Das preces recitadas na Sexta-Feira Santa, em sua mocidade, até as demoradas orações junto à imagem do Coração de Jesus, quando já respeitável anciã, Dona Lucília dedicou-se cada vez mais à vida interior, cultivando-a com maior intensidade nos últimos anos de sua existência. Dr. Plinio nunca se esqueceria daqueles momentos em que, hora avançada da noite, ele retornava a casa e encontrava sua extremosa mãe de pé, o terço na mão, “conversando” com Nosso Senhor…

Fotos: Arquivo revista / M. Shinoda
Imagem do Coração de Jesus diante da qual Dona Lucilia costumava rezar; na página 6, ela aos 90 anos

Sem descurar das suas práticas de piedade diárias, mamãe sempre cuidou dos afazeres domésticos com todo o zelo característico de uma esmerada dona de casa. Até os seus 75 anos, mais ou menos, ela procurava estar ao par das diversas necessidades e providências que o quotidiano no lar exigiam. Assim, podia-se vê-la percorrendo os cômodos, indo e vindo, supervisionando o trabalho de limpeza feito pela faxineira, ou o da lavadeira, o da cozinheira, etc.

Mais tempo dedicado à oração

Com o passar dos anos, porém, percebi que ela diminuía o ritmo nos cuidados da casa — sem que isso significasse relaxamentos — e dedicava mais tempo às suas orações. Antes, ela reservava as horas noturnas para rezar, e por volta da meia-noite já estava deitada, com o terço na mão, entremeando as últimas ave-marias com o sono. Diversas vezes a encontrei nessa atitude, quando eu retornava a casa depois do meu dia de trabalho e apostolado.

E ela mudou esse hábito. Lembro-me que por essa época morávamos no 4º andar de um prédio da Rua Vieira de Carvalho, onde também funcionava, no 6º andar, a sede principal do nosso movimento. Em frente ao edifício havia o bom restaurante Fasano, e acabou se estabelecendo o costume de, após nossas reuniões diárias, tomarmos ali um lanche, um sorvete, etc. Ocupávamos sempre alguma mesa próxima à calçada, da qual me era dado ver a janela do apartamento de mamãe, e ela, por sua vez, podia nos observar lá do alto.

Invariavelmente Dª Lucilia se postava na janela, e acompanhava nossos movimentos no outro lado da rua. Como sói acontecer entre brasileiros, com freqüência as despedidas se prolongavam em palavrinhas e comentários na calçada, numa forma de aproveitar o máximo possível o convívio. De modo instintivo, vez ou outra eu corria o olhar pelo prédio em frente e via que mamãe ainda estava lá, com seus cabelos inteiramente brancos iluminados pelas luzes da rua, a silhueta emoldurada pelo caixilho da janela. Observando, analisando, rezando…

Afinal encerrávamos a prosa. Eu subia para me despedir dela, antes de ir dormir no 6º andar. Depois de nos separarmos, acredito que Dª Lucilia ainda rezava, talvez já deitada, um rosário ou mais.

“Conversas” com Nosso Senhor

Quando o tempo foi correndo, as orações se intensificaram madrugada adentro. De maneira que, já no apartamento da Rua Alagoas, voltando eu cada vez mais tarde dos compromissos apostólicos, achava-a de pé, com o porte ereto que ela sempre conservou, bem junto à imagem do Sagrado Coração de Jesus que havia no salão da casa.

Não a encontrava rezando propriamente o rosário, embora ela trouxesse o terço à mão. Tinha-se a impressão de que ela “conversava” com a imagem: os lábios dela próximos ao peito de Nosso Senhor, e os dedos pousados sobre o sagrado coração. Em determinado momento, deslocava-os para os pés da imagem, imprimindo maior ou menor fervor nesses movimentos, conforme intenções mais ou menos prementes que ela tivesse. Não era difícil de compreender que as orações de máximo empenho eram aquelas ditas com os dedos postos no Coração de Jesus. Outro detalhe curioso: ela não rezava de lábios cerrados. Articulava-os, sem pronunciar som algum, do mesmo modo que o faria quem falasse com Nosso Senhor.

Assim que eu chegava, cumprimentava-a, conversávamos um pouco e tentava levá-la a dormir. Às vezes conseguia, porque Dª Lucilia se deixava conduzir no agrado da prosa e quando dava acordo de si já estava no quarto. Noutras ocasiões, entretanto, ela me dizia:

— Filhão, espere um instante. Vá adiantando suas coisas, e eu irei daqui a alguns minutos.

Deixava-a no salão, preparava-me para deitar, e voltava:

— Mãezinha, agora chegou a hora de dormir.

E ainda acontecia de, vez ou outra, quando eu retornava para essa “segunda chamada”, trocarmos um dedo de prosa junto à imagem do Coração de Jesus. Então meu pai aparecia, vestido de robe de chambre, abria os braços e dizia: “Senhora, são quatro horas da manhã!”. Mamãe lhe dava uma resposta amável, mas sem se importar muito com o aviso…

Preces na Sexta-feira Santa

Qual era o teor dessas longas “conversas” com o Sagrado Coração de Jesus?

Nunca perguntei a ela, e Dª Lucilia nunca me deu a entender. Creio bem que eram orações pelos familiares dela, assim como a manifestação de outras cogitações, anelos, preocupações, tudo devidamente pensado e maturado. Pois nela todas as coisas eram muito refletidas e ponderadas.

Essa meticulosidade se notava, por exemplo, nas preces que ela recitava às três horas da tarde na Sexta-Feira Santa. Tornaram-se mesmo um costume célebre na família, e todos os parentes que podiam, reuniam-se junto com mamãe, em casa dela, para rezar nessa ocasião.

Nas demoradas “conversas” com o Coração de Jesus, orações pelos familiares e a expressão de anelos e outras cogitações, tudo muito bem pensado e maturado

J. S. Dias
Dona Lucilia aos 92 anos; na página 8, Crucifixo aos pés do qual ela recitava as preces da Sexta-Feira Santa

Ela herdou do pai um pequeno Crucifixo, provavelmente originário de uma estação da Via Sacra, porque trazia inscrito sobre ele o número XII romano. Quando meu avô morreu, Dª Lucilia levou esse crucifixo para sua casa, e já na primeira Sexta-Feira Santa após o falecimento do pai, os familiares ali se encontraram para honrarem a Paixão de Nosso Senhor, diante daquele Crucifixo.

Chamava a atenção o cuidado com que mamãe preparava tudo para esse momento. Sobre uma mesa, ao lado da simbólica imagem do Crucificado, ela dispunha um castiçal que lhe fora presenteado por ocasião do seu casamento: mandava comprar papel de seda com o qual preenchia o vácuo entre a vela e a base do candelabro, recortava-o de maneira a dar-lhe um contorno bonito em forma de pétala de flor, etc. Preparativos estes que ela fazia bem antes das três horas da tarde.

Quando faltavam alguns minutos, ela se dirigia ao lugar das orações, seguida por todos os parentes que a acompanhariam naquele dever de piedade. Às três horas em ponto Dª Lucilia puxava as orações, iniciando pela Ladainha do Sagrado Coração de Jesus, a Ladainha de Nossa Senhora, uma prece pelas almas dos familiares mortos, e na seqüência diversas outras orações, entremeadas por algumas que ela recitava em silêncio, sob o olhar respeitoso dos demais.

Se alguma pessoa, sobretudo mais velha, dava indícios de cansaço ou incômodo por estar muito tempo ajoelhada, mamãe pedia a um mais moço que apanhasse almofadas e oferecesse a quem desejasse. Ninguém, contudo, ousava se retirar antes do término daquela íntima cerimônia de Sexta-Feira Santa.

Uma vez encerradas as orações, os salões da casa já estavam abertos à espera dos visitantes para alguns minutos de convívio, rodas de conversa, etc. Não muito tempo depois todos se retiravam, e o ambiente da casa imergia no recolhimento próprio à data celebrada. A vela permanecia acesa até se extinguir completamente, e o Crucifixo continuava exposto ao longo de todo o dia.

No Sábado Santo, mamãe tomava o resto do papel de seda que não fora usado, embrulhava o Crucifixo e o depositava numa gaveta, onde ele ficaria guardado até o ano seguinte.

(Transcrito de conferência em 19/6/1982)