Dr. Plinio na década de 1990.

Durante uma exposição para jovens membros do seu Movimento, Dr. Plinio fez uma saborosa descrição do ambiente da casa de Dona Gabriela e Dona Lucilia, que acolhiam com bondade os pobres e ex-empregadas.

As pessoas de antigamente, à medida que iam crescendo, estabeleciam uma espécie de distância, que — usando uma expressão muito exagerada — eu tenderia a chamar de monumental, entre elas e os outros, à maneira de um monumento colocado em algum lugar. O monumento e o lugar em volta dele formam um só todo, mas há uma distância ponderável entre ambos. Por exemplo, o Arco do Triunfo, em Paris, que teoricamente foi feito para ser atravessado por exércitos vitoriosos. Em volta dele construíram um canteiro de flores — aliás, é preciso dizer, com flores lindíssimas —, isolando-o do resto da praça.

Pode-se até objetar que não é possível passar pelo Arco sem esmagar a grama; mas o canteiro define a distância monumental entre o Arco e a praça.

Uma pessoa, por exemplo, da idade de minha avó, estava habitualmente posta em cogitações que não se sabia muito bem quais eram, mas que tinham uma estatura maior do que as cogitações das outras pessoas que a circunvizinhavam. O que não lhe permitia dar uma atenção inteira ao concreto, ao miúdo, ao circunstancial. Às vezes, davam essa atenção a uma coisa que caía debaixo de sua vista. Mas, normalmente ela deixava aquilo correr, com certa monumentalidade; as pessoas mais moças deveriam cuidar daquilo.

Acho que a dignidade da idade mais avançada realmente é compatível, fica bem com isso.

Uma espécie de “Pátio dos Milagres” em ponto minúsculo

A casa em que eu residia quando menino1 era alta e no andar térreo havia um local com alguns arcos, onde ficavam um cego, a Serafina, a Benedícite; uma espécie de “Pátio dos Milagres”2, em ponto minúsculo.

Assim que ali entrávamos, a Benedícite nos via — apesar de velha, ela possuía uma boa vista — e saía de um daqueles arcos e começava: “Babá, babá, babá…”; parecia um muezim muçulmano no alto de um minarete.

Ela percebia que eram meninos da família e, querendo assegurar o prato de comida, contava uma história que não terminava mais; depois fazia uma inclinação com o braço, dizendo “benedicite, benedicite”, uma bênção que ela, como velha, dava para nós, crianças.

E nós, não sabendo como responder, mas sentindo o pitoresco do personagem, parávamos para olhar um pouquinho e em geral jogávamos, mas de um modo afável, duas ou três moedas para ela, que as recebia com uma gentileza de primeira ordem e ficava muito contente. Dizíamos-lhe, então:

Dona Gabriela em 1912.

— Até logo, Benedícite!

— Até logo!

Margarida, ex-empregada da casa de Dona Gabriela

Havia também uma espanhola chamada Margarida, a qual, em tempos idos e vividos, muito anteriores ao meu nascimento, tinha sido empregada de casa. Mas ela depois se casou com um homem que, se não me engano, era vendeiro; possuía um armazém perto de nossa residência. Às vezes, Margarida ia à nossa casa para saber como estava o pessoal. Ela não tinha interesse, e fazia isso conforme aquelas fidelidades antigas. Acho que seu marido aprovava que ela assim agisse.

Margarida era magra, tinha um pescoção com uma cabeça pequena em cima, cabelos de um louro inexpressivo, com uns cachinhos, e muito feia. Quando ela se irritava, seu pescoço ficava meio vermelho, meio azul, como o pescoço de peru.

Eu que, graças a Nossa Senhora, fui chamado a ouvir falar tanto espanhol em minha vida, quando era menino e mocinho tinha dificuldade para compreender — era uma dificuldade auditiva — o espanhol, o português falado por um espanhol; e até mesmo o português falado por um português eu muitas vezes tinha dificuldade em acompanhar. Assim, eu não entendia o que a Margarida dizia.

A Margarida era muito respeitosa. Quando ela chegava à nossa casa, se dirigia à porta dos fundos e mandava perguntar à minha avó e minha mãe se lhe davam licença para entrar. Se não havia visita, concediam. Ela entrava e começava falar. Creio que contava alguma desventura, alguma maldade que contra ela haviam feito; mas ela declamava, discursava. Eu percebia que, ao cabo de algum tempo, estava todo mundo informado do que ela queria. E eu — por causa de mamãe, que não tomaria a bem se quisesse pôr fora a Margarida — ficava quieto. E ela continuava falando, interrompendo a conversa que antes de sua chegada estávamos tendo sobre algum assunto que podia interessar.

Após certo tempo a Margarida dizia: “Porque entonces me voy”, e chegava perto da porta; às vezes até atravessava a porta, e depois voltava, recomeçando tudo de novo.

Mamãe ouvia com paciência e eu percebia que não havia campo nem para insinuar que seria bom que a Margarida fosse embora. Ela ficava o tempo que queria e depois saía.

A ex-escrava Honorata conversando com Dona Gabriela sobre os antigos tempos

Havia também duas ex-escravas. Uma delas tinha sido escrava da família de um médico, muito amigo de meus avós e minha mãe, o qual possuía uma fazenda. Devido a essa íntima relação de amizade, ela ia muitas vezes conversar com os criados de casa. Depois se habituou a subir ao andar superior para dizer bom dia a Dona Gabriela e Dona Lucilia, e contava muitas coisas.

Ela era uma negra vinda da África. Não sei se seu cabelo não crescia ou se ela mandava cortar à la homem, mas era uma carapinha com a altura de um centímetro. Bem velha, seu cabelo era todo branco.

Vestia-se com uma espécie de poncho, um cobertor muito ensebado, marrom, horrendo. Não me lembro bem, mas parece-me que esse cobertor era vestido através de uma abertura para passar primeiro a cabeça, como poncho gaúcho. Usava umas saias indefinidas, com as cores de todos os usos. Suas orelhas eram um pouco de abano. Quase não tinha sobrancelhas, mas via-se bem o arco por onde as sobrancelhas deveriam correr. E sua cara era de drama…

Ela entrava dizendo:

— Bom dia, Dona Gabriela! Bom dia, Dona Lucilia!

— Bom dia, Honorata, como vai você?

O “bom dia” mais amável era de mamãe.

G. Kralj
Convento da Luz no século XIX.

Duas ou três vezes, numa hora em que mamãe estava fora da sala, vi minha avó sentada numa cadeira, que está hoje no meu escritório; junto dela a Honorata que, por licença de minha avó, estava sentada numa cadeira. Ambas contando coisas dos antigos tempos, as quais minha avó presenciara, mas não comunicava muito para o outros; eu não sabia bem de que assuntos tratavam, mas faziam parte daquele mundo no qual tinham vivido.

A criada Silvéria e o susto que teve Dr. Plinio

Havia outra — creio ter sido também escrava — que foi criada de minha mãe quando possuía casa própria, e meu avô não havia morrido3. Essa empregada, que morava em sua casa, habituou-se a ir sempre à residência de minha mãe e causou-me um dos sustos mais extraordinários da minha vida.

Eu confundia o nome dessa criada com a outra. Certo dia disseram-me: “Morreu fulana.” Para um menino que vai se formando, os horizontes da vida são outros. E nisso eu prestava um centésimo de atenção.

Numa manhã — minha família estava em Santos —, eu estava sozinho tomando café na sala de jantar da casa. E, remexendo o café com leite na xícara, ouço uma tosse característica, e a criada, colocando a cabeça na porta entreaberta, diz:

— Bom dia, seu Plinio, como vai passando?

Pensei: “Mas uma morta!!! Como vou sair dessa? A primeira coisa é não mudar de conduta, para não espantar a mulher. Se respondo, começa uma conversa, ela chega mais perto…” Não respondi e continuei a mexer o café; houve então um clic na memória: “Ah! Não é essa!” Então eu disse: “Bom dia, Silvéria! Como vai você?” Ufa!

Toda essa gente chegava a nossa casa e, na copa, comiam, bebiam, conversavam; depois desciam até o quintal e lá se sentavam. Quando precisavam, pediam o que necessitavam e Dona Lucilia sempre arranjava um meio de atendê-las. Pediam, por exemplo, uma apresentação para a Santa Casa, a fim de internar um filho doente; era uma verdadeira clientela mantida desinteressadamente, por bondade.

Na Igreja da Luz, encontro com duas filhas de Margarida

Tive uma recordação muito viva disso, há poucos dias, na Igreja da Luz, onde fui rezar. Vi duas senhoras um tanto mais moças do que eu: eram filhas da Margarida, mas não as havia reconhecido. Elas foram esperar-me na porta da igreja e me disseram:

— Bom dia, Dr. Plinio! O senhor não está se lembrando de nós? Somos filhas da Margarida.

Dei-lhes a mão, perguntando:

— Como vão vocês? Estão bem?

Elas, muito modestas, direitas, acrescentaram:

— Queríamos dizer para o senhor que nós admiramos muito todas as obras do senhor. Pela revista que assinamos, acompanhamos toda a vida do senhor e rezamos muito pelo senhor.

Perguntei:

— Como vai a Margarida?

— Ah! Margarida morreu…

Fiquei surpreso de ter encontrado no fundo de minha mente essas recordações, que exprimem todo um mundo de antigamente, incalculavelmente diferente do de hoje. Aquelas pessoas não tinham reivindicações, nem inveja, nem ódio.

(Extraído de conferência de 30/6/1981)

1) Situada na Alameda Barão de Limeira, bairro dos Campos Elíseos, em São Paulo.

2) Cfr. Dr. Plinio nº 32, p. 27.

3) Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, avô de Dr. Plinio, faleceu em 1909. Depois do falecimento de seu pai, Dona Lucilia com sua família passou a habitar no Palacete Ribeiro dos Santos, residência de sua mãe.