Ao se humilhar diante de Deus, o pecador dispõe sua alma para receber o perdão divino
“O filho pródigo”, Catedral de Colmar (França); na pág. 17, iluminura para o Salmo 31, das “Ricas Horas do Duc de Berry”

Há séculos a Igreja reza — e por vezes canta — os Salmos Penitenciais, nascidos da profunda contrição do Rei David. Desejando manifestar o especial enlevo que nutria pelas palavras do salmista, Dr. Plinio dedicou-lhes diversos comentários. Como estes que a seguir transcrevemos, sobre o Salmo 31, onde nos mostra quão belo é o sincero pedido de perdão, e o quanto Deus recebe com amor aqueles a quem concede a graça do verdadeiro arrependimento.

O Salmo 31 se refere não apenas à situação do pecador que constata a sua falta e pede perdão a Deus, mas também à cólera divina que ele sente cair sobre si. E o salmista descreve tudo quanto lhe aconteceu de mau: fora dele, a perseguição dos inimigos; no seu interior, a decrepitude de sua pessoa, afetando até seus ossos. Pois ele passou as noites chorando e lavando o próprio leito com suas lágrimas, porque não conseguia conciliar o sono. Para ele, o dia se confundia com a noite, ambos são trevas.

Uma “estrela d’alva” na noite da contrição

Os Salmos Penitenciais falam a respeito do pecado, da dor de quem o praticou e do pedido de misericórdia dirigido a Deus. Porém, sua nota dominante não é o acolhimento celeste dispensado a essa solicitação.

Contudo, neste texto a idéia que desponta de maneira muito clara é a da clemência divina, obtida depois de tão impetrada. O Altíssimo começa a perdoar e passa a conceder graças ao pecador. Vemos, então, uma forma de reconciliação estável entre Deus e o faltoso arrependido.

É compreensível essa seqüência, pois o perdão de Deus é uma graça de valor infinito. Alcançamos essa dádiva quando a rogamos retamente, com a dor necessária, confiando a Maria nossos sofrimentos, implorando a Ela que transmita nossa súplica a Jesus, à Santíssima Trindade, dando-nos a esperança de nos advir algum benefício.

Há assim uma espécie de estrela d’alva que aparece dentro dessa noite da contrição, precursora do momento em que o sol do perdão nascerá para o penitente. Ela brilha e ilumina, de vez em quando, aquele período escuro de dor, de arrependimento e atrição ao qual o Salmo se refere.

Afinal, Deus, que ama o pecador e não deseja que ele morra, mas se converta e viva, manifesta-lhe gradualmente sua misericórdia. A meu ver, esta como que aurora divina é um dos belos aspectos desse Salmo, digno de ser analisado versículo por versículo, a fim de saborearmos o sentido que encerram.

Feliz o que odiou o seu pecado e abraçou a retidão

Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades foram perdoadas, e cujos pecados são apagados.

O salmista começa a falar daqueles que pecaram e foram perdoados. Trata-se dos arrependidos, chamados de “bem-aventurados” porque odiaram sua falta, abandonaram o mau caminho e entraram na via da retidão.

Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não argüiu de pecado, e cujo espírito é isento de fraude.

Salmo 31

Christus Rex Inc.

Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades foram perdoadas, e cujos pecados são apagados.

Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não argüiu de pecado, e cujo espírito é isento de fraude.

Porque me calei, os meus ossos envelheceram, enquanto eu clamava todo o dia.

Porque a tua mão tornou-se pesada sobre mim de dia e de noite; eu revolvia-me na minha dor, enquanto mais se cravava o espinho.

Eu Te manifestei o meu pecado, e não ocultei a minha injustiça.

E disse: Confessarei ao Senhor, contra mim mesmo, a minha injustiça; e Tu perdoaste a malícia do meu pecado.

Por isso orará a Ti todo [homem] santo, no tempo oportuno. E, na inundação das muitas águas, estas não se aproximarão dele.

Tu és o meu refúgio na tribulação que me cercou; ó alegria minha, livra-me dos que me cercam.

Inteligência te darei, e ensinar-te-ei o caminho que deves seguir; fixarei sobre ti os meus olhos.

Não queirais ser como o cavalo e o mulo, que não têm entendimento. Com o cabresto e com o freio, sujeita as queixadas daqueles que não quiserem obedecer-te.

Muitas dores esperam o pecador, mas o que espera no Senhor será cercado de misericórdia.

Alegrai-vos no Senhor e regozijai-vos, ó justos, e gloriai-vos todos os que sois de coração reto.

Refere-se, agora, não ao pecador contrito, mas ao inocente. Sem dúvida, nunca ter ofendido a Deus representa uma bem-aventurança maior do que haver pecado e obtido o perdão.

É interessante notar esta particularidade: enquanto aquele que procedeu incorretamente é argüido por Deus, o homem justo não tem o que temer da parte do Criador, pois Este não possui argumentos contra ele. Em nenhum momento lhe será um juiz terrível e severo, mas um Pai cheio de misericórdias.

Além disso, o espírito do inocente é “isento de fraude”, não foi manchado por nenhuma transgressão aos Mandamentos. Portanto, mais que qualquer outro, é ele o bem-aventurado.

Não se confessando, o pecador definha

Porque me calei, os meus ossos envelheceram, enquanto eu clamava todo o dia.

Trata-se aqui daquele que pecou e calou a sua falta. Quer dizer, não contou a Deus, não confessou o que fez. Em razão dessa indiferença, desse afastamento em relação a Deus, ele foi se ressecando, debilitando, definhando.

Nesse versículo há também um sentido peculiar que merece atenção: o pecador “clamava todo o dia”, mas entretanto se calou. O que podemos interpretar como tendo ele contado seu pecado a algum amigo, parente ou conhecido, não porém Àquele a quem importava revelar, isto é, a Deus Nosso Senhor.

Naquela época, a Igreja Católica não estava fundada, pois os Salmos datam de séculos anteriores a Jesus Cristo. Entretanto, uma vez instituída a Santa Igreja, o personagem por excelência com quem se deve falar é o confessor. Pecou, declare ao padre — representante de Deus e da Igreja — a sua falta e peça perdão.

Mas, se a pessoa não recorre ao tribunal da penitência, não declara o mal que praticou, mantendo-se afastada dos Sacramentos, seus ossos secam dia e noite, e sua alma vai decaindo. Pelo contrário, como adiante se verá, quando ela fala a Deus, ou seja, ao confessor, a sua alma refloresce.

Porque a tua mão tornou-se pesada sobre mim de dia e de noite…

Deus castigou esse homem, porque não tinha confessado. Então, noite e dia, para conduzi-lo à penitência, o punia.

eu revolvia-me na minha dor, enquanto mais se cravava o espinho.

Ele se remexia no seu sofrimento, e o espinho, que é a consciência do pecado cometido e não declarado a Deus, aprofundava a chaga causada pela falta. É o resultado da impenitência do indivíduo que não quer se humilhar diante de Nosso Senhor.

Inclinando-se diante de Deus

Eu Te manifestei o meu pecado, e não ocultei a minha injustiça.

E disse: Confessarei ao Senhor, contra mim mesmo, a minha injustiça…

Afinal, ele falou, confessou a Deus seu pecado. É a declaração dele: “Comparecerei diante do Senhor é falarei contra mim mesmo. Reconheço o quanto minha falta é censurável porque ofende os vossos Mandamentos. E a malícia, ó Deus, dos atos que pratiquei, também está diante de mim. E dói-me, envergonha-me ter cometido esse pecado. Aos vossos pés, meu Senhor, falo mal de mim, me inclino e peço perdão.”

Este, verdadeiramente, é o ato regenerador.

Enquanto o faltoso não toma essa atitude de penitência e humildade, reconhecendo-se indigno de estar na presença de Deus e de que sobre ele pouse o olhar infinitamente santo do Altíssimo, do qual tem vontade de fugir — ele fica posto de lado, revolvendo-se na sua dor.

Porém, se proceder como deve, e dizer: “Senhor, eu pequei. Essa ação que cometi é contrária à vossa Lei santíssima, lindíssima, boníssima, superior a todo o louvor. Foi contra ela que me revoltei. Sou, portanto, alguém que nada vale. Mas, envergonho-me e suplico que me perdoeis” — ele terá feito a confissão.

… e Tu perdoaste a malícia do meu pecado.

Todo pecado tem uma maldade intrínseca, e por isso o Salmista declara a Deus: “Meus pecados têm malícias, e quando os confessei a Vós, percebi a maldade de cada um deles.”

Por isso orará a Ti todo [homem] santo, no tempo oportuno.

O homem que assim reza, começa a se tornar santo. É como o dia que principia a nascer e o sol pousa sobre o pecador. Ele é chamado pela primeira vez de santo, porque confessou sua culpa.

Cumpre notar que a palavra “santo” não significa possuir o pecador a santidade de quem praticou as virtudes teologais e cardeais em grau heróico, mas que ele se encontra em estado de graça, é amigo de Deus.

Então o homem que confessou sua falta é justo, e no tempo oportuno rezará a Deus.

Recompensas e punições nesta Terra: inversão de papéis?

E, na inundação das muitas águas, estas não se aproximarão dele.

Ou seja, quando vierem as grandes provações, Nosso Senhor o ajudará e protegerá. Enquanto o pecador empedernido, entregue aos piores desregramentos morais, é atingido por moléstias oriundas de seus próprios pecados, o justo é poupado, e as “muitas águas” da tribulação e do horror passam ao longe, sem se aproximarem dele.

Essa reflexão me leva a externar uma impressão pessoal acerca de uma situação peculiar de nossa existencia. Os pecados e extravios da humanidade chegaram a um ponto inimaginável e, contudo, observando-se a atitude de Deus para com os homens na vida corrente — protegendo a uns contra a infelicidade e permitindo que ela aconteça a outros — parece, às vezes, que há uma inversão de papéis.

Com freqüência, vê-se que o indivíduo iníquo, fraudulento, adúltero ou ladrão é bem sucedido nos seus negócios, nas suas amizades, na sua saúde, dando a idéia de que o pecador sofre pouco nesta Terra. Pelo contrário, analisando-se a existência do homem justo, não raro se verifica que desgraças de toda ordem se abatem sobre ele.

De maneira que, quanto aos bons, para os quais se esperaria um atendimento especialmente solícito, dir-se-ia haver uma retração de Deus; e para os maus, o Criador concederia — ou permite que o demônio lhes alcance — tudo para terem uma vida feliz.

Essa situação é contemplada no Salmo 31, pois já naqueles tempos algo disso acontecia. Em suma, Deus não impede que os bons sejam provados e sofram de um modo especial, nem que as coisas agradáveis se passem com os maus, quase que recompensados nesta Terra por atos merecedores de castigos. Por quê?

Santo Agostinho o explica de forma luminosa, perguntando-se exatamente qual seria o motivo de os justos não serem premiados nem os maus punidos neste mundo. E responde:

Fotos: S. Hollmann
“Se as pessoas ordinárias soubessem que seriam felizes se fossem boas, e infelizes se ruins, praticariam o bem por interesse e não por amor a Deus” — explica Santo Agostinho (Museu de Dijon, França)

Dados o pecado original e as misérias do homem, se as pessoas ordinárias soubessem que seriam felizes se fossem boas, e infelizes se ruins, por venalidade e interesse elas praticariam o bem e não o mal. Porém, não haveria nisso nenhum amor a Deus, nenhuma adesão à virtude pela virtude, nenhuma aversão à maldade pela maldade. Por exemplo, uma mulher de péssimos costumes evitaria seus desmandos e seria casta, somente porque essa conduta lhe traria uma existência mais aprazível.

Diante dessas circunstâncias, tornar-se-ia quase impossível conduzir esta vida de maneira a diferenciar os bons dos maus, e fazer com que os primeiros provassem seu amor a Deus, e os segundos, pelo contrário, deixassem ver sua infâmia.

Ora, premiando o mau (ou ao menos permitindo que tudo de agradável lhe aconteça), e levando os bons em meio a dificuldades, Deus deixa patente o fato de que os justos seguem os mandamentos d’Ele porque O amam, e não por uma venalidade de oportunistas. A verdadeira virgem não o é por um cálculo de felicidade, e sim porque ama a virgindade. E quem se prostitui, o faz porque é vil e só deseja as vantagens terrenas.

Se assim não fosse, a vida seria incompreensível neste mundo. Ao contrário, dessa forma ela se torna inteligível e acabamos por saber quem é bom e quem é mau. Bons, aqueles que amam a virtude, vão de encontro à dor e dela se revestem como Nosso Senhor Jesus Cristo se deixou revestir da túnica com que depois foi torturado. Maus, os que correm atrás do prazeroso, e geralmente só lhes sobrevêm coisas agradáveis porque são ordinários.

Considerada assim, a felicidade seria quase um sinal do qual se deve suspeitar. Quer dizer, quando tudo é propício a alguém, tomemos cuidado, pois algo de bem pode lhe estar faltando. Por outro lado, ao vermos um coitado a quem sucede tudo de mau, examinemo-lo com simpatia e respeito, pois, embora o infortúnio não represente um signo inequívoco de virtude, é provável que o bem esteja do lado dele.

(Continua em próximo número)