Dona Lucilia pouco antes de seu casamento

Delineava-se no interior de Lucilia, com traços cada vez mais vincados, durante longas horas de contemplação na quietude, entremeadas de oração vocal, uma aspiração à vida religiosa. Entretanto, acima de sua virtuosa propensão ao elevado e ao sublime, estava a robusta determinação de cumprir a vontade de Deus, ainda que à custa de refrear seus bons movimentos de alma. Pronta a seguir a qualquer momento, por mais árduo que lhe fosse, a voz do Espírito Santo, tinha por certo que esta se manifestava muitas vezes através dos conselhos ou ordens de seu querido pai.

Nas mãos de Deus, a escolha da vocação

No entardecer de certo dia, Dr. Antônio, com sua característica paternalidade, abordou a filha para tratar do delicado tema do matrimônio. Ponderou-lhe que os anos iam passando e ela corria o risco de transformar-se em tia solteirona, em torno da qual os sobrinhos faziam festa.

Claro estava que Dr. Antônio, como bom pai, não quereria forçar uma decisão de Lucilia pelo casamento. Nessa mesma ocasião, contou à filha que certo amigo, Dr. João Procópio de Carvalho, apresentara-lhe um jovem advogado, Dr. João Paulo Corrêa de Oliveira, descendente de ilustre família de Pernambuco, muito fino e inteligente. Considerava-o, por tais motivos, o esposo mais conveniente, ressalvando entretanto caber a última palavra somente a ela.

Com a fisionomia sempre meiga e afetuosa, Dª Lucilia em nada se alterou diante da sugestão paterna. Era uma nova manifestação daquela temperança estável que já ia atingindo seu pleno florescer. Se a vontade da Providência assim se insinuava, por que não se alegrar? Seu futuro esposo deveria ser bom, dado haver sido recomendado por Dr. Antônio. O que mais faltava para seu assentimento? No entanto, sempre comedida e prudente, pediu a seu pai algum tempo para pensar e, após muito rezar e refletir, aceitou a proposta de que lhe fosse apresentado o digno e simpático bacharel, de quem se tornou noiva.

Pompa nupcial

Quinze de julho de 1906! Data marcante na crônica social da cidade, em razão de brilhante acontecimento do qual nos dá notícia o Correio Paulistano, do dia seguinte:

Realizou-se ontem, nesta capital, o casamento da exma. senhorita Lucilia Ribeiro dos Santos, filha estremecida do Sr. Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, com o distinto advogado Dr. João Paulo Corrêa de Oliveira. (…)

A cerimônia religiosa esteve concorridíssima, sendo celebrada às oito e meia da noite, na capela do Seminário Episcopal. Pronunciou por esta ocasião uma bela oração de bênção e bons augúrios ao novo par, o Revmo. Arcediago Dr. Francisco de Paula Rodrigues, governador do bispado. (…)

Fotos: Arquivo revista
Acima, vista do antigo Seminário Episcopal; à direita, Pe. Francisco Rodrigues, celebrante do casamento de Dona Lucilia
Fotos: Arquivo revista
À esquerda, interior da Capela do Seminário Episcopal, onde se realizou o casamento de Dona Lucilia com Dr. João Paulo (no centro, os noivos)

A casa de residência do Sr. Dr. Ribeiro dos Santos estava lindamente ornamentada. Os salões, de onde jorrava fartíssima iluminação, achavam-se artisticamente enfeitados de variadíssimas flores das espécies mais delicadas e raras, enfaixadas em lindos tufos ou feitas em grinaldas que se espalhavam por todos os lados.

Fotos: Arquivo revista
Fotos: Arquivo revista

A afluência à igreja de numerosos convidados, pertencentes à mais alta sociedade, despertou extrema curiosidade entre o povinho que passava defronte, atraindo uma pequena e ruidosa multidão.

Contudo, nada encantou tanto aquela gente como o extenso cortejo de carruagens e automóveis que se dirigiu à residência dos Ribeiro dos Santos, logo após a cerimônia. Chamava especial atenção o automóvel dos noivos que, finamente ornado e estofado de seda, abria o séquito. Cena da qual se exalavam alguns dos suaves perfumes da Belle Époque.

Ansiado encontro com Nosso Senhor sacramentado

Até o pontificado de São Pio X, no início do século XX, a graça da Primeira Comunhão ainda não se estendera a crianças e adolescentes. Não foi este, todavia, o único motivo que manteve Lucilia longe desse Sacramento até a proximidade de seu matrimônio. Naquela época, a população brasileira, embora fosse maciçamente católica, assistisse às missas dominicais e participasse de todos os eventos religiosos, não tinha o costume de freqüentar de maneira assídua os Sacramentos. Concorria para tal atitude contraditória uma assanhada propaganda anticlerical, e não poucos chefes de família — como, por exemplo, Dr. Antônio — achavam por bem manter suas filhas e esposas afastadas dos confessionários e, conseqüentemente, da Comunhão.

Ora, para uma alma ardorosamente devota do Sagrado Coração de Jesus, a Comunhão constituiria o ápice normal do trato íntimo com o Divino Salvador. Daí significar não pequena provação para a jovem Lucilia o viver tanto tempo à espera desse Sacramento. E apesar da nunca desmentida admiração que nutria pelo pai, não conseguia esconder sua mansa incompreensão diante da irredutível atitude dele. Sem resultado, porém.

O matrimônio propiciar-lhe-ia afinal a oportunidade de realizar o desejo, há tanto tempo acalentado, de receber Nosso Senhor na Sagrada Eucaristia. Nas vésperas do casamento, Dr. Antônio procurou o futuro genro e lhe disse:

— Dr. João Paulo, até agora não permiti que Lucilia se confessasse e, portanto, também que comungasse, embora ela o quisesse deveras. Como a situação nos meios eclesiásticos se inclina para melhorar, sou tendente a permiti-lo. Mas, de fato, quem vai resolver o caso é o senhor. Se quiser, ela se confessará e comungará agora para o casamento.

Dr. João Paulo olhou para sua noiva a fim de que ela manifestasse seus anseios. Com a amenidade de sempre, ela lhe disse que gostaria muito de comungar regularmente. O que a partir de então, ficou combinado entre os dois, e na véspera do desponsório (14 de julho de 1906) pôde confessar-se e fazer a Primeira Comunhão, na sua bem-amada capela do Convento da Luz, adquirindo assim mais fortaleza de alma para enfrentar as incertezas de um novo estado de vida.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)