Dona Lucilia em 1912.

Narrando o afetuoso método por ele empregado a fim de diminuir a sensação de isolamento em Dona Lucilia, Dr. Plinio nos deixa o exemplo de como deve ser o trato entre verdadeiros católicos.

Mamãe bem poderia fazer seu o comovedor gemido do Profeta Isaías: De gentibus non est vir mecum1. Pois no considerável número de pessoas que ela havia conhecido na São Paulinho de seu tempo, ela podia dizer que não havia uma pessoa que estivesse com ela.

Não digo que ela não tivesse relações sociais ou amizades. Havia senhoras com as quais ela trocava visitas, mas quão pouco profundo e consistente era isso. Mesmo porque, naturalmente, a morte foi rareando muito o número de suas relações.

Neste quadro pode-se perceber bem qual era meu papel: mostrar-lhe que ao menos seu “filhão” a compreendia e queria o quanto era possível querer.

Por expressões fisionômicas pode-se dizer o que a palavra não diz

Como eu fazia isso?

Meu trato com ela não era muito explícito. Por meias palavras, por expressões fisionômicas e por olhares, podíamos dizer muitas coisas de que a palavra humana não é capaz. E, sobretudo, dá garantias de veracidade e profundidade que a palavra somente não dá.

É fácil mentir com os lábios, mas com o olhar é muito difícil.

E com um conjunto de atitudes — ao menos que se trate de um ator de profissão, ou de um hipócrita por definição — é ainda muito mais difícil. Pois, mesmo que a comédia seja bem representada, num convívio de muitíssimas décadas, haverá ocasiões em que o trato pessoal desmente o que um olhar fugaz ou uma atitude passageira procurou significar. E isto ela notaria, porque eu via bem que ela notava tudo.

Apesar disso, eu não lhe poupava as palavras. Conversando com ela em tom ligeiramente jocoso, nunca em tom dramático e declamatório, eu dizia tudo quanto de carinhoso e elogioso é possível dizer, inundando-a de todas as formas de carinho.

Testemunhas da doçura, bondade e afeto no trato

Certa vez, uma pessoa de minha família que estava ficando velha, dizia que estava com vontade de morrer. Eu, para ser amável, lhe disse: “Mas por quê? Você tem os seus que lhe afagam e lhe compensam muita coisa na vida.” E outras coisas sem muita profundidade, mas ditas para agradá-la. Tal pessoa deu-me a seguinte resposta: “Se eu tivesse em minha casa quem me tratasse como você trata sua mãe, eu quereria viver 400 anos.”

Nisso se vê como eu a protegia contra a sensação de isolamento que poderia assaltá-la.

Certo dia, num corredor de minha casa que vai do hall ao quarto dela, pelo qual eu entrava e ela saía, bem junto à porta, nos encontramos. Não sei o que ela vinha pensando, mas ela pôs as duas mãos sobre os meus ombros e disse: “Filhão, eu não tenho ninguém a não ser você. Mas você eu tenho inteiramente.”

Estas palavras me ficaram no espírito. Eu não respondi, porque certas coisas não têm resposta. Eu só a beijei e abracei como de costume. Entrei para meu escritório e ela foi para dentro da casa.

Essa cena, apesar de simples, diz muito.

A tocante preocupação que ela, no fim da vida, teve em diminuir as manifestações de afeto para comigo, querendo desta forma amenizar as saudades que eu teria quando ela morresse, mostrava que ela sabia bem o quanto eu a queria, e o quanto este isolamento dela, pelo menos em parte, era quebrado.

O afastamento a faria sofrer mais do que a morte

Por vezes, eu me perguntava se os circunstantes se davam conta disso. Numa ocasião em que eu ia de avião à Europa, dirigi-me com ar de conversa a uma pessoa de minha família e perguntei o seguinte:

“Se o avião caísse e você tivesse que anunciar à mamãe que eu morri, de que maneira o faria?” A esposa dele que estava presente, disse rindo: “Fulano anunciar? Eu tenho certeza de que ele não o faria nunca, pois ele sabe que isto seria para ela um tal golpe, que sua afetividade não permitiria que ele anunciasse. Ele incumbiria a outro, mandaria outro fazer, se necessário viajaria, fugindo disso como uma criança foge do bicho papão; mas anunciar, ele não teria coragem.”

Eu insisti: “Mas, se fosse ele que tivesse que anunciar, o que ele faria?”

Ela disse: “Era mais fácil ele esconder-se atrás de mim e pedir que eu anunciasse, do que ele fazer.”

Outra pessoa que lá estava, disse: “Eu saberia perfeitamente o que fazer: Não contar.”

Eu disse: “Mas como esconder isso?”

Ele disse: “Eu diria que você está viajando.”

Eu retruquei: “Mas ela não estranharia quando acabassem as cartas?”

Ele respondeu: “Eu não contaria.”

Nessa hora, vários outros que estavam na conversa também disseram: “Nós também, simplesmente, não contaríamos.”

E acrescentaram: “Nós iríamos levando a mentira para a frente, afirmando: Você mandou dizer, você telefonou, passou um telegrama, mas nós o perdemos.”

Eu ponderei: “Mas ela ficaria muitíssimo desconfiada de que tivesse acontecido alguma coisa.”

Então unânimes responderam: “É melhor ficar desconfiada do que ter certeza.”


Uma pessoa ainda perguntou: “Não seria pecado, não é?”

Evitei responder, mas acho que seria, pois se Nossa Senhora permitisse, ela teria forças para resistir. O que talvez se pudesse fazer seria não contar logo, e fazer piedosamente uma novena de Missas, de comunhões e de rosários, pedindo a Nossa Senhora que desse forças a ela. Mas depois, com todos os cuidados, contar.

No centro, aspectos do salão cor-de-rosa, na casa de Dona Lucilia. À esquerda, Dr. Plinio na década de 30; à direita, Dona Lucilia aos 92 anos.

Porém, o temperamento brasileiro é pouco propenso a esse tipo de solução.

Então eu disse: “Vocês estão enganados, pois ela assim sofreria mais, por achar que eu fiz minha vida à parte, esqueci-me dela e construí toda a minha existência sem ela. Tenho certeza de que isto seria para ela pior do que a própria morte.”

Com isso, a conversa tornou-se tão pesada, sendo necessário mudar de assunto.

Mas era a realidade. Meu distanciamento seria para ela pior do que a morte.

As lágrimas deram lugar à paz e tranquilidade

Quando ela morreu, seu corpo foi exposto no salão cor-de-rosa que há em minha casa. Eu estava sentado num sofá diante do corpo dela; em certo momento uma pessoa entrou, rezou um pouquinho diante do cadáver, depois foi me abraçar.

Levantei-me e a pessoa me disse em voz baixa: “Sei que a morte da própria mãe, hoje em dia, para a quase totalidade das pessoas, significa pouca coisa; mas sei bem o quanto significa para você.” Era uma senhora de minha família, com quem eu tinha grande intimidade; ela beijou-me e retirou-se.

Nesta ocasião creio ter espantado um pouco os circunstantes, porque eu chorei muito e em altos brados. Mas, depois precisei retirar-me para meu quarto, a fim de me preparar para os funerais.

Enquanto eu me aprontava, se apossou de mim uma paz, uma serenidade, uma tranquilidade da qual não posso me esquecer. As lágrimas cessaram e a ideia da distância, da catástrofe que tinha acontecido com a pessoa que eu mais queria na Terra, passou, dando lugar a uma tranquilidade e uma paz que eu tive a impressão de ter desnorteado meus circunstantes. Aquele dia terminou numa extraordinária tranquilidade.

No dia seguinte, retirei-me a uma fazenda por recomendação médica e lá permaneci até o dia da Missa de sétimo dia.

Neste dia, fui bem cedo para São Paulo assistir à Missa, conservando a mesma paz.

Iniciou-se, então, outra forma de convívio, em que a delicadeza dela se fazia sentir indireta, calma, tranquila, discreta e parcimoniosamente.

Graças a Nossa Senhora, seus últimos dias foram cercados de muita benquerença

Durante o período em que eu estive acamado, devido à amputação de alguns artelhos, nas horas determinadas pelos médicos, mamãe entrava para falar comigo. Ela, muito ciosa, não perdia uma oportunidade.

Geralmente, ela errava a hora para menos, nunca para mais… Algumas vezes ela passava pelo meu quarto e dizia para a empregada que a conduzia: “Chegou a hora de eu falar com Plinio.” A empregada respondia: “Não, senhora, ainda não chegou a hora.”

Ela dizia: “Não. Já está na hora!” E amavelmente discutia com a mulher.

Ouvindo isso, eu dizia para a empregada: “Deixe-a entrar.” Fingindo ser a hora dela, dizia: “Então meu bem, chegou a hora!”
Eu desconfiava de que ela conversasse com as pessoas que me esperavam no salão, mas não imaginava que o entendimento entre eles e ela fosse tão grande. Às vezes, vendo-a entrar com a fisionomia tão animada e alegre, eu me perguntava: Por que será que ela está tão alegre?

Só depois de ela falecer, em conversa com alguns, é que percebi até onde a simpatia em relação a ela tinha chegado. Dei graças a Nossa Senhora por ver que os seus últimos dias foram cercados de uma benquerença que transpõe os umbrais da morte.

(Extraído de conferência de 11/6/1982)

1) Eu pisei sozinho o lagar, e ninguém dentre os povos me auxiliou. (Is 63,3)