Da direita para a esquerda: Dona Gabriela, Dr. João Paulo, Dona Lucilia, Rosée e Plinio.

Apesar de extremamente bondosa e amável, Dona Lucilia não desaprovava seu filho quando este, em defesa dos bons princípios, engajava-se em alguma tertúlia.

Meus pais, minha irmã e eu morávamos na casa de minha avó materna, para fazer-lhe companhia. Essa residência era o centro da família, todos os outros filhos dela, netos, noras, genros etc., a frequentavam e a casa estava, portanto, continuamente cheia.

Os meninos, chegando à casa, procuravam por mim porque gostavam de conversar com os que tinham a mesma idade. Assim, frequentemente, parentes ou amigos queriam falar comigo, sobretudo durante as refeições.

As crianças, jantavam e almoçavam numa sala própria para não atrapalharem a conversa dos mais velhos. Mas, quando ficavam um pouco mais velhinhas eram chamadas para assistir a conversação, sendo-lhes permitido dar opiniões. E os mais velhos, às vezes, corrigiam suas palavras, quando havia algum erro de português, de francês. Com quinze anos de idade, era-se obrigado a falar francês correntemente.

As conversas durante as refeições em casa de Dona Gabriela

Nessas ocasiões, surgiam com frequência os dois temas essenciais, em torno dos quais girava a conversa à mesa: religião e monarquia. Eu tinha parentes católicos e monarquistas, bem como ateus e republicanos; e entre uns e outros saíam discussões acesas, mas no fundo cordiais, pois eles conservavam a amizade. E sempre tive um gosto enorme por discussão; achava uma delícia!

Eu ficava ouvindo a conversa e, naturalmente, não podia me meter na discussão de qualquer modo porque não tolerariam que um pimpolho de quinze anos atrapalhasse. Mas com certo jeito se conseguia.

Hoje a televisão suplantou completamente a discussão, e até eliminou a conversa dos membros da família entre si. Mas, não havendo televisão naquele tempo, pode-se, então, imaginar como as conversas eram vivas.

Quando a discussão entre dois estava muito acesa, se um menino perguntasse: “Olha, não estou entendendo tal coisa, queria me explicar?”, havia uma vantagem para a família em elucidar o jovenzinho, a fim de que desenvolvesse sua inteligência. Então paravam a contenda e explicavam-lhe como era tal coisa, tal outra.

Hoje a televisão suplantou completamente a discussão, e até eliminou a conversa dos membros da família entre si. Mas naquele tempo não havia televisão, nem rádio. Pode-se, então, imaginar como as conversas eram vivas.

Eu apresentava, então, perguntas à maneira de casca de banana, pois muitas vezes sabia quais eram as respostas. Dirigindo-me ao tio republicano ou ao tio ateu, indagava: “Não compreendi bem; o senhor deu tal argumento, poderia explicar-me?”

Ele ficava contente e pensava: “Tenho um novo discípulo”; dava a resposta e eu apresentava a minha objeção, enrolando-o na discussão. E, às vezes, eles se zangavam e começavam a esbravejar. Eu lançava uma vista d’olhos para Dona Lucilia, porque não queria desagradá-la, mas se percebesse que não iria causar-lhe descontentamento continuava a contenda. E, às vezes, eram discussões quentíssimas…

S. Hollmann
Sagrado Coração de Jesus – Valladolid, Espanha.

Em defesa de Cristo Rei

Lembro-me de que, em certa ocasião, próximo da festa de Cristo Rei, um tio, que estava sentado ao meu lado, voltando-se para mim — eu já era estudante de Direito — disse: “Não posso compreender essa festa de Cristo Rei. Pôr uma coroa na cabeça de Jesus Cristo — nas imagens de Cristo Rei Ele está coroado —, como se Ele lucrasse alguma coisa. Ele é muito mais do que rei, está no Céu e lá não precisa de coroa. É um verdadeiro absurdo.” E, com ar de pouco caso, acrescentou: “São coisas da Igreja Católica que eu não compreendo.”

Redargui: “O senhor não compreende porque desconhece que a Igreja é mestra dos povos e deve tornar claro às pessoas uma série de fatos que, às vezes, sem uma explicação, não entendem. Cristo tem o direito de ser obedecido por todos os povos da Terra porque é Deus. A Escritura diz d’Ele: Rex regum et Dominus dominantium — Rei dos reis e Senhor dos senhores1. E para que o povo compreenda isto, o verdadeiro é representá-Lo com uma coroa de rei, símbolo do mais alto poder que existe na Terra, na ordem temporal. Cristo Nosso Senhor tem esse poder em todas as ordens; Ele é verdadeiramente o Rei. O senhor não acha que isso está bem?”

Ele resmungou, e eu acrescentei: “Os teólogos pensam sobre isto e têm um mar de coisas a refletir e a meditar; é um tema profundo. Mas, de outro lado, é tão simples que com poucas palavras a Igreja ensina isso ao povo: Ele é rei e aqui está a coroa.”

Nessas discussões por vezes saíam berros. Dona Lucilia, sempre tranquila — se fosse por outra razão, ela me chamaria logo a atenção —, assistia àquilo inteiramente calma.

Naquele tempo, em todas as casas que tinham certo conforto, se usava, na mesa, palitos, mas não como os existentes hoje, os quais são achas de lenha em ponto pequeno para futricar os dentes. Eram feitos de uma madeira muito branca, macia, bonita, que vinha de Portugal, e bem fabricados, dando a impressão de uma lançazinha de cavalaria.

E Dona Lucilia, estando na casa somente pessoas da família, com certa frequência tirava um palito do paliteiro e, com uma faca de sobremesa, começava a cortá-lo, levantando a madeira em todos os lados, formando assim um tufozinho, uma espécie de brinquedinho para encher o tempo.

Quando ficava alarmada devido a uma discussão que ia mal, ou algo semelhante, ela parava de cortar; e quando estava despreocupada ela continuava. Invariavelmente.

Eu olhava para mamãe e pensava: “Ela está cortando o palito, portanto posso continuar que não acontece nada!” Não era uma combinação de sinal entre nós, mas seu hábito me fazia ver em que estado de espírito ela se encontrava. Então, ela cortava o palito e eu cortava o meu interlocutor!

J. Dias.
Dona Lucilia aos 92 anos de idade.

As intervenções de Dona Lucilia

Às vezes ela se metia na discussão, sobretudo se houvesse qualquer risco de tomar ar de blasfêmia, falarem contra Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora etc. Nesses casos, mamãe intervinha seriamente: “Não se pode dizer isto, eu não permito, não tolero. Vamos mudar de assunto.”

Passado o episódio, todas as doçuras dela renasciam e sua bondade era sempre conquistadora.

Bondade com princípios

Recentemente, tive uma recordação disso por um modo curioso. Um membro de nosso Movimento encontrou-se com um filho de um irmão dela, portanto meu primo-irmão, o qual possui mentalidade muito diferente da minha, mas sempre tivemos relações cordiais.

Tendo o membro de nosso Movimento lhe perguntado se se lembrava de Dona Lucilia, ele disse: “Tia Lucilia? Eu me lembro perfeitamente dela; era uma pessoa extraordinária. Nunca encontrei afeto em minha vida igual ao que ela tinha por mim!”

Às vezes mamãe intervinha na discussão, sobretudo se houvesse qualquer risco de falarem contra Nosso Senhor Jesus Cristo ou Nossa Senhora.

E ele, já velho, se recordava de um fato de sua infância como se tivesse ocorrido ontem. Os pais dele fizeram uma viagem de repouso ao Rio de Janeiro e, não querendo levar crianças a fim de ficarem despreocupados, deixaram os três filhos hospedados em casa de minha avó.

O mais velho dos três, o qual tinha mais ou menos doze anos, sem tomar em consideração o feitio muito autoritário de minha avó — era uma grande senhora, de estilo antigo, e que mandava pelo olhar, ninguém mexia com ela —, chegou bem atrasado para o almoço.

Quando ele sentou-se à mesa, ela perguntou-lhe: “Fulano, onde é que você esteve?” Ele respondeu: “Eu fui fazer tal coisa.” Minha avó então lhe disse: “Mas na hora do almoço? Você não sabe em que casa está? E que nessa casa não se chega atrasado às refeições? Saiba respeitar a sua avó e todas as pessoas que estão junto a esta mesa, comendo há certo tempo sem que você tenha aparecido para almoçar com elas. Isso é um desaforo.”

Ele então desatou em choro. Minha avó: “Um homem não chora, pare de chorar!” Naturalmente, ele chorou mais ainda, porque a tragédia estava ficando maior.

Mamãe, que estava sentada ao seu lado, fez um sinalzinho no braço dele, levantou-se e disse-lhe: “Venha comigo.” Ele saiu com ela e foram para o corredor contíguo à sala de jantar, onde mamãe o colocou bem junto a si; ele se agarrou ao pescoço dela, e chorava ainda mais. Então mamãe disse-lhe: “Meu filho, você precisa compreender, sua avó é assim mesmo; é uma senhora dos antigos tempos e não permite nada que não esteja inteiramente na linha. Ela faz bem, mas sua tia está aqui com pena de você, sossegue um pouquinho e vá lá para a mesa que sua avó não vai falar mais nada. Termine de comer e depois vá dormir, pois isso logo passa.”

Diz esse meu primo que essa recordação de um afeto incomparável ele guardou a vida inteira. Mas, ela dizendo: “Sua avó faz bem e você não deve chegar atrasado nas refeições”, significava que o princípio ela mantinha.

(Extraído de conferência de 31/7/1993)

1) Ap 19,16