Dona Lucilia aos 91 anos, tendo atrás de si a imagem do Sagrado Coração de Jesus diante da qual ela costumava passar longos períodos em oração

Sempre estendendo ao próximo a imensa bondade que a caracterizava, inclusive àqueles que a serviam nos deveres domésticos, Dª Lucilia conquistara a afeição de Olga, dedicada empregada que a auxiliou fielmente por mais de vinte anos.

O casamento de Olga

Ao cabo desse tempo, porém, Olga resolveu contrair segundo matrimônio. Caminhava já para a velhice, e sua filha Carlota atingira os 30 anos. Quando as tratativas do casamento já estavam acertadas, a Olga procurou Dª Lucilia e, apesar de um pouco embaraçada por ter de ir embora, numa situação em que seu auxílio era mais necessário, deu-lhe a notícia:

— Dª Lucilia, eu precisaria comunicar à senhora uma coisa que me entristece: vou ter de deixá-la. Mas é meu dever e vou cumpri-lo. Eu estou noiva.

Sem externar a surpresa que tal anúncio lhe causara, Dª Lucilia calmamente perguntou à empregada:

— Mas, seu futuro marido é um bom homem?

Olga respondeu que assim lhe parecia, e ele gozava de boa reputação no bairro em que morava. Ademais, tinha uma boa situação financeira, sendo proprietário de uma pequena serraria no ABC.

Sempre pensando no bem do próximo, Dª Lucilia perguntou ainda:

— O que vai ser feito da Carlota?

— Ah! Dª Lucilia, ela vai morar conosco — respondeu a Olga.

Sem deixar transparecer uma certa tristeza que a separação lhe causaria, pois tomara verdadeira afeição pela Olga e sua filha, Dª Lucilia a felicitou muito pelo novo casamento, desejando-lhe toda espécie de bênçãos e proteção divinas.

Poucos dias depois, a Olga apresentou seu noivo a Dª Lucilia e a Dr. Plinio. Tratava-se realmente de um homem sério, direito, calmo, originário de um país de língua alemã.

Afinal, passadas algumas semanas, a Olga se casou, despedindo-se com imensa gratidão de Dª Lucilia, da qual recebeu, como prova de sincero afeto, um belo presente de casamento.

Não muito tempo depois, dar-se-ia o falecimento de Dª Lucilia. Tendo perdido o endereço da Olga, Dr. Plinio não teve como lhe comunicar o fato. Qual não foi sua surpresa quando, certo dia, recebe a visita daquela antiga empregada. Ela vinha cuidadosamente trajada. Não se sabe por que vias, chegara-lhe, lá no ABC, a notícia de que Dª Lucilia deixara esta vida.

Profundamente contristada, fez referências cheias de saudades à sua antiga senhora. Pediu desculpas por só então ter sabido do triste acontecimento, e queria recordar também, naquele lar, as mil bondades de que fora objeto por parte de Dr. João Paulo, de Dr. Plinio e especialmente de sua benfeitora, deixando-lhe algumas flores no quarto.

Depois se despediu, e nunca mais Dr. Plinio teve notícia dela, nem da Carlota.

Os últimos passeios a pé pela Rua Alagoas

Após o casamento da Olga, a solidão de Dª Lucilia ainda se acentuou algum tanto, pois a nova empregada que Dr. Plinio se apressou a contratar, por melhor que fosse, era estranha à casa, e com ela Dª Lucilia não poderia ter desde logo o mesmo trato estabelecido ao longo dos anos com a anterior.

Para quebrar a monotonia de um dia sempre igual ao outro, Dr. Plinio saía de vez em quando com sua mãe a passear pela calçada da Rua Alagoas. Nunca a levava até a Praça Buenos Aires, com receio de atravessar com ela a super-movimentada avenida Angélica. Seguia, pois, em sentido oposto à referida praça, por uma rua naquele tempo muito menos freqüentada que hoje em dia, onde ainda subsistia grande número de belas casas ajardinadas.

Quando o sol diminuía o rigor de seus raios, iam andando os dois, bem devagarzinho, entretendo-se numa ligeira prosinha. Dona Lucilia gostava muito de apreciar as flores dos sucessivos jardins pelos quais passava, considerando sempre o aspecto superior do que fosse digno de admiração. Era a delicadeza de uma rosa, ou o vivo colorido de outra, ou o franzido das pétalas de um cravo, ou o suave perfume exalado por elas. Assim, considerando as minúcias sem conta da vida de todos os dias, mantinha as vistas sempre voltadas para as alturas.


Se a vegetação dos jardins procurava irromper através das grades que os cercavam, e alguma florzinha bonita se inclinava ao alcance de sua mão, ela a olhava com agrado, aspirava-lhe o perfume e fazia comentários com seu filho. Ele concordava, mas achando muito mais bonita a alma de sua mãe do que a própria flor…

No fundo, em seus comentários minuciosos, coerentes, maravilhados, Dª Lucilia se reportava implicitamente ao Divino Criador daquelas pequenas maravilhas.

Um jovem amigo de Dr. Plinio, que então seguia a carreira militar, certo dia presenciou um desses passeios, enlevando-se com aquela sublime união de almas entre mãe e filho, e nunca mais se esqueceu da extrema e incomparável bondade com a qual Dª Lucilia o tratou, quando lhe foi apresentado.

Derradeira visita à “sua” Igreja do Sagrado Coração de Jesus

Há muito tempo não visitava ela a igreja com a qual sentia enorme consonância, cenário de tantos colóquios seus com Nosso Senhor, e à qual se referia como “a minha Igreja do Sagrado Coração de Jesus”. Certo dia Dr. Plinio lhe propôs uma ida àquele santuário, a fim de rezar ali o tempo que quisesse. A este grato convite aquiesceu ela de imediato.

A intimidade indizivelmente respeitosa de Dª Lucilia com seu Divino Mestre tomava colorido próprio quando ela atravessava aqueles sagrados umbrais. De fato, o ambiente sacralmente sério do interior desse templo é muito propício à meditação e à reflexão, para o que contribui a agradável proporção entre altura, largura e comprimento do belo edifício.

A luz de seus vitrais difunde cores matizadas, que o enchem de acolhedora penumbra. E nele há qualquer coisa de balsâmico, de um discreto e perfumado azeite, que impregna de gravidade e afabilidade todo o ambiente, ao mesmo tempo que “sussurra” ao fiel: Tu já sofreste, mas terás que sofrer ainda mais. Aqui entretanto acharás um lenitivo. A vida é assim mesmo! Mas entre as paredes deste edifício encontrarás ajuda para sofrer. A igreja, de fato, comunica também, e harmonicamente, esperanças de alívio, de ajuda, e de situações que justifiquem a cristã alegria.

Assim, nessa igreja, verdadeiro escrínio de bênçãos, dir-se-ia que a graça é como uma garoa, uma finíssima neblina que se difunde, orvalhando as almas…

Tendo Dª Lucilia ali chegado acompanhada de seu filho, percorreu em recolhida peregrinação os vários altares, embora locomovendo-se penosamente. Rezou e rezou por longo tempo. Percebia-se que de vez em quando pedia perdão, pois batia no peito com discrição. Deteve-se em especial ante a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora.

Depois passou para a outra nave, fazendo uma profunda vênia diante do sacrário do altar-mor, onde estava o Santíssimo Sacramento, pois suas condições não permitiam ajoelhar-se, e parou demoradamente aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus, que representava o ponto central da vida interior de Dª Lucilia. Sua alma ansiava por encontrar no Divino Redentor o termo de seu próprio afeto, de tal forma que, se não O conhecesse, ela O procuraria. E tendo-O encontrado, logo O identificaria como sendo Aquele que procurava.

No íntimo de sua alma, Dª Lucilia assim concebia a fisionomia moral do Sagrado Coração de Jesus: enormemente sério e triste, perto do qual o pecador se sente pequenino, dada a imensidade d’Ele, não pela estatura física, mas por suas altíssimas e insondáveis cogitações, próprias a uma criatura humana unida hipostaticamente a Deus. De dentro dessa seriedade, um olhar doce envolve e penetra o homem que O adora. E, no fundo desse afeto, uma pergunta implícita, uma censura nobremente interrogativa, dirigida ao pecador: “Por tão pouco fizeste tanto mal? Por isto estou sofrendo! Eu te amo e te perdôo, mas quero que penses nisto: por tão pouco fizeste tanto mal… Será que levarás tua torpeza e tua maldade a tal ponto que, vendo-me nesta atitude de suave perdão, ainda te manténs duro?”

“O Menino Jesus discute com os doutores do Templo” – grupo escultural na Igreja do Coração de Jesus; na pág. anterior, aspectos da mesma igreja

Terminado seu piedoso colóquio com Nosso Senhor, Dª Lucilia dirigiu-se ao grupo escultórico situado quase ao fim da nave lateral esquerda, representando o encontro do Menino Jesus no Templo entre os doutores da Lei. Havia quase cinqüenta anos que ela, diante dessa imagem do Divino Infante, costumava pedir com insistência graças abundantes, para que seu filho enfrentasse vitoriosamente as lutas da perseverança e da santificação, assim como as empreendidas em favor da causa católica. Bem sabia ela que “a vida do homem sobre a Terra é uma guerra” (Jó 7,1).

Ela vivia na atmosfera do Sagrado Coração

Após saudar com o olhar outras imagens, os vitrais que tingiam com sua luz colorida as colunas da lateral esquerda e o imponente órgão ao fundo, Dª Lucilia, com a alma cheia, se retirou, apoiada no braço de seu filhão. Foi uma visita de despedida e de preparação para a eternidade. Quando saíram, o sol estava emitindo seus últimos raios dourados. Horas inteiras haviam-se passado…

No fundo da bondade luciliana encontramos essa identidade de espírito com o Sagrado Coração de Jesus, que a fazia manifestar aos outros a imensidade do amor de Nosso Senhor, como que dizendo: “Vê bem que não faltam razões para confiar n’Ele. Pede porque serás atendido; as portas da misericórdia estão abertas para ti”.

Dona Lucilia vivia intensamente dentro dessa atmosfera do Sagrado Coração de Jesus, transpassado de dor pelos pecados dos homens, e cheio do desejo de perdoá-los. Como o bom discípulo em algo se parece com o Mestre, percebia-se inúmeras vezes que ela interiormente lamentava, deplorava, sofria e perdoa­va, em uníssono com o Sagrado Coração de Jesus.

(Transcrito, com adaptações da obra “Dona Lucilia”, de João Clá Dias)