso, que ele iniciou como quem tivesse saído da platéia improvisadamente, teve alguns ditos engraçados, à maneira portuguesa.

Dona Lucilia estava sentada logo nas primeiras fileiras. Em determinado momento, Dr. Plinio, que presidia à sessão, ao correr os olhos sobre o auditório, discerniu pelo todo de sua mãe estar ela achando que o orador empregava com acerto uma jocosidade de boa lei. De tal maneira que, com um lencinho, ela procurava ocultar o riso…

Ao chegar de volta, Dª Lucilia comentou com Dr. João Paulo ter assistido à conferência de um professor espirituoso, contou como eram os modos dele, e manifestou ter gostado muito. Ouvindo isto, Dr. Plinio convidou certa noite aquele conferencista para ir à sua casa, a fim de lhe apresentar seus pais. Na verdade, seu objetivo — sem que o convidado percebesse — era bem outro: entreter Dª Lucilia com sua prosa.

Realizado o encontro, não demorou muito para que o bom lusitano começasse a contar fatos pitorescos, entremeados de gracejos, novamente distraindo Dª Lucilia.

Depois que o visitante se retirou, ela agradeceu a seu filho por lhe ter proporcionado uma noite muito agradável.

“Apesar disso — comenta Dr. Plinio — ela não era freqüentadora do riso. Em sua vida, esse é um dos poucos fatos do gênero.”

“Ih, Plinio… mistura explosiva!”

Transcorria ainda o ano de 1956. No saguão de entrada do edifício da Rua Vieira de Carvalho, um jovem de seus 17 anos aguardava a chegada do elevador quando, ao olhar para o portal, viu entrar uma distinta senhora. Era Dª Lucilia, que voltava de algum passeio com Dr. Plinio, e ambos se dirigiam ao sexto andar, onde Dr. João Paulo os aguardava para retornarem ao apartamento da Rua Alagoas. Dona Lucilia procurava apoiar-se no braço esquerdo de Dr. Plinio a fim de subir uns três ou quatro degraus. Imediatamente aquele jovem desceu e lhe ofereceu o braço direito. Ela, com toda a naturalidade aceitou, apoiando-se levemente, solícita em não pesar sobre quem a ajudava. Tendo chegado o elevador, o jovem abriu a porta para que passassem ela e Dr. Plinio, o qual — grata surpresa! — o convidou a entrar também.

Como se tratasse de um novato discípulo de Dr. Plinio, este o apresentou a Dª Lucilia, de uma forma um pouco mais íntima e espirituosa:

— Mamãe, este aqui é fulano, filho de italiana e de espanhol.

Com ar bondoso, ela olhou para o rapaz e franziu um pouco a testa, dando a entender que o analisava com especial atenção. Em seguida, voltou-se para seu filho, esboçou um ligeiro sorriso e, com leve ponta de simpático gracejo, disse de modo amável:

— Ih! Plinio… mistura explosiva, não?!

Aquele jovem nunca mais se esqueceria de tão doce e feliz encontro.

O encanto de um “hidalgo” espanhol

Bastava alguém ter a alma aberta ao sobrenatural para, estando com Dª Lucilia, mesmo sem a conhecer mais a fundo, logo se sentir atraído por sua grande benevolência. Eram os lados bons da alma que se rejubilavam e se sentiam fortalecidos, reanimados, no convívio com ela. Foi o que aconteceu a um hidalgo1 espanhol de passagem por São Paulo.

Certo dia, muito cedo, soou a campainha do apartamento. Tendo atendido à porta, a empregada procurou Dr. Plinio e lhe comunicou encontrar-se no hall um estranho, falando uma língua que ela não entendia. Ele foi ver de quem se tratava e deparou um senhor com qual travara amizade em uma de suas viagens à Espanha. Alto e bem-apessoado, aparentava provir de nobre estirpe. Na verdade, era fidalgo.

A visita inesperada dava-se em hora pouco habitual, e toda a família ainda dormia. Pelo fato de a empregada não entender suas palavras, e talvez devido ao cansaço da viagem, o recém-chegado parecia um tanto impaciente. Dr. Plinio recebeu-o com amabilidade e o convidou para jantar em casa naquela noite.

À hora aprazada, naturalmente estavam também à mesa os pais de Dr. Plinio. Tão logo Dª Lucilia foi apresentada ao visitante, este ficou cativado pela transbordante bondade dela. Durante toda a refeição, repetidas vezes a olhava com evidente encanto.

Em dado momento, voltou-se para Dr. Plinio e exclamou com a ênfase própria do povo a que pertencia: “¡Como me gusta, ella!2. E para melhor manifestar sua simpatia, pousou sua mão sobre a dela e começou a agradá-la, repetindo várias vezes a mesma exclamação. Dona Lucilia ficou um tanto incomodada pelo amável gesto do conviva. Entretanto, sempre cerimoniosa, nada deixou transparecer.

A cena marcou profundamente a Dr. Plinio, não só pela forma inusual, se bem que fidalga e franca, com que o visitante expressou seus sentimentos, mas sobretudo porque alguém, de temperamento tão diferente do brasileiro, mostrava-se de tal modo sensível às qualidades de alma de Dª Lucilia.

Olhos contemplativos nos quais há um firmamento

Após um quente dia de verão, em janeiro de 1959, quando o frescor da noite parecia dar descanso ao exuberante arvoredo de algumas ruas paulistanas, podia-se assistir a uma cena especialmente bela: auxiliada por seu “filhão”, Dª Lucilia, num passo lento e quase solene, se aproximava da porta de entrada do auditório onde se realizaria a sessão de encerramento da Semana de Estudos do grupo dirigido por Dr. Plinio.

Aspectos da conferência pública de Dr. Plinio, em 1959, assistida por Dona Lucilia

Seria essa uma das últimas conferências públicas de seu filho a que ela compareceria. Para Dª Lucilia, aquele salão repleto de jovens borbulhantes de animação, era certamente uma resposta da Providência a suas confiantes e incansáveis orações, que agora surtiam abundantes frutos. Tantos e tão entusiásticos seguidores de ideais desprezados e hostilizados pelo mundo moderno constituíam certamente para Dª Lucilia uma promessa de que, no futuro, muitos mais seriam suscitados por Nossa Senhora.

Enquanto percorria, num pensativo silêncio, o espaço que a separava de seu lugar no auditório, essas e outras reflexões deviam lhe povoar a mente. Estava longe de imaginar que, após chegar à eternidade, a Providência Divina lhe daria por filhos muitos dos jovens ali presentes, bem como incontáveis outros que ainda viriam, coroando de modo inesperado sua ampla vocação materna.

Uma fotografia tirada nessa ocasião (abaixo), quiçá seja das que melhor expressam seu feitio psicológico e moral. Como a luz suave do luar dissipa as trevas, mas não ofusca, assim transparece, amena mas intensamente, neste retrato, a aristocrática presença de Dª Lucilia.

Em seu olhar contemplativo, à procura de um firmamento, nos é permitido entrever certo fundo de tristeza e melancolia, ao qual se mescla um quê de meiguice, presente como sempre em todas as suas atitudes. O modo de reter a bolsa e apoiar com leveza a mão sobre ela, como também de ajeitar o xale, denota gestos inadvertidos, mas muito distintos. De outro lado, vê-se que ela não está alheia à realidade externa e acompanha a conferência sem se distrair. No entanto, a expressão de sua fisionomia é de quem tem o melhor de sua atenção voltada para pensamentos superiores.

Essa magnífica conjugação de bom senso e elevação de alma, características marcantes do espírito católico medieval, pervadiam a nobre alma de Dª Lucilia em pleno século XX.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) “Fidalgo”, em espanhol.

2) “Como eu gosto dela!”, em espanhol.