Vivendo no Éden, o hipotético Abel inocente teria uma condição ímpar, usando todo o Paraíso para se aprimorar de maneira contínua
“Jardim do Paraíso”

Dando seqüência ao tema publicado em números passados, Dr. Plinio aprofunda suas explicitações acerca da capacidade de selecionar, distinguir e ordenar de uma alma que, após o batismo, conserva a inocência aliada à graça de Deus.

Em anterior exposição1 imaginamos como seria um hipotético Abel, nascido no Paraíso terrestre e concebido sem pecado original, caso Adão não tivesse caído. Excogitamos, ainda, o modo pelo qual perceberia e conheceria todas as coisas, analisando, compondo e transpondo em termos teóricos, doutrinários, a noção do conjunto formado por elas.

Raridade e unicidade

Esse Abel poderia ser mais filósofo do que São Tomás de Aquino, sem os esforços heróicos realizados pelo Doutor Angélico para raciocinar. Calmamente, como se respira, ele filosofaria, e atingiria alturas onde, talvez, o grande Santo Tomás não tenha chegado. Assim seria o nosso Abel inocente, vivendo no jardim do Éden.

Entretanto, ele acabaria por se dar conta de que era único e, como todo o Paraíso, tinha inúmeras qualidades. Homem robusto, de proporcionada compleição e muita categoria, poucos lhe seriam parecidos e nenhum idêntico a ele. Quando essa noção de raridade e unicidade se configurasse em seu espírito, ele cantaria — transbordante de alegria — um Magnificat ou Te Deum, porque percebera sua condição ímpar: “Eu, Abel, sob certo ponto de vista, sou raro como aquela flor que admirei há pouco. E como Deus não cria dois seres iguais, semelhante a mim não criou nem criará ninguém”.

Assim, tudo quanto seus instintos e sentidos tinham lhe indicado como conveniente ou não, desabrocharia, e Abel compreenderia, na sua ordenação, os predicados que possuía, como devia ser e realizar sua unicidade, como atingiria sua perfeição, usando todo o Paraíso para se aprimorar continuamente.

Descrevemos dessa sorte um inocente concebido sem pecado original, cujo seletivo é o próprio ser. Ele se conhecia não como nos conhecemos a nós mesmos. Vejo meus olhos, mas não sou capaz de olhar meu fundo de olho. Um oculista o consegue através de aparelhos adequados para isso, mas eu não. De maneira análoga, não somos aptos a ver nosso fundo de alma como Abel inocente o era. E ele percebia tudo o que lhe convinha, pois era perfeitamente ordenado.

Podemos, então, ter idéia de como era Nossa Senhora, do profundo significado do precioso dogma da Imaculada Conceição, definindo que a Virgem Maria foi assim desde o primeiro instante de seu ser. Ela foi a Raiz de Jessé, da qual brotou o lírio chamado Jesus Cristo.

Inocência original e as desordens do homem decaído

É oportuno voltarmos nossa atenção para o modo como funciona esse seletivo de que temos falado. Enquanto exponho essas reflexões, meus assistentes comparam o que estão ouvindo com impressões a respeito de si mesmos. Naturalmente, esse paralelo causa tristezas a cada um de nós. Como o pecado original nos devastou! Quão diferentes somos da pintura desse quadro! Mas, de outro lado, quando nos lembramos dos restos de nossa inocência, quanta coisa parecida! O que é, então a inocência?

Vivemos numa terra de exílio, postos em meio a uma natureza cheia de mentiras e enganos, com os quais nos iludimos

É o estado de alma pelo qual uma pessoa, desde os primeiros movimentos de sua existência, tem noção de que ela é. E, de modo excelente, vai escolhendo as coisas que, por afinidade ou contraste harmônico em relação a ela, lhe convêm para realizar sua unicidade. Em sua caminhada pela vida, nunca cometeu uma falta e sempre visa atingir a própria perfeição. A inocência assim conceituada se refere à pessoa sem pecado original.

Em nós, porém, que fantástica diferença! Que queda, que abismo! Por efeito daquela culpa, estamos sujeitos ao erro. Vemos as coisas de modo turvo, e não temos a respeito delas uma noção tão clara como possuía Nossa Senhora, concebida sem pecado original, bem como Adão e Eva antes de pecarem. Porque vivemos numa terra de exílio, estamos postos numa natureza cheia de mentiras, e somos capazes de nos iludir. No Paraíso não há criaturas e objetos enganadores, como, por exemplo, uma fruta apetecível a qual não oferece o sabor que aparenta; uma relva muito bonita à vista, mas ao se caminhar sobre ela mete-se o pé num buraco em cujo fundo se esconde uma serpente; ou uma água cristalina que traz consigo a morte, pois está contaminada de veneno…

Somos irregulares, inconstantes, mudamos de jeito, disposição e aspecto, não raro ao longo de um mesmo dia

Não, a natureza no Éden não contém ciladas, não é revoltada contra o homem, e sim uma serva dele. Este mundo, ao inverso, é como um cárcere de exílio onde moram os míopes, que somos nós; cumpre ter cuidado, pois as coisas são enganadoras aos nossos olhos doentes.

Hesitamos, ficamos inseguros, a vida nos causa medo. Temos apetências desordenadas, desejamos mais do que nos é razoável, nutrimos antipatias despropositadas, nos tornamos semelhantes à terra de degredo na qual estamos.

Somos irregulares, inconstantes, mudamos de jeito, disposição e aspecto, às vezes ao longo de um mesmo dia. Amanhecemos de bom humor e logo depois, diante de um cumprimento menos atencioso, nos irritamos, temos complexo de timidez.

Mais tarde, extrapolamos da timidez para o furor. À noite, no momento de fazermos nosso exame de consciência, verificamos nossa falta de acerto e de senso nos atos daquele dia. De nada adiantaram os propósitos da véspera. E, de novo, firmamos a resolução otimista: “Amanhã, sem dúvida, não será assim”. Na manhã seguinte, retoma a seqüên­cia de asneiras…

À exemplo da Santíssima Virgem, Raiz de Jessé da qual brotou o lírio Jesus, uma alma inocente possui seu seletivo em ordem, e por isso conhece tudo o que lhe convém ou não

S. Hollmann
“A árvore de Jessé” – Catedral de Colônia, Alemanha

A desordem não está apenas fora, mas também dentro de nós. Sentimo-nos propriamente um caos. Bismarck, o famoso Chanceler de Ferro do império alemão no século XIX, dizia sentir no seu interior duzentas almas brigando entre si e se sucedendo umas às outras.

Quantos homens não têm a mesma impressão sobre si mesmos, experimentando ímpetos contraditórios, tomando atitudes atabalhoadas?

O remédio na ordenação do seletivo

Ora, essas desordens e contradições devem ser vencidas e domesticadas pela inocência que restou em nós, com a ajuda da graça de Deus, pois sem este socorro do alto nada se consegue. Esses movimentos são contrários à harmonia e ao desenvolvimento da natureza humana, prejudicam-na e a tumultuam.

Homens há que acabam gerando úlceras no seu organismo por não saberem suportar as contrariedades da vida. Outros sofrem de hipertensão porque “torcem” muito a propósito de tudo, e a torcida é tanto mais forte quanto menos importante é o que a desperta. Em geral, não se “torce” por coisas sérias, elevadas e nobres, mas por bagatelas. E não raro provoca tão intensa emoção da alma, que gera um conflito interno capaz de levar o indivíduo à morte.

A esse propósito, relataram-me o fato de um homem que havia comprado um bilhete de loteria, tomado de intensíssimo desejo de ganhar o avultado prêmio. Foi sorteado e, quando soube da notícia, caiu morto… Clinicamente se compreende, pois tratava-se de um apego tão violento que mina e destrói a estabilidade orgânica.

Entretanto, trata-se de uma contradição que precisamos extirpar de nosso interior, para que em nós tudo seja lógica, coerência, harmonia.

Tal nos é possível, fazendo com que nosso seletivo funcione em ordem, não procurando coisas que não nos convêm, e tendo idéia exata de como deveríamos ser, isto é, inocentes. E desejar atingir essa meta, pois o homem, quando fiel à sua inocência batismal, conhece, quase por instinto, aquilo que lhe será ou não benéfico.

Recordo outro fato para ilustrar esse pensamento.

Certa feita, um padre jesuíta francês me narrou, de modo muito pitoresco e atraente, o seguinte episódio presenciado por ele. Encontrava-se de remanso no interior da França e, andando pelo campo, viu uma senhora com seu bebê ao braço. Aproximou-se uma camponesa robusta, bondosa, plácida, face redonda e alegre. Parou, olhou para a criança e esta lhe sorriu.

Mais adiante, a mesma senhora é abordada por uma moça da cidade, toda enfeitada e maquiada. Esta se voltou para o bebê e lhe dirigiu um sorriso afetado mas encantador, dizendo: “Gracinha, como vai?”. Para o padre era notório que a moça se achava de mau humor e fazia aquilo artificialmente.

Ora, a criança, de modo instintivo, percebeu a insinceridade do agrado e, com um choro amuado, virou a cabeça para o lado oposto. De tal maneira a alma inocente é sensível e, por esse seletivo, dá-se conta da autêntica realidade à sua volta.

Algo de análogo ocorrem com certas mães em relação a seus filhos. Cito o exemplo de Dona Lucilia que procurava me prevenir sobre amizades não sinceras.

O seletivo daquele que conservou sua inocência batismal o leva a desejar sempre a retidão e não a falsidade

Às vezes ela me dizia: “Fulano não é tão amigo seu quanto ele tenta mostrar. Sicrano é seu inimigo, tome cuidado, porque vai tramar contra você”. E apresentava razões, na aparência, surpreendentes.

Lembro-me de um colega que veio tomar refeição em nossa casa e, depois de se retirar, mamãe me alertou: “Este senhor tem uma mãozinha ruim, segura o garfo de certo jeito que demonstra um egoís­mo debandado. Algum dia ele mete um garfo em você”. Vinte anos depois, de fato ele praticou um ato contra mim, que me foi uma verdadeira punhalada.

Assim é o perceber da alma que conserva sua inocência batismal, cujo seletivo em tudo quer a retidão e não a falsidade.

1) Cf. “Dr. Plinio” nº 86.