Dona Lucilia aos 80 anos.

Errar faz parte da natureza humana, porém, corrigir também o faz. Do modo de Dona Lucilia repreender seu filho pode-se tirar múltiplas lições acerca de como a alma, verdadeiramente católica, deve proceder em tais ocasiões.

Mamãe foi uma pessoa dulcíssima, a tal ponto que eu não conheci pessoa tão doce e suave quanto ela, que soubesse tão bem agradar, consolar, repreender, perdoar e animar.

Nela transparecia certa forma de suavidade e superioridade, de modo que quem a visse, certamente notaria uma atitude de alma fundamentalmente nobre.

Isto transparecia até quando ela ficava zangada. Por exemplo, num episódio de minha infância em que cometi a tolice de falsificar o boletim do colégio para evitar aborrecê-la. Porém, tendo percebido minha trapaça, ela ficou ainda mais zangada comigo1.

“Indignai-vos, porém não pequeis”

Ao lembrar-me da atitude dela em referido episódio, vem-me à mente uma palavra da Escritura: “Indignai-vos, porém não pequeis.”2 Tal frase equivale a dizer que, ao se encontrar diante de algo ruim, deve-se indignar-se e até mesmo censurar aquilo, porém nunca com raivas, furores e assanhamentos incontidos, próprios a um bicho bravo. Pelo contrário, nestas ocasiões deve-se manter sempre a doçura, a serenidade e a superioridade de alma.

Mesmo quando estava zangada, em Dona Lucilia transparecia certa forma de suavidade e superioridade, numa atitude de alma fundamentalmente nobre.

Este é o modo como sempre a vi proceder. Quando necessário, ela me censurava com termos, às vezes, duríssimos. No caso do boletim, ela me disse: “Eu nunca em minha vida esperei ter um filho falsário.”

Estas palavras são terríveis, sobretudo para uma criança muito obediente, dócil e afeita àquela que lhe dirigia a censura. Neste contexto, ser tratado de falsário é uma coisa pavorosa! Pois, este adjetivo é empregado a um homem desavergonhado, falsificador de assinaturas, o que além de um crime capitulado pelo Código Penal, constitui um pecado muito grave.

Correção profunda e racional

Porém, no modo de Mamãe pronunciar as palavras “ter um filho” havia uma ressonância aveludada, a qual me fazia sentir toda a consideração que ela tinha por mim. O amor extraordinário, a benquerença, a proximidade dela para com seu filho se faziam sentir naquelas palavras. Fazendo-me então pensar: “Eu sou filho dela, e, portanto, essa dignidade, doçura, serenidade, elevação, em suma, essa nobreza afetuosa e carinhosa são feitas para mim; porém, vejo que minha má ação contrariou-a, por isso eu mereço um castigo.”

Assim, eu ficava transido de admiração ao perceber o quanto ela via a fundo as coisas, procedendo de forma correta e racional quando se indignava comigo. A tal ponto que eu era impelido a me associar à indignação dela, ficando eu mesmo indignado comigo. Então, pela dor que sentia em tê-la ofendido, mas sobretudo pela dor de haver ofendido Nossa Senhora, via-me na contingência de pedir perdão.

Mamãe, então, dizia-me: “Se você tiver merecido uma nota baixa por ter má memória ou dificuldade de compreensão, eu não me zangaria tanto com você, pois se você não sabe Geografia é por que lhe falta inteligência. Se você não consegue aprender, eu tenho pena de você ser burro, assim como uma mãe tem de um filho doente.”

“Mas, se você falsificou sua nota por ter merecido uma nota baixa de comportamento”, — pois, no Colégio São Luiz, para todas as matérias havia duas notas, uma de aproveitamento e outra de comportamento — “aí é porque você é ruim, e isso não tem desculpa e merece um castigo. Se isso for assim, a primeira coisa que vou fazer é afastar você de mim, até você apreender a ser bom filho!”

Afastado pelas palavras e atraído pela pessoa

Quando se manifestava a zanga cheia de superioridade, nobreza e dignidade dela, eu me sentia pequeno e indigno de ser seu filho.

No caso do boletim, o pito durou alguns dias, pois, meu pai teve de ir ao colégio para se informar sobre a razão de uma nota tão baixa, que me tinha levado a falsificar a nota e, sobretudo, queria saber se a nota era de comportamento ou de aproveitamento. Até que se tirasse a limpo o ocorrido, passaram-se alguns dias.

T. Ring
Nossa Senhora Auxiliadora – Igreja do Sagrado Coração de Jesus, São Paulo.

Em cada um desses dias, sentada numa cadeira de balanço, Mamãe chamava-me para junto dela e repetia o aperto. Mas, isso era feito com tanta elevação e amor, que enquanto ela falava, eu me sentia tão atraído por ela que aos poucos ia me aproximando dela, brincando com seus dedos, seus anéis e pulseiras, o que era costume às senhoras daquele tempo usarem. Paradoxalmente, quanto mais as palavras dela me afastavam, tanto mais eu dela queria me aproximar pelo encanto que ela me causava.

De fato a nota era dez

Em certo dia, meu pai chegou do colégio com a resposta, a qual minha mãe e eu, cada um a seu modo, esperava ansiosamente.

Aquele era um dia sobremaneira quente, meu pai chegou trazendo algo na mão. Talvez fosse uma pasta com papéis, pois sendo ele advogado, estes geralmente carregam muitos papeis consigo. Aquele objeto ele colocou sobre um móvel enquanto exclamou como quem sente muito calor.

Minha mãe então disse:

— João Paulo, diga logo!

— Não tem nada, foi só uma bobagem que ele fez.

— Mas, então me conte qual foi a bobagem.

Meu pai então explicou:

— Verificaram nos apontamentos do colégio as notas do Plinio, e, de fato, a nota de comportamento em Geografia era seis, uma nota muita baixa. Mandaram então chamar o padre professor de Geografia e perguntaram o que o Plinio fez. O padre disse: “Ele não fez nada e não foi essa a nota que dei para ele. A nota dele é dez. Provavelmente, ao copiar a nota, o funcionário cometeu um erro.”

Então mandaram trazer os originais e verificaram que eu tinha tirado dez.

No momento da dificuldade nasce a devoção a Nossa Senhora

De qualquer forma, eu tinha andado mal, porque eu deveria ter reclamado no colégio e não ter feito a loucura que fiz.

Pois eu, com minha letra característica, tinha escrito dez sobre o seis. Mas, como ficava muito visível a falsificação, aproveitei o fato de estar chovendo e levei o boletim fora, para ver se molhava e borrava a nota. Porém, as gotas d’água caíam em todas as partes, menos na nota dez! Por mais que eu caçasse a água, não havia meio de molhar o que eu queria. Então desisti, fechei o boletim e fui para casa.

Não tive coragem de contar a mamãe a besteira que eu tinha feito, ao molhar na chuva o boletim. Ela achou aquilo tudo muito esquisito, e de fato o era.

Enfim, quando meu pai terminou de contar o fato, Mamãe aproximou-me dela, beijou-me e disse:

— Você promete que nunca mais fará uma coisa dessas, falsificar uma nota?

Eu, com toda a sinceridade de minha alma, respondi:

— Nunca mais!

Ela me beijou muito afetuosamente, e disse:

— Então está tudo acabado.

Aquilo consistiu num grande perdão dela, e num grande alívio para mim. Durante esses dias eu havia rezado muito a Nossa Senhora, e foi então que começou em mim algo que vale incalculavelmente mais do que tudo: minha devoção a Nossa Senhora.

(Extraído de conferência de 17/7/1993)

1) Cfr. Dr. Plinio nº 122, página 18.

2) Ef 4, 26.