Ao fundo, aspectos de grupos hippies; em destaque, Charles Manson.

Ao responder perguntas de jovens participantes de seu Movimento, Dr. Plinio desmascara uma faceta revolucionária que ainda não tinha surgido quando da publicação de sua obra Revolução e Contra-Revolução: o hippismo1.

Vários grupos de jovens de nosso Movimento pediram-me que tratasse a respeito dos hippies.

Os hippies são indivíduos que se colocam à margem da sociedade contemporânea, abandonam sua casa, sua classe social, deixam sua profissão e vivem em grupos de ambos os sexos — estou falando do hippie total, é claro, mas há formas de semi-hippie. Perambulam de um lado para outro, e se mantêm através de pequeno artesanato manual e coisas desse gênero.

E, para bem marcar a sua ruptura com a sociedade, eles até se apresentam de um modo extravagante, completamente diferente do usado pelas outras pessoas. Não só de um modo diferente, mas eles usam penteado e roupas exatamente iguais aos que se tachariam de ridículos há anos atrás. Quer dizer, eles representam o auge do desafio à sociedade atual.

Os hippies se diversificam em duas modalidades: pacíficos e agressivos.

Os pacíficos distribuem flores, vivem sorrindo, são amáveis com todo o mundo. Os agressivos têm no Manson2 e seus sequazes da Califórnia a sua expressão mais característica; é o crime levado ao seu paroxismo diabólico.

Eles constituem de fato um todo, quer dizer, as atitudes pacíficas ou agressivas são seus métodos. Nunca ouvi falar — pode ser que haja, mas desconheço — de uma luta de uma facção de hippies contra outra.

Seita atéia e anárquica

Vista assim, na primeira consideração, a questão hippie deixa delinear-se atrás de si uma posição filosófica. Na realidade, os hippies constituem uma seita.

Considera-se seita um conjunto de pessoas que se apartam, em graus ou formas diferentes, do modo de sentir comum e aberram das grandes verdades objetivas admitidas por todo o mundo. Formam uma espécie de partido apolítico de caráter ideológico dentro da sociedade, tendo uma diretoria — que evidentemente não precisa estar registrada em cartório —, ou uma liderança, a qual tem por fim conquistar adeptos e modificar a opinião dos outros.

Os hippies correspondem inteiramente a esse conceito. Percebe-se que eles têm uma filosofia, uma técnica muito vasta.

A filosofia dos hippies se poderia chamar, de um lado, inteiramente atéia e, de outro lado, completamente anarquista.

Dr. Plinio em frente a uma sede de seu movimento.

Eles entendem que a sociedade contemporânea, com a sua superorganização, criou condições de existência insuportáveis para o homem, e por essa razão precisamos caminhar para o extremo oposto.

Assim, desfeita essa superorganização, deve vir o caos, o completo desfibramento da estrutura social, para se constituírem bandos de pessoas vagueando sem nação, sem organização nem estruturas. Este é o objetivo visado pelos hippies.

A moral católica virada pelo avesso

Do ponto de vista humano, no que diz respeito ao interior do homem, eles pensam a mesma coisa. Assim como as leis e estruturas oprimiriam a sociedade, julgam eles que a inteligência e a vontade exercem no homem uma opressão ad intra, de dentro para fora.

Nessas condições, defendem o completo espontaneísmo, segundo o qual o homem deve viver como acha agradável, sem fazer uma crítica racional daquilo que está realizando ou não, sem se coibir em nada e deixando-se vogar ao sabor das suas impressões e apetências de momento.

Ou seja, é a Moral católica virada pelo avesso. Aquilo que chamamos de doutrina, de ortodoxia, para eles não vale nada. O homem deve ser completamente livre; é a total anarquia.

Atitudes abobadas

Assim, podemos analisar as maneiras dos hippies: caras revelando uma idiotice de quem se deixa levar pela primeira impressão, olhos arregalados, cabelama revolta que nunca penteiam. Andam sem rumo definido; quando têm vontade de parar, sentam-se na beira de uma calçada e ficam olhando passar os automóveis, depois se deitam e rolam; se há algum rio próximo, para lá se dirigem, cospem na água, brincam, fazem barquinho etc.

Não se lavam. Nunca ouvi alguma pessoa dizer: “Eu encontrei hoje um hippie limpíssimo.” Porque a limpeza é a ascese da pele. E o indivíduo completamente sensual tem horror até ao sabão, porque execra qualquer coerção. Pode ser que um dia lhe dê na cabeça nadar. Mas, ele entra na água a fim de brincar e não para se lavar, que é uma coisa completamente diferente.

Neste horror há qualquer coisa de artificial. Eles andam despreocupados, como se fossem bobos. De fato é uma comédia. Ou pelos menos tem muito de comédia. Os hippies nunca, por exemplo, por bobeira, fazem alguma coisa contrária à causa deles. Eles têm uma política a qual seguem perfeitamente.

Barbárie e hippismo

Passarei agora a fazer a crítica ao hippismo.

O hippie é o contrário da cultura, a qual supõe, exatamente, um domínio do homem sobre si para atingir, mesmo em termos laicos, um determinado grau de perfeição moral. A cultura exige estudo, esforço, raciocínio, discussão, método de pensamento, e supõe, portanto, uma ascese para encaixar o pensamento dentro desse método. Sem isso, não se concebe Filosofia, nem qualquer outra forma de ciência.

Ele é também o oposto da civilização, que supõe normas decorrentes dos conhecimentos científicos de todas as ordens. São conhecimentos da realidade objetiva que nos impõem modos de proceder, de gostar e de sentir.

Jovem hippie

A forma perfeita do hippie é o índio. Há na pré-história do Brasil um fato que indica como eram nossos indígenas.

Conta-se — mas é fato histórico — que Anchieta, ou algum outro jesuíta, batizou uma índia, a qual veio depois morar na aldeia de São Paulo. Durante vários anos foi muito piedosa, confessando-se e comungando com frequên­cia.

Certo dia, ela estava com a cara muito triste; o Padre Anchieta aproximou-se e perguntou-lhe:

— Mas, então, por que você está tão triste?

Diz ela:

— Eu tenho vontade de comer um braço de uma criança tapuia!

De certa forma, essa indígena era uma hippie.

Poder-se-ia objetar: “Mas os hippies, por enquanto, não são todos assim.”

Respondo: É bem verdade, porque eles têm certa velocidade adquirida ainda da antiga civilização. É mais ou menos como um trem que está correndo. Se a locomotiva para e solta os vagões, estes ainda andam um pouquinho até ficarem imóveis; eles têm a velocidade que a locomotiva lhes comunicou.

Alguns hippies têm ainda não sei que restos de civilização. E também velhacarias, porque percebem que, caso se mostrem inteiros como são, a causa deles perderia muito. Assim mesmo, o caso do Manson e outras coisas parecidas representam a ala mais sincera do hippismo. Portanto, pode-se dizer que este é a barbárie.

O hippie quer que o ideal natural e sobrenatural da Igreja para o homem seja completamente negado. Podemos afirmar que o hippismo é o extremo oposto da santidade.

Hippismo: extremo oposto do ideal católico

Considerando a doutrina católica, o que devemos pensar do hippie?

Se alguém quiser ter a ideia do que seja um santo, podemos dizer-lhe: é o extremo oposto de tudo isso. Quer dizer, o hippie quer que o ideal natural e sobrenatural para o homem, o ideal da Igreja, seja completamente negado. Pode-se afirmar que o primeiro hippie foi Satanás, o qual não quis obedecer, e por isso foi belamente punido por São Miguel Arcanjo e pelos Anjos fiéis.

Conclusão: o hippismo é o anarquismo que começa.

Que relação existe entre o anarquismo e o comunismo?

O anarquismo é a extrema ponta do comunismo. Segundo Marx, deveria haver um momento em que o Estado desapareceria, se tornaria inútil e o mundo todo viveria dirigido apenas por cooperativas, num regime anárquico, uma ordem de coisas humana onde a completa ausência de autoridade não produziria o caos.

A sociedade contemporânea está sendo levada para o hippismo, por uma espécie de baldeação ideológica. Mas o jovem de nosso Movimento, portando-se de modo oposto ao do hippie, cria um impacto e um problema: “Qual a solução verdadeira?”

Ele aponta um ideal definido de ordem, o qual está se apagando na cabeça de muitas pessoas, e impede que esse ideal se extinga. Assim, a baldeação para o anarquismo, que o hippismo quer, passa a ser uma espécie de processo laborioso com discussões. E a discussão não é possível, porque o hippismo não se sustenta racionalmente; nesse campo, é uma batalha perdida para ele.

(Extraído de conferência de 17/8/1970)

1) A publicação da obra Revolução e Contra-Revolução deu-se no ano de 1959, enquanto que o movimento hippie eclodiu pari passu com a revolução da Sorbonne, em maio de 1968.

2) Charles Manson, o líder de um grupo assassino. Ver artigo na Folha de São Paulo, 14 de dezembro de 1969, “Prá frente, ao sopro da generosidade”.