Dona Lucilia aos 91 anos

Envolvente e nobre, expressão de profunda delicadeza, presente às vezes até mesmo na dor, esplêndido complemento do olhar de Dª Lucilia era, sem dúvida, seu sorriso. Transparecendo nele a conexão das virtudes de que fala Santo Tomás de Aquino, era marcado, simultânea e discretamente, por uma tristeza cheia de resignação e por uma temperante alegria. Tristeza que com freqüência chegava ao extremo; alegria que poderia por vezes ser intensa.

As tênues e belas luzes do crepúsculo e da aurora estavam sempre unidas em seu sorriso. As alternâncias harmônicas deste contribuíam para o gracioso da fisionomia, que tão bem refletia o interior de uma alma preponderantemente voltada a fazer bem a todos.

Os pequenos gestos, reflexos de uma alta virtude

Por mais que se tenha comentado esta qualidade de Dª Lucilia, nunca será o bastante louvá-la: era emocionante comprovar nela o carinhoso desejo de atender às necessidades alheias, mesmo aos 91 anos!

— Os senhores me permitem uma sugestão? Eu fiz muitas imprudências em minha vida, lendo e forçando a vista, em lugares pouco iluminados. E agora vejo os senhores neste hall de entrada, que não é próprio para leitura. Sempre que necessito me distrair folheando álbuns ou revistas, uso a sala de jantar, que tem muita luz, e como eu não vou mais retornar, os senhores poderiam passar para lá. Tenho certeza de que os senhores enxergarão melhor naquele ambiente.

Com estas palavras, Dª Lucilia aconselhava a dois jovens que liam — um, o jornal e o outro, um livro — enquanto aguardavam, no hall interno do “1º andar”, para serem atendidos por Dr. Plinio. Foi logo depois de a terem cumprimentado que ouviram esse oferecimento tão afável da parte dela.

Em seguida, Dª Lucilia foi conduzida pela empregada até seu quarto, deixando os dois jovens encantados. Comentaram a bela manifestação de bondade de que tinham sido objeto e retornaram às suas respectivas leituras.

Passado algum tempo volta a empregada, entreabre um pouco a porta do corredor que dá para o hall e lança um olhar aos visitantes. O fato se repetiu uma segunda vez, o que não puderam eles deixar de observar:

— O que estará acontecendo?!

Na terceira vez, a empregada, sorrindo, dirigiu-lhes a palavra:

— Os senhores não vão passar para a sala de jantar?

— Não! — disseram eles.

— Ah! Por favor, Dª Lucilia fica muito aflita sabendo que os senhores estão lendo nesta meia luz. Enquanto não mudarem de sala, ela não ficará sossegada.

Nessa pequena atitude de Dª Lucilia — que julgava um dever de consciência proteger a visão de dois jovens desconhecidos — transparecem, uma vez mais, as elevadas qualidades de uma bela alma.

Um sorriso envolvente e nobre, expressão de profunda delicadeza, esplêndido complemento do olhar…

“Coitada dessa moça…”

Observar os entretenimentos de Dª Lucilia, logo após o jantar, constituía um edificante passatempo para quem estivesse na residência dela.

Depois de retirada a mesa e acesas todas as lâmpadas do lustre, a empregada escolhia alguma revista da atualidade e a folheava diante de Dª Lucilia, chamando a atenção desta para certas peculiaridades que lhe escapavam às vistas já cansadas e um tanto prejudicadas pela catarata.

Certa noite, foi um verdadeiro encanto poder contemplar a profunda honestidade de alma de Dª Lucilia vendo-a folhear uma reportagem fotográfica da revista francesa Paris-Match sobre o “hippismo da flor”, ponta-de-lança da modernidade naqueles dias. Ao deparar com a reprodução, de página inteira, de uma jovem com uma margarida pintada em cada face, e outra na testa, não resistiu e exclamou:

— Ih! Mirene! Coitada dessa moça! Veja o que pintaram no rosto dela!

— Mas Dª Lucilia! Isso hoje em dia é moda!

— Moda?!

— Sim! Várias moças se pintam assim.

— Qual!

Virando a página, apareceu uma jovem de mini-saia. Dª Lucilia se surpreendeu:

— Iiih! coitada dessa moça, tiraram uma fotografia dela quando ainda não estava inteiramente vestida! Deviam tê-la avisado!

Que comovedora a pureza de uma alma cândida!

A empregada disse:

— Não, ela está vestida. Hoje em dia é normal sair à rua assim.

— Mas, como?! Saiu à rua assim?

— Sim, Dª Lucilia, foi fotografada na rua.

Por suas reações, percebia-se perfeitamente que ela, devido a uma robusta e firme retidão de alma, rejeitava radicalmente aqueles desordenados costumes. E compreendia bem até que extremos de pecado pode chegar a natureza humana quando, sem freios, se entrega aos desmandos das paixões.

Outros entretenimentos

Naqueles momentos de lazer, além de passar bons lapsos de tempo folheando álbuns ou revistas, Dª Lucilia ouvia música, embora mais raramente. Impressionava ver como ela, sendo muito apreciadora da arte dos sons, acompanhava com atenção e conhecimento as composições, tocadas em uma vitrola. Nessa fase de sua vida agradava-lhe especialmente ouvir marchas e canções francesas da época pré-napoleônica, entre as quais a dos Dragões do Duque de Noailles, de que gostava particularmente.

Com suavidade e delicadeza, ia acompanhando o ondular da melodia e o ritmo da marcha, marcando o compasso com calma e vivacidade, ora com as pontas dos dedos da mão direita, ora com os da esquerda, sobre os braços de sua cadeira de rodas. Por incrível que pareça, esses movimentos ajudavam a melhor captar a beleza da composição musical.

Constituía maior distração para Dª Lucilia receber pessoas amigas. Já muito antes de as visitas chegarem, mandava a empregada abrir as venezianas do salão nobre e verificar se a disposição dos móveis e dos objetos estava de acordo com suas orientações. Pouco faltando para a hora aprazada, perguntava duas ou três vezes se haviam chegado as pessoas esperadas. Quem tinha a graça de estar próximo dela nessas circunstâncias, podia uma vez mais comprovar seu interesse e desvelo pelos outros. Costumava acontecer que, pela solicitude dela com os visitantes, estes se esqueciam até da hora de se retirar…

Entretanto, nunca deixava de ocupar o lugar central de suas atenções seu próprio filho.

A hora de conversar com o “filhão”

Durante quase toda a sua convalescença, Dr. Plinio passava o dia no escritório de seu apartamento. Ali, em certas horas atendia os membros do seu movimento, e fora dessas ocasiões guardava repouso, seguindo orientação médica.

Não era raro que, ao passar pelo corredor, Dª Lucilia manifestasse desejo de se encontrar com seu filho. Era tocante observar a cena. Com a fronte voltada para a porta do escritório, ela dizia à empregada que movimentava a cadeira de rodas:

— Vamos aqui, Mirene.

Muitas vezes era a hora do descanso de Dr. Plinio, ou o momento de suas orações, e a porta estava fechada. A empregada respondia:

— Mas, Dª Lucilia, agora ele está dormindo.

— Você tem certeza disso?

A respeito desses episódios, conta Dr. Plinio: “De vez em quando, estando já deitado no sofá, eu a ouvia dizer:

“— Mirene, agora é hora de eu falar com Dr. Plinio.

“A empregada simulava não ouvir, mas mamãe insistia e às vezes ordenava:

“— Entre! Eu quero falar com Dr. Plinio!

Para Dona Lucilia, era sempre motivo de grande contentamento a hora de se encontrar com o “filhão”
Acima, o escritório de Dr. Plinio; na página anterior, o quarto dele

“De dentro do escritório, eu poderia dizer:

“— Mirene, entre! — mas deixava correr o marfim, pois queria ver em que daria aquela batalhinha. Às vezes mamãe impunha sua vontade, com autoridade. A empregada não tinha ânimo de enfrentar e cedia.”

Dona Lucilia entrava num contentamento único!

Uma “batalhinha” semelhante também se verificava quando Dr. Plinio estava no quarto de dormir. Acontecia que Dª Lucilia, ao se aproximar da porta, dizia à empregada:

— Mirene, eu quero ver Dr. Plinio, hem! O quarto dele está chegando.

A cadeira de rodas continuava impassível seu caminho e Dª Lucilia insistia:

— Mirene, agora chegou a hora de eu falar com Dr. Plinio.

A empregada retrucava:

— Não, senhora, já passou a hora.

— Não, é hora, sim!

Dr. Plinio então dizia:

— Deixe-a entrar — e fingia que era a hora de estar com sua mãe.

— Então meu bem, chegou o momento de nos vermos…

“Quando chegava ao meu quarto, ela estava sossegadinha”, lembra Dr. Plinio. “Eu gracejava um pouco com ela, conversava, mandava pô-la bem perto de mim, para que ela me ouvisse melhor. Ela ficava prestando uma atenção enorme nas minhas palavras. E não duvido que, à noite, enquanto estivesse se preparando para dormir, ainda pensasse nesse encontro”.

Fora dessas esporádicas ocasiões, havia um horário preestabelecido — antes da sesta e da noa1 de Dr. Plinio — em que Dª Lucilia tinha a tão esperada oportunidade de conversar com ele. Essa hora ela nunca perdia!

Aproveitando o almoço e o jantar para cuidar dos assuntos de sua obra, Dr. Plinio recebia sempre alguns amigos. Dona Lucilia entrava a partir do final do segundo prato, já próximo à sobremesa. Cessavam então os temas de trabalho e começava uma conversa variada. Terminada a refeição, os amigos de Dr. Plinio se retiravam, deixando-o a sós com Dª Lucilia. A prosinha era habitualmente mais curta do que ela gostaria. Com efeito, Dr. Plinio determinara que a empregada a deixasse com ele, no escritório, durante um tempo limitado, devido às exigências de sua convalescença. Esgotado o tempo, ela entrava e dizia:

— Dª Lucilia, vamos, Dr. Plinio precisa descansar.

— Não, não — respondia por vezes Dª Lucilia — você pode deixar que eu vou ficar.

Mas a Mirene, seguindo as instruções de Dr. Plinio, ia puxando a cadeira devagarzinho.

— Mirene, o que é isso? Eu vou ficar.

Dr. Plinio intervinha então.

— Benzinho, preciso descansar um pouco.

Diante do pedido do “filhão”, Dª Lucilia não dizia mais nada, submetendo-se pacientemente à privação da companhia de quem lhe era tão caro. A empregada ia puxando a cadeira, de costas, e Dª Lucilia ia-se despedindo à distância, com um leve gesto de mão, enquanto fitava seu filho ainda um instantezinho…

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) Durante a doença de 1967, Dr. Plinio descansava um pouco após o jantar, por recomendação médica. Por analogia com o nome “sesta”, ele passou a chamar esse repouso de “noa”, por ser esta a hora canônica seguinte.