Era nota característica de Dr. Plinio fazer aplicações concretas aos princípios por ele defendidos. Assim, após a publicação de seu livro “Revolução e Contra-Revolução”, desenvolveu ele suas explicitações em diversas conferências proferidas aos seus seguidores. Analisemos na presente exposição o modo contrarrevolucionário de tratar os empregados domésticos e outros subalternos.
O primeiro dever de quem manda é deixar sentir o caráter sacral1. Toda autoridade, por pequena que seja, é exercida em nome de Deus. Sem essa nota, a autoridade sai completamente dos rumos, perde sua razão de ser.
Passarei a explicar no que consiste a nota sacral da autoridade.
Não existe atividade humana que seja inteiramente profana
Todo mundo sabe que a autoridade existe por desígnio da Providência, e quem obedece à autoridade obedece ao próprio Deus. Não é disso que se trata, mas de uma coisa diferente: cada atividade do homem pode e deve ser vista dentro de uma perspectiva em que ela se sacraliza. Não existe nenhuma atividade humana que seja completamente profana.
Porque Deus, criador de todo homem, é implícita e indiretamente, criador de todas as ações humanas. E todas as ações honestas dos homens, quando bem exercidas, refletem de algum modo uma perfeição de Deus. Por mais modesta que seja essa atuação, ela é no fundo um reflexo do agir de Deus e, portanto, tem algo de sagrado.
O agir de Deus é, por sua vez, um reflexo do ser de Deus. Devemos, portanto, compreender o caráter sagrado de toda ação, para depois nos colocarmos na perspectiva da autoridade.
A ação de Deus refletida nas ações mais comuns
Consideremos a menor das coisas, por exemplo, limpar uma sineta. Trata-se de uma ação pela qual esta criatura — que tem seu estado de integridade, de beleza em determinadas condições — é separada dos elementos que podem toldar a sua pulcritude ou comprometer a sua integridade.
E já de uma vez damos um salto, pois esta atividade é um reflexo da ação de Deus enquanto a Providência conserva todas as coisas boas que existem no universo, reprime o mal, ou lhe põe limites; quer dizer, a ação de Deus, enquanto purificador de tudo, tem o seu reflexo na atividade de uma pessoa que limpa essa sineta; portanto, esse ato pode e deve ser praticado numa perspectiva sacral.
Uma empregada católica, que faz a limpeza numa residência, realiza seu trabalho com o desejo de obter a integridade e a formosura das coisas nessa casa. Ela limpa, portanto, com amor, porque ama a boa ordem, a integridade e a beleza das coisas. E a sua ação praticada com esse espírito é sacral.
Por mais modesta que possa ser, toda reta ação humana, de algum modo, reflete uma perfeição de Deus, e representa, no fundo, um reflexo do agir de Deus e, portanto, tem algo de sagrado.
A patroa que queira mandar nela, para exercer convenientemente o seu ofício, deve ter, mais ainda do que a criada, este amor à boa ordem pela boa ordem, à limpeza pela limpeza, à integridade pela integridade, e deve realizar com um respeito religioso a sua função; não respeito para a coisa, porque esta em si não merece respeito, é um ser inanimado, não tem direitos; mas, por respeito a Deus, o qual quer que cada coisa esteja na sua devida ordem.
União de ideais e vontades na relação patrão-empregado
Então, a patroa que manda na sua criada precisa dar-lhe uma alta ideia do valor sacral das coisas que ela deve fazer, e conformar a vontade da empregada nesse espírito.
E a primeira relação entre a criada e a patroa é de caráter religioso, na qual elas se fundem no ideal e trabalham no mesmo ritmo, na mesma direção. Apenas a patroa exerce um poder, a seu modo sacral, de dirigir a criada nesse ponto. E a criada ama esse poder, porque a ajuda a realizar um serviço de Deus, de que ela está incumbida.
A patroa, dando a entender o caráter sacral desse trabalho, faz com que ele perca o seu caráter vil, porque o serviço manual tem qualquer coisa que envilece; ele é trivial, corriqueiro e pode até rebaixar a alma se a pessoa que o exerce não tem em vista o caráter sacral de sua atividade.
Em segundo lugar, é preciso levar em consideração o trabalho da criada, não mais enquanto limpando a casa, mas servindo a patroa e admirando-a. Tudo isso adquire outro significado porque é da glória de Deus que o gênero humano produza toda forma de perfeição, dignidade, distinção, elevação de que é capaz; portanto, glorifica a Deus haver uns poucos que tenham mais esplendor de personalidade do que os outros, porque, não podendo ser dado esse esplendor a todos os seres humanos, ele se realiza pelo menos em alguns.
E a criada, estimando uma sineta, quer que esta seja bonita e limpa, deve amar mais ainda a sua patroa. A criada deve, portanto, ter um gosto sacral de admirar a patroa, e esta precisa ter um gosto sacral de ser admirada, não por esnobismo, por pretensões de vaidade e muito menos por coisas sensuais, mas pela alegria de ver transluzir no seu exterior uma beleza interior que Deus lhe deu, está de acordo com a ordem das coisas, e é bom, nobre, digno, conveniente que transluza.
A patroa que assim se considera presta um serviço a Deus. Dessa forma, quer a criada que admira, quer a patroa que é admirada o fazem religiosamente.
Então, não existe a sensação desagradável de uma que não tem roupas bonitas e que adorna quem as possui; mas é uma espécie de consórcio, de conjugação, pela qual aquela que está debaixo serve a Deus em união com aquela que está de cima. Há, portanto, uma união de ideais e de vontades nesta relação patrão-empregado.
Eu poderia apresentar inúmeros outros exemplos, para mostrar que as atividades puramente humanas têm fundamento, em última análise, metafísico, em Deus.
Deus ampara os grandes concedendo-lhes pequenos para servi-los
A Providência Divina se exerce de superior para inferior e de inferior para superior. Quer dizer, Deus protege os pequenos dando-lhes os grandes para dirigi-los; e ampara os grandes concedendo-lhes os pequenos para servi-los. Por incrível que pareça, aquele que serve é de algum modo o reflexo de Deus enquanto velando por aquela criatura. Então, aquele que faz esta função com respeito e distinção, executa algo que está dentro da linha da Providência.
Alguém objetará: Deus não pode respeitar a sua criatura; Ele é tão grande e a criatura tão pequena…
Não é verdade, Ele trata cada alma com um respeito, uma consideração, uma distinção, que o servidor deve imitar.
Assim, compreendemos melhor a atitude de Nosso Senhor querendo lavar os pés dos seus próprios Apóstolos. É uma santificação e uma glorificação do trabalho dos que servem.
O empregado é servidor do amor que seu patrão tem a Deus
Todas essas relações patrão-empregado, num escritório ou qualquer outro setor, devem ser antes de tudo sacrais. O empregado precisa sentir no patrão uma compenetração da sacralidade do ofício que ele faz; ele não é um servidor do egoísmo do patrão, mas do amor que este tem a Deus.
É claro que entra também um amor que o patrão tem a si mesmo, que é uma coisa legítima. O amor de si mesmo tem um fundamento metafísico e também imita a Deus, porque Ele se ama infinitamente a Si mesmo. De maneira que atender a alguém, que por amor de Deus ama a si mesmo, é também fazer uma coisa sacral.
O servidor deve imitar o respeito, a consideração e a distinção demonstrados por Nosso Senhor lavando os pés dos apóstolos.
Dessa forma, o empregado que ajuda o patrão a velar legitimamente pelos seus interesses, não é o servo de um interesse vil, mas está na ordem posta por Deus. Porque Deus se ama infinitamente a Si mesmo, todo ser ama o seu próprio ser. Trata-se de um reflexo na criatura do amor infinito que Deus tem a Si mesmo, da coesão interna e necessária que Ele possui no seu próprio ser.
Essas considerações explicam qual é a relação existente entre a autoridade e o súdito, quanto ao mando. A autoridade tem, ao mandar, uma participação mais intensa na dignidade de uma ação, do que aquele que obedece. Porque, em si mesmo, quando algum homem manda outro fazer alguma coisa, ele dirige e o subordinado executa. Como a função diretiva é maior do que a executiva, quem dirige faz mais intensamente aquilo do que quem executa. Por isso, quem dirige deve ter uma compenetração maior da sacralidade do que ele faz, do que quem opera. Consequentemente, aquele que dirige precisa — com mais respeito, amor de Deus e sacralidade — dar o impulso diretivo da coisa.
O patrão deve representar para o empregado algo de novo, desconcertante e sempre atraente
Por causa disso, a relação entre patrão e empregado de algum modo — entendam bem o que estou dizendo! — se inspira na relação sacerdote-leigo, quer dizer, do mais sacral para o menos sacral; neste caso, trata-se de uma superioridade religiosa que, antes de tudo, deve existir. Ora, toda relação sacerdote-leigo exige em primeiro lugar que o sacerdote não deixe demasiadamente transparecer em si o homem. Há certa compostura sacerdotal, pela qual o padre sente muito o sacerdote e pouco o homem.
Quando o sumo pontífice da Antiga Lei ia fazer o sacrifício no Templo, ele subia os degraus do santuário coberto até aos pés. E a Escritura diz que devia ser desse modo para que não se vissem os seus pés e, portanto, as pessoas não contemplassem a sua vergonha. Ou seja, para dar a impressão que o pontífice estava como que deslizando, e não se notasse onde ele tocava no chão.
O padre perfeito é aquele que se apresenta pouco como homem: não fala muito dos seus gostos, de suas opiniões puramente pessoais, suas meras preferências, suas comodidades, nem de sua pessoa; mas faz esquecer a sua pessoa a fim de pôr em evidência o seu sacerdócio; ele se apaga por detrás do seu sacerdócio.
Na fotografia, que tanto apreciamos, do Cardeal Merry del Val, isso é notável: ele não pensa em si, mas apenas na dignidade cardinalícia de que está revestido; sua pessoa está apagada.
De algum modo, em relação aos seus empregados, também o patrão precisa ser assim. O empregado não deve ver o patrão nos seus prosaísmos, a não ser no indispensável que o serviço exige; mas, tanto quanto possível, o patrão precisa estar composto diante do empregado, e o homem apagar-se atrás da autoridade. Deve aparecer o patrão e pouco o indivíduo, nas menores coisas.
Por exemplo, o empregado traz o chá da manhã para o patrão. Este não deve deixar o empregado ir entrando no quarto, sem antes bater à porta, porque pode estar dormindo. E quando ele bate, o amo precisa razoavelmente, sem exagero, compor as cobertas para não estar de um modo ridículo. Somente depois, faz entrar o empregado. Age assim para o homem se apagar — porque o homem é sempre cheio de misérias — e aparecer o patrão, que tem a sua dignidade própria.
Assim também, em torno do verdadeiro sacerdote, e sobretudo do verdadeiro bispo, deve haver certo isolamento e um pouco de mistério.
Prestando atenção na fotografia do Cardeal Merry del Val, percebemos que ele tem certo mistério, ninguém penetra no fundo daquela alma; há uma zona de segredo entre ele e Deus que gostamos de ver que existe, mas não queremos aprofundar, porque entendemos que foi feita apenas para Deus e ele. Assemelha-se às florestas e aos mares, que devemos olhar da orla e não penetrar neles. Assim é o mistério da relação do Altíssimo com o sacerdote, sua vida espiritual etc.
Sentiríamos mal-estar em receber confidências sobre a vida espiritual de um sacerdote. Parecer-nos-ia estar colocando a mão dentro do tabernáculo, onde a mão de um leigo não deve entrar. De um amigo as receberíamos com naturalidade; de um sacerdote, não. O que dizer a respeito do receber as confidências da vida espiritual de um Papa… Ele é tão sagrado que, mais do que ninguém, precisa ser envolto num certo mistério, que nos encanta contemplar, atrai, seduz, fixa a atenção, mas no qual não penetramos, deixa-nos a uma respeitosa distância.
Também o patrão para o empregado deve ter certo mistério. O empregado não deve entender inteiramente o seu patrão, o qual deve ser para ele algo de novo, desconcertante e sempre atraente. Sem isso não existe o verdadeiro patrão.
O isolamento da superioridade…
Por outro lado, o patrão, quando manda, deve normalmente fazer com que o empregado possa sentir o quanto há de razoável no que ele executa. Mas, às vezes, ele precisa mandar alguma coisa que o empregado não entenda, para habituá-lo a obedecer.
A sacralidade requer certo isolamento, o qual não se pode transpor de qualquer maneira, mas sim passo ante passo, como quem entra num santuário.
Esse é o modo do exercício verdadeiro da autoridade. O superior não pode agir como um indivíduo que manda no outro por sua força própria, mas sim com sacralidade, em nome de um princípio religioso, de uma autoridade religiosa.
Em razão de tudo isso, o patrão deve ter uma forma de bondade com o empregado, concedendo-lhe carinho, mas não lhe dando a possibilidade de retribuir esse carinho horizontalmente. O reflexo natural do empregado verdadeiro, quando recebe uma prova de afeto do seu patrão, é de lhe beijar a mão, não de lhe dar um abraço.
Uma linda representação desse afeto do empregado pelo dono da casa eu vi num quadro de um pintor norte-americano, que era perfeitamente fotográfico e representava esta cena: uma caixa de escada, uma árvore de natal toda enfeitada e uma velha sozinha. A velha tinha perdido os seus filhos ou fora abandonada por todos e comemorava o Natal na solidão. Do lado de fora da porta, uma mulher olhando e chorando; quer dizer, ela tinha pena da velha, mas não ousava entrar para consolá-la. Analisada com tato, esta cena é uma verdadeira beleza.
Todo o poema de delicadeza e compreensão das relações patrão-empregado, que pode se manifestar quando se vê isso na perspectiva católica, está insinuado nesse quadro.
A patroa estava só e padecendo uma dor que a empregada não ousava transpor, por causa da sacralidade; mais ou menos como quem, sem licença, não ousaria se aproximar de um Papa, um rei, um bispo, um príncipe que estivesse sofrendo sozinho. Há um isolamento da superioridade, que é sacral e não se pode transpor de qualquer maneira, mas sim passo ante passo, como quem entra num santuário; há certas ocasiões em que até se deve transpor, e outras nas quais não se pode transpor.
Posta a focalização religiosa, as relações patrão-empregado não têm o caráter meramente funcional, mas são de alma a alma.
Certos isolamentos ninguém transpõe
No Horto das Oliveiras, Nosso Senhor também teve um isolamento. Ele estabeleceu até três distâncias: os discípulos ficaram longe, nem estavam no Horto; todos os Apóstolos ali entraram, mas Jesus chamou alguns para mais perto; assim mesmo Ele estava distante deles.
Há certos isolamentos que ninguém transpõe. Certos pintores representam a Cruz quase da altura de um homem e as pessoas passando diante dela, injuriando Nosso Senhor, olhando à vontade para o mistério da dor d’Ele.
É possível que tenha sido assim, indicando um tormento a mais infligido a Jesus pelo Pai, pela justiça divina. Mas a nós nos compraz imaginar a Cruz alta. Porque sofrendo uma dor tão sublime, causa-nos horror a ideia de alguém que tenha penetrado no âmbito dessa dor, a não ser alguém que estava embaixo, mas tão perto e tão dentro como mais não poderia ser; Alguém com A maiúsculo que todos os presentes neste auditório já sabem quem é. Fora d’Ela, ninguém.
De longe, Maria Madalena, enlevada, chorando; as santas mulheres etc. Mas ninguém com o rosto junto à Face d’Ele. Essa intimidade havia sido dada a pouquíssimos, para os mais queridos, talvez para São João Evangelista.
Ponto de partida das relações patrão-empregado: Deus está sempre presente
Compreendemos assim, por analogia, a posição da autoridade diante do súdito; tudo quanto é sucção pessoal, quer dizer, tirar um mero proveito pessoal, mandar pelo gosto de dobrar alguém ao próprio capricho, tudo isso passa à margem. O que entra é essa consideração religiosa de que tudo se desenrola numa esfera sacral, em que o amor de Deus está sempre presente. Esse seria o ponto de partida para se imaginar as perfeitas relações entre patrão e empregado doméstico.
É claro que essas considerações se aplicam também às relações entre oficial e soldado, chefe de escritório com seus empregados, e daí por diante. Mas isso exige da parte de quem exerce a autoridade muita humildade, para de tal maneira empurrar o homem para trás e colocar no centro exclusivamente Deus. Esse é verdadeiramente um ponto fundamental da humildade.
Um rei, um bispo, um Papa que, por exemplo, está sendo carregado sobre um andor aos olhos de todo o povo. Havia em uma de nossas sedes um quadro de São Pio X, o qual toma uma atitude sacral. O Sumo Pontífice não está pensando no efeito que a pessoa dele está produzindo, mas apenas na suprema dignidade do Papado de que ele está revestido. Está compenetrado do respeito pelo Papado e pelo Papa, talvez mais do que todo mundo na Basílica inteira. Ainda que ele fosse dotado de dons que, no plano humano, pudessem talvez justificar alguma coisa de parecido com isso, o acento está na sacralidade da situação, da função.
Quer dizer, há uma verdadeira ascese do patrão para fazer aparecer a função na sua sacralidade e comprimir o homem. O próprio homem é sacralizado até certo ponto pela função, mas seus prosaísmos, limitações e contingências devem desaparecer.
(Extraído de conferência de 14/11/1969)
1) Cfr. Dr. Plinio nº44, p. 20 a 25.