Rosácea da Catedral de Notre Dame, Paris.

Capaz de apreciar o quotidiano com elevação e sublimidade, conduzindo a vida sem torcida, sem nervosismos, o medieval estava pronto para todos os heroísmos, todas as aventuras, em suma, estava pronto para a santidade.

Através das iluminuras, cenas dos vitrais, esculturas das catedrais da Idade Média, pode-se ver a vida das pessoas daquela era histórica, como elas pensavam e agiam. E verificamos que nessas representações eram adotados dois tipos de temas.

Fotos: G. Kralj, S. Hollmann, S. Miyazaki, Anônimo.

Harmonia entre a vida quotidiana e o heroísmo medieval

Os temas heróicos, que não correspondem à vida de todos os dias: um cavaleiro partindo para uma Cruzada, um santo tendo um êxtase, outro gozando da glória de Deus, um rei que está sendo coroado ou exercendo seu império sobre os súditos etc. São as cenas do maravilhoso da vida na Idade Média.

Há também inúmeras pinturas que causam a curiosa impressão de não representar senão a vida quotidiana medieval: agricultores trabalhando, que manifestamente não foram postos ali com nenhum intuito simbólico, mas com o simples objetivo de descrever a vida de todos os dias, e com uma preocupação quase fotográfica.

Os pintores eram coloristas esplêndidos, mas não tão exímios no desenho; por isso, não tinham habilidade fotográfica. Eles representavam minudências da vida quotidiana: um cachorrinho andando, um gato que sobe em algum local, um camponês que deixou cair o instrumento de trabalho e está apanhando-o, uma mulher dentro de casa tecendo, padeiros colocando aquela espécie de tábua com uma série de pãezinhos no forno, um homem escrevendo com perfeita caligrafia e mil coisas desse gênero.

Fotos: G. Kralj, S. Hollmann, S. Miyazaki, Anônimo.

Entre o medieval heróico e o da vida quotidiana existia um nexo, porque era o mesmo homem que estava aberto para o heróico, admirava-o, fazia dele o polo de sua existência e, quando havia ocasião, praticava-o.

Portanto, entre a vida de todos os dias e o heroico não havia contradição, mas contrastes harmônicos.

Aparente contradição

E, coisa curiosa, os extremos harmônicos se apresentam tão flagrantes que quase parecem contraditórios. Porque se nota um gosto do estável, do contínuo, de hábitos que nunca ficam imóveis, mas vão se aprimorando ao longo dos tempos, tornam-se mais culturados. Tem-se a impressão de uma enorme continuidade em toda a civilização medieval.

Porém, quando se olha para o lado grandioso, percebe-se o senso da aventura, do imprevisto, a realização da viagem longínqua, da peregrinação perigosa, fatos extraordinários como a aparição de um anjo ou de um demônio, um apuro pelo qual uma pessoa passou, mas Nossa Senhora interveio e salvou-a, etc.

Fotos: G. Kralj, S. Hollmann, S. Miyazaki, Anônimo.

Para o homem moderno, uma coisa parece ser o contrário da outra. Entretanto, o medieval as unia. Os indivíduos caseiros não gostam da aventura, e os aventureiros não apreciam a continuidade: é uma das cisões próprias ao mundo moderno, mas que na Idade Média não existia.

Intimidade coabitando com a solenidade

Há ainda um terceiro elemento: os medievais, tão maravilhosos para inventar representações do sobrenatural, por exemplo, anjos fabulosos, céus extraordinários, reis que se movem num fundo azul, de ouro e púrpura fantásticos, quando se trata de pintar a vida de todos os dias, são de um realismo tremendo.

Eles representam um duque e uma duquesa, deitados em gisants, rezando com toda a solenidade. Verificando bem as esculturas, nota-se que os pés da duquesa ou do duque estão apoiados no cachorrinho de estimação, representado junto à sepultura. É uma nota da intimidade ao lado da solenidade.

Nota-se que os medievais, na vida quotidiana, têm um profundo bem estar. Não nos causam a impressão de pessoas divididas por doutrinas opostas, remorsos, ânsias, torcidas, ou qualquer outra coisa que caracteriza o mundo contemporâneo. São pessoas profundamente calmas, tranquilas.

E, algo desconcertante e misterioso para a psicologia do homem contemporâneo, eles tinham todas as paixões humanas e, embora menos frequentes do que no mundo de hoje, também desregramentos. E, quando pintam os próprios personagens ambiciosos e desregrados, os representam tranquilos.

Detalhe do Pórtico de Santana – Catedral de Notre Dame, Paris.

Superar a trivialidade inerente a este vale de lágrimas faz da vida quotidiana a arena onde se realiza o ideal

Além da profunda tranquilidade, nota-se outra coisa.

Nas representações há certos personagens que posam, por exemplo, um rei sentado no seu trono; são profundamente dignos. Mesmo quando os medievos representam certo prosaísmo, como pequenos burgueses obesos, não são apalhaçados. Eles podem rir, mas não são ridículos; são profundamente dignos, tendo uma espécie de fundo de estabilidade.

Então, existe bem estar muito grande, dignidade contínua, mesmo no mais prosaico e, coisa curiosa, certo maravilhoso que não está no traje, nem na atitude, mas num fundo de alma. Percebe-se que, embora não estejam maravilhadas no momento, são almas maravilháveis. Se o rei em sua carruagem passar diante do mais simples dos personagens, este está pronto para aplaudir, se regozijar, tirar o gorro e bradar “Viva o rei!” O soberano lhe atira uma moeda, e ele fica contentíssimo. Passa o duque, ele faz uma reverência. A duquesa está fiando, vem uma criada dizer-lhe algo, ela conversa de bom grado.

Tais personagens, pintados geralmente em iluminuras, podem ser prosaicos, mas sempre dentro de uma luz maravilhosa. Pelo ar e colorido da natureza, vê-se o prosaico banhando-se no interior do lindíssimo.

Por tudo isso se conclui que o homem medieval, na sua vida quotidiana — portanto, não a dos lances extraordinários, das horas de emoção, mas do tran tran de cada dia —, tinha uma posição de alma por onde não se deixava vencer pela trivialidade inerente a este vale de lágrimas, mas a superava. Possuía uma espécie de luz mental, interior, pela qual comunicava àquela trivialidade uma espécie de senso simbólico ligado ao sobrenatural; e também o caráter de uma espera das horas em que Deus intervém; de uma luta na qual ele cumpre um dever e, por causa disso, é santificada e maravilhosa. Isso fazia com que a vida quotidiana não fosse para ele o contrário do ideal, mas sim a própria arena habitual da realização do ideal.

Quer dizer, aquilo tomava uma espécie de colorido que modificava completamente o sentido que temos da vida quotidiana. Vendo-se os objetos comuns que os medievais deixaram, verifica-se que são marcados por esse estado de espírito: um panelão de cobre de uma cozinha, um espadagão de um sargento, um tamancão de um camponês. São, no fundo, expressões de força, continuidade, seriedade, dignidade, coincidentes com o que dizem as iluminuras, porque estas não eram puras fantasias.

Os móveis da casa de um camponês — falo do camponês porque sua vida era mais trivial do que a do nobre; portanto, a fortiori, isso sucedia num castelo —, sem excitação nem esplendor, mas no diapasão da vida de todos os dias, eram impregnados de maravilhoso, discretamente de nobreza, com dignidade e grandeza. Bem diferentes das coisas triviais de hoje…

Em última análise, era a inocência olhando a vida de todos os dias, não fazendo dela uma coisa asfixiante, em que se fica como um peixe fora d’água à espera da aventura, mas algo que nutre a alma, preparando-a para a grande aventura, os grandes encontros da vida, as grandes batalhas, os grandes lances.

Havia uma espécie de continuidade entre as duas coisas, sem a qual creio que não se poderia explicar a mentalidade do homem medieval.

Algumas coisas dessa vida são representadas de modo muito atraente. Lembro-me de panoramas ingleses, ainda marcados pela Idade Média, que vi no filme sobre São Tomás Morus1: uma pontezinha de pedra sobre um riozinho que corre, embaixo da qual passam gansos e marrecos; uma trepadeirazinha com flores vermelhas ao longo de uma muralha de pedra; uma janelinha com um vitralzinho e uma tranca, a qual é aberta para se ver quem está chegando. Essas coisas todas são triviais, mas pitorescas, impregnadas de significado simbólico. Constituem a vida quotidiana que prepara para o maior.

Dr. Plinio na década de 80.

Então, o indivíduo não fica ali como um peixe fora d’água, querendo aventuras, torcendo, com dor de cabeça, aborrecido. Pelo contrário, é estável, não porque aquilo o feche naquela vida, mas por sentir que o prepara para outra, maior. Quer dizer, é uma contínua e harmoniosa preparação para o maior.

A temperança medieval

Torcida, depressão, excitação, falta de ar que uma ou outra geração posterior à Idade Média por vezes sente dentro da alma, nada disso cabia naquele contexto, em que o quotidiano era considerado com os olhos da inocência.

E naquela era histórica havia também oportunidades, nas quais todas as paixões humanas tinham meios de se satisfazer moderadamente.

Se a pessoa quisesse intimidade, ela existia dentro de sua casa aconchegada; desejando aventura, bastava sair da cidade, cavalgar nos campos, onde poderia ser assaltado e travaria lutas de vida e morte.

Enfim, tudo tinha a sua capacidade de realização fácil e à mão, de maneira que o homem não tinha boas tendências abafadas, controladas, reprimidas. A vida lhe dava oportunidade de exercê-las por inteiro. Portanto, existia alívio. Não é a vida de hoje

Assim, temos uma ideia do que foi a temperança medieval, como uma espécie de ponto de equilíbrio durante a vida quotidiana, preparando para os auges, os ápices, sem torcidas nem nervosismos, sumamente calma e voltada para o maravilhoso, mesmo nas horas não maravilhosas da existência.

Afirmo que essa posição era marcada pela inocência porque defino a inocência como o estado de alma por onde o indivíduo compreende que seu maior interesse não é estritamente individual, mas está na ligação com o seu arquétipo e, através deste, na união com Deus.

Ter um interesse individual fechado, estanque, por exemplo, “o meu é o contrário do seu”, é uma ideia não medieval. O interesse individual é entrelaçado com o do arquétipo, e irmão de todos aqueles que vivem em torno do mesmo arquétipo; é aberto, circula honesta e lealmente.

Esta inocência voltada, em última análise, para Deus era o estado de espírito corrente, que existia normalmente. E isso é tão maravilhoso, que as pessoas que viajam para a Europa têm, outrora a esperança, hoje a ilusão de encontrar coisas dessas.

Todo aquele colorido, que chamamos antiga Europa, ainda é o resultado dessa impregnação da vida quotidiana por esse ideal e vivido sob o ponto de vista dessa inocência.

O homem da vida quotidiana medieval não se explica sem uma tendência habitual para o heroísmo. Essa vida provinha de uma posição temperamental estável, ordenada, sem torcidas, ilusões nem sonhos, mas com ideais. Razão: essa inocência primeira que ele tinha na raiz da alma.

Essa seria a concepção que deveríamos ter, e que eventualmente importaria em reformas de nós mesmos, se temos a vida quotidiana feita de outra maneira.

Sublimar o quotidiano, vendo nele os padrões ideais

A inocência tem sempre diante dos olhos os padrões ideais de todas as coisas. E uma tendência a, dentro do bom senso, considerar cada uma delas enquanto realiza o seu padrão ideal. É como uma criança mexe com as coisas.

Imaginemos uma criança da pequena burguesia que vê a mãe costurando com uma tesoura; é uma cena da vida doméstica. Ela olha a mãe segundo um padrão ideal, e sua ação de costurar em toda sua beleza metafísica: “Mamãe costura, com um tesourão.” Para ela, o tesourão é o símbolo do poder de sua mãe. Ela idealiza a tesoura. Anos depois, quando ela vê a tesoura, fica espantada. Mas não foi uma ilusão. De fato, a criança estava vendo algo muito maior do que a tesoura, um determinado padrão ideal que ela possuía, que é a luz da inocência.

(Extraído de conferência de 8/9/1974)

1) “A man for all seasons”, Estados Unidos, 1966, título traduzido para o português da seguinte forma: “O homem que não vendeu sua alma”.