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“Salva-me, Senhor, pela tua misericórdia”

Como que “escondido” por detrás de aparentes nuvens, é o próprio Deus quem desperta o temor e a contrição no pecador, fazendo com que os ossos destes “estremeçam” e o arrependido se volte a Ele, autor da graça e do perdão. É o que nos ensina Dr. Plinio ao considerar a riqueza espiritual e literária do Salmo Penitencial 6.

Assim como o fazem os outros Salmos Penitenciais, este desenvolve o tema em torno da idéia do pecador que ofendeu gravemente a Deus e se coloca diante d’Ele, porque recebeu uma graça de contrição ou atrição. Ambas significam arrependimento, a primeira por amor e a segunda por temor de Deus, que também é uma virtude muito preciosa.

Crença no auxílio da graça divina

Pelo fato de a atrição ou a contrição tocarem sua alma, o pecador cai em si, compreende a imensidade de ­suas faltas e começa a chorá-las. E pede a Deus que sane seu coração. Tal súplica revela sua crença na graça, numa ação divina capaz de o salvar e de retirá-lo da situação pecaminosa à qual se deixou arrastar.

Essa noção de que sem a graça do Senhor ele não se salva se acha muito vincada neste Salmo. Assim como a de que, obtido o dom divino, por mais difíceis que sejam de vencer os obstáculos internos ou externos, ele terá força e triunfará.

Então, argumenta com Deus, dizendo o quanto se encontra em condição deplorável e, pois, a grande necessidade que tem da misericórdia celeste. Ao mesmo tempo, afirma estar a própria glória de Deus interessada em que sua alma seja socorrida e ele se modifique.

Com esses dois argumentos fundamentais — a glória de Deus e a emenda do pecador — ele roga a intervenção do Altíssimo.

Romper com o passado ruim, para se salvar

De passagem, percebe-se sua disposição de romper com uma série de más amizades, pessoas que ele freqüentava quando era ruim. Essa idéia é constante em vários Salmos. O pecador arrependido quer se afastar de um certo grupo, de uma determinada roda social que, embora não descritos, são apontados como causa da sua perdição. E, infelizmente, é verdade: esses meios sociais que nos afastam de Deus são vassalos da morte, coveiros das almas, com os quais é preciso romper para se salvar. É a luta da pessoa que se converte contra os adversários de sua emenda.

Considerando seu passado, o pecador analisa suas companhias e os ambientes nos quais costumava estar. Percebe quanto eram maus e recorda-se de sua timidez, poltronice, falta de coragem diante deles.

Compreende-se, assim, que o drama do homem nas mais variadas épocas, em algum sentido é sempre o mesmo: a sua posição perante Deus e o mundo. Se ele se converte, irá para o Céu; caso contrário, pode percorrer o caminho do inferno.

Salmo 6

Christus Rex, Inc.
Iluminura das “Ricas horas do Duque de Berry”, para o Salmo 6

Senhor, não me arguas no teu furor, nem me castigues na tua ira.

Tem misericórdia de mim, Senhor, porque sou enfermo; sara-me, Senhor, porque os meus ossos estremeceram.

E a minha alma turbou-se em extremo, mas Tu, Senhor, até quando?

Volta-Te, Senhor, e livra a minha alma; e salva-me pela tua misericórdia.

Porque na morte não há quem se lembre de Ti; e na habitação dos mortos, quem Te louvará?

Estou esgotado à força de tanto gemer; lavarei o meu leito com lágrimas todas as noites, regarei com elas o lugar do meu descanso.

Os meus olhos se turbaram por causa do furor; envelheci no meio de todos os meus inimigos.

Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniqüidade, porque o Senhor ouviu a voz do meu pranto.

O Senhor ouviu a minha súplica, o Senhor ouviu a minha oração.

Sejam confundidos, e em extremo conturbados todos os meus inimigos; retirem-se e sejam num momento cobertos de vergonha.

O estilo poético favorece o arrependimento

Convém notar a beleza literária dos Salmos, a respeito da qual jamais se insistirá suficientemente. Ela não é um mero ornato dispensável, mas algo necessário. O texto inspirado pelo Espírito Santo faz com que o pecador não só reconheça pela inteligência, mas também sinta, todo o horror por ele praticado, e dessa sorte procure se emendar. Para ele sentir, a beleza literária é de um grande efeito.

Passemos, então, a comentar os versículos deste Salmo 6.

Senhor, não me arguas no teu furor, nem me castigues na tua ira.

Trata-se de um pecador como que se apresentando perante Deus quando começou a se arrepender de sua falta. Ainda se encontra atolado em culpas. Dir-se-ia que não se aproximou do Confessionário, se este existisse naquele tempo. Deus não fez descer sobre ele os esplendores da absolvição, porque os Sacramentos foram instituídos muito mais tarde por Nosso Senhor. Mas, o faltoso se dá conta, de repente, que está em pecado e então se dirige ao Céu com essa fórmula humílima, enunciada no versículo acima.

É como se afirmasse: “Senhor, tendes razão, eu mereço castigo. Sois como um Rei repleto de justiça, bondade e misericórdia, e eu como um súdito rebelde que se levantou contra Vós. Conheço o mal que fiz e antes de tudo digo — Senhor, não me castigueis!”

O santo temor de Deus

Não me arguas no teu furor…

O pecador sabe que Deus está furioso devido a ­suas quedas. “Argüir” significa censurar com argumentos. O Altíssimo lhe diz: “Como agistes tu, que fiz nascer de um casal virtuoso? Teus pais me serviram na inocência de seus corações; recomendei-lhes fizessem de ti o melhor fruto dessa árvore abençoada que é o lar no qual viestes ao mundo. Olha para tua alma e considera as condições em que te apresentas diante de Mim. Quem és?!”

Em seu furor, Deus apresenta raciocínios contra ele, ajudando-o a se arrepender.

De fato, quando nos faz vê-Lo em sua cólera em relação ao mal por nós praticado, o Criador está nos punindo, mas seus castigos têm sempre esse aspecto de um convite, uma ajuda para que nos deixemos tocar pelo remorso e a contrição.

Importa termos isso em vista, pois o temor de Deus é uma virtude. Aliás, no início de sua regra, São Bento escreve: “Vinde filhos e ouvi-me, eu vos ensinarei o temor de Deus”.

Portanto, é muito salutar que nos exercitemos nesse santo medo da argumentação do Senhor contra nossos pecados.

Voz-gemido de uma alma leprosa

…nem me castigues na tua ira.

Pede ele também: “Vós tendes o direito de me punir, mas, por favor, não me castigueis. Vou falar, expandir-me diante de Vós, ó Senhor. Suspendei por um instante a manifestação de vossa ira, para ouvir o que tenho a dizer. Depois, se quiserdes, puni-me; eu o mereço, vim para ser humilhado. Porém, ó Senhor, permiti que minha voz, uma voz-gemido, uma voz-dor, uma voz envergonhada, exprima pelo menos agora meu arrependimento. Senhor, tende pena de mim!”

Tem misericórdia de mim, Senhor, porque sou enfermo…

Quer dizer: “Minha alma é miserável, doente. A morféia tomou conta dela: sinto a todo momento pedaços de minha virtude, de minha bondade, que ainda aderiam molemente a mim, caírem insensíveis como se desprendem as partes do corpo de um leproso. Vejo, Senhor, que a lepra tomou conta de mim, estou enfermo. Compadecei-vos de mim. Sou um pecador, mas também vosso filho. Lembrai-vos de que sois Pai.”

O medo de Deus faz estalar o esqueleto do pecador

…sara-me, Senhor, porque os meus ossos estremeceram.

O Criador deu-lhe graças para ver de tal maneira a abjeção do pecado cometido, que ele sentiu o tremor não apenas na sua pele ou carnatura, mas até nos ossos. Estes se abalaram.

E a minha alma turbou-se em extremo, mas Tu, Senhor, até quando?

Seus ossos estremeceram porque, considerando sua terrível situação, a alma dele turbou-se. O pecador então pergunta: “Mas Vós, Senhor, até quando tardareis para tirar-me do estado em que me encontro? Porque há tempos eu peço, espero e Vós pareceis insensível. Como um animal ferido e doente que se arrasta pelo chão deitando sangue e pus, eu me apresento diante de Vós e proclamo minha dor. Vós não me vedes, estais indiferente a mim…”

De fato, Deus está como que por detrás das nuvens, olhando e por assim dizer dosando com misericórdia o temor que aquela alma deve ter para se restaurar. Embora não saiba, o pecador está sendo ajudado, pois tem essa felicidade: os ossos dele estremeceram.

Avivar em nós o horror do pecado

Quanta gente há, em situação análoga à dele que, vendo os males hoje cometidos, não se importa! Seus ossos não estremecem…

Diante de crimes que se espalham como verdadeira lepra, muitas pessoas dizem:

— Isso é mesmo uma coisa horrorosa.

Perguntamos a uma delas:

— E você está perturbada?

— De nenhum modo, pois não cometo esses delitos.

— E a glória de Deus? Você não fica indignada ao ver que ela é conspurcada dessa maneira?

— Estou em paz, porque não pratico esses crimes. Portanto, não vou para o inferno. O que importa sou eu, não Ele. Pouco me interessa que Nosso Senhor seja esbofeteado, atirado ao chão e se escarre sobre Ele como Lhe fizeram na Paixão. Desde que eu me salve, Ele que se arranje.

Tal mentalidade indica um estado de alma monstruo­so, porém, ao menos na sua forma não-explícita, infelizmente existe. E não devemos nos esquivar de constatá-lo, pois, afinal, um dos melhores proveitos a se colher desses comentários aos Salmos Penitenciais é avivar em nós o horror do pecado.

(Continua no próximo número)

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