Vista da cidade de Assis, cujas tradições evocam uma época áurea da Cristandade, quando a ordem temporal procurava cumprir seus deveres para com a  Igreja e a salvação das almas

Segundo o Papa João Paulo II, é vocação própria dos fiéis leigos “procurar o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus” (Novo Millennio Ineunte, 46). Na série de artigos que hoje concluímos, reproduzindo um trabalho inédito escrito em 1960 por Dr. Plinio, ele mostra o papel auxiliar em relação à Igreja, mas indispensável, da sociedade temporal cristã na preparação do homem para a visão beatífica.

Vejamos, em suas mútuas relações, os aspectos espirituais e materiais da vida temporal. De que maneira se relacionam entre si as atividades atinentes à formação da civilização, da cultura, do estilo, do ambiente, com as demais atividades cuja contextura forma a vida quotidiana dos homens e das sociedades?

Na decoração de um ambiente familiar transparece, em geral, a harmonia entre os aspectos práticos e o “estilo” peculiar das almas que, com naturalidade e despreocupação, o constituíram

Indispensável harmonia entre a vida mental e a material

Consideremos o assunto na esfera limitada de uma família. Por mais ambiente que ela tenha, por mais que sua vida social-espiritual seja intensa, seria um erro imaginar que cada uma de suas atividades é dirigida pela preocupação inteiramente consciente, intencional, de formar um estado de espírito, e de o definir. Ela age em geral com a mesma naturalidade e a despreocupação com a qual o corpo respira ou o sangue circula nas veias. Ao adquirir um móvel, fazer uma cortina ou escolher um quadro, as preocupações conscientes de ordem absolutamente prática, de caráter inteiramente circunstancial, podem até ter um papel preponderante. Não obstante, as forças mais profundas da alma cooperarão também, e deixarão sua marca no ato, sem que muitas vezes a própria pessoa que adquire o móvel, que escolhe a cortina ou o quadro o perceba. São afinidades naturais, vigorosas, mas tão discretas — entre os vários bens adquiridos pelas sucessivas gerações de uma família, e que coexistem numa mesma casa —, que por vezes só as pessoas estranhas ao lar são capazes de notar as características da atmosfera doméstica.

É o que explica a formação dos estilos. Nenhum deles resulta de um planejamento de gabinete, mas é obra de uma sociedade inteira. Os artistas não são propriamente os criadores do estilo em uso em uma sociedade, mas seus intérpretes, seus propulsores na linha em que se vai desenvolvendo a mentalidade social.

É o que explica também que, nos estilos verdadeiramente produzidos por uma sociedade, o prático e o belo, os elementos de utilidade física e as características de expressão mental se fundam tão harmoniosamente.

O serviço prestado à alma vale mais do que o prestado ao corpo; por isso, em certo sentido, é mais importante a função educativa de um móvel ou de um edifício público, do que os seus aspectos práticos

(Acima, o Paço Municipal de Viena; ao lado, artesão florentino)

A vida propriamente mental se entrelaça tão intimamente, se embebe tão profundamente, se entranha tão indissociavelmente na vida material, como a alma no corpo. E é nesta interpenetração que está a garantia da sanidade e da autenticidade de uma e de outra.

Superioridade dos benefícios espirituais

Entre o prático e o belo, qual é o mais importante na vida temporal? Levantar esta questão, quando uma família adquire um guarda-roupa, por exemplo, equivaleria a perguntar se o mais importante é que ele sirva para guardar roupa, ou para que, por seu aspecto, acentue o poder de expressão do ambiente material do lar. Ou se, em um país, ao se edificar um Palácio da Justiça, o que mais importa é sua utilidade prática para o funcionamento dos órgãos da judicatura, ou a majestade e gravidade que deve penetrar o ambiente judiciário, exprimindo a natureza mais íntima da função de julgar.

Quando um objeto, por sua natureza, deve ter dois atributos essenciais, se um desses lhe falta, ele não tem valor algum. Em vez de escolher entre o guarda-roupa materialmente útil e o “espiritualmente” útil; em vez de escolher entre o Palácio só materialmente adequado, e o Palácio só “espiritualmente” adequado, seria o caso de começar por rejeitar um e outro.

O homem tem o direito e o dever de ser suficientemente exigente para não se contentar com um objeto que preste maus serviços à sua alma ou ao seu corpo.

Acima, mulheres bretãs com seus trajes característicos; ao lado, praça de Graz, na Áustria — culturas, instituições, costumes e estilos próprios, um conjunto de valores que é superior ao progresso técnico

Não queremos, porém, fugir à questão que há pouco havíamos formulado. O fim imediato, próprio, natural de um guarda-roupa não consiste em ser como que uma condensação de doutrina ou de mentalidade. Neste sentido, mais lhe importa guardar convenientemente roupa. Mas como o serviço prestado à alma vale mais do que o que se presta ao corpo, em certo sentido é mais importante a função educativa de um mobiliário do que seu aspecto prático.

O mesmo se deve dizer da sociedade temporal, considerada como um todo. Sua situação não pode ser tida por normal, senão quando fornece condições de existência e de progresso satisfatórios tanto para a alma quanto para o corpo. A recíproca influência entre as duas esferas levará mesmo os progressos obtidos em cada uma a repercutir favoravelmente no dinamismo próprio à outra. Qualitativamente, entretanto, é bem verdade que os benefícios do espírito importam mais que os da matéria. E por isso, em que pese a certa mentalidade moderna, importa mais a um país ter uma cultura própria, um estilo próprio, costumes, instituições, leis, em consonância com o ambiente nacional, do que uma perfeita canalização de águas e esgotos, por exemplo. A Atenas do tempo de Péricles brilhará para sempre no firmamento da história. A Atenas de hoje, incomparavelmente superior à outra em comodidade material, que lembrança deixará de si no futuro?

Posição ministerial do que é temporal em relação ao eterno

Trata-se agora de definir as relações entre as funções da sociedade temporal, que acabamos de descrever, e a Religião.

A Igreja ensina que a vida terrena deve ser comparada a um noviciado. O noviço deve adquirir os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para a vida religiosa. O homem deve adquirir, na vida terrena, os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para o Céu. Por virtude se entende o hábito de operar segundo a reta razão. O que supõe um conhecimento dos ditames desta última. As operações a que se referem esses ditames não são apenas as exteriores, mas as interiores. Qualquer ato meramente interior do homem, desde que tenha o consentimento da vontade, é suscetível de ser virtuoso ou não, conforme esteja em acordo ou desacordo com a reta razão. A sociedade temporal-espiritual é dotada de uma ação poderosa sobre o homem para o levar a pôr atos interiores ou exteriores conformes à razão. Ela pode, pois, ser meio útil para salvar ou para perder.

As mais altas manifestações da vida temporal se inserem, por sua própria natureza, no âmago do problema da salvação, e não podem ficar de nenhum modo alheias. Não é só pelo concurso das leis com que favorece a Igreja verdadeira e reprime o erro, que a sociedade temporal pode servir à salvação. É pelas mil atividades espirituais que constituem o que ela tem de melhor, isto é, o fato de ser uma sociedade de almas, sem o que nem sequer ela seria sociedade¹.

Dá-se, pois, com a sociedade temporal — mutatis mutandis — o mesmo que com a família, sociedade também ela natural, temporal, mas destinada pelo que ela tem de mais visceral a atividades que coincidem com as da Igreja.

Dada esta interpenetração profunda de campos, desejada pela Providência, seria absurdo supor que Deus não quisesse uma cooperação entre a sociedade temporal e a Igreja. Igualmente seria absurdo entender que nessa cooperação entre duas sociedades intrinsecamente desiguais, aquilo que é temporal, natural, perecível, não estivesse em posição ministerial em relação ao espiritual, sobrenatural, eterno; o fim próximo em relação ao fim último.

Há nestas considerações base suficiente para se ir mais longe, sustentando-se que a sociedade temporal, máxime enquanto sociedade de almas, não alcança a sua perfeição senão mediante o magistério e a graça de que a Igreja é depositária. Mas isto nos levaria longe do nosso tema.

Assim como a família, a sociedade temporal tem uma função de apostolado a exercer na sua própria esfera, sob a inspiração e a orientação do magistério da Igreja

(Vista de Zurique, Suíça)

Santidade e sacralidade da ordem temporal

A sociedade temporal tem, pois, tanto quanto a família, embora a seu modo próprio, uma função de apostolado a exercer na própria esfera temporal, sob a inspiração e a orientação do magistério da Igreja.

Qual a importância real de sua contribuição na obra da salvação? Trata-se, é claro, de uma contribuição de caráter meramente natural, pois só a Igreja é uma sociedade sobrenatural. Isto posto, pode-se entretanto sustentar que tal importância é imensa. A Providência quis que o ambiente de uma família, de uma sociedade cultural, profissional, recreativa ou qualquer outra, ou de uma cidade, de uma província, de um país, exercesse sobre o homem uma influência natural profunda, da qual, é certo, ele pode libertar-se com o auxílio da graça, caso tal influência seja má, mas que, em todo caso, atua em seu íntimo poderosamente. A prova disso está na evidência dos fatos. Onde as leis, as instituições, os costumes, a cultura, o estilo, a civilização constituem um ambiente profundamente católico, a ação específica da Hierarquia eclesiástica logra habitualmente grandes frutos, e a ação dos Sacramentos, da pregação, a irradiação da santidade dos Ministros de Deus move as multidões. Onde, pelo contrário, tudo se lhe opõe, as dificuldades para a ação da Hierarquia se tornam imensas. São vencíveis, é certo, pois para Deus nada é impossível. Mas atuam em si mesmas de modo desfavorável.

É o que explica que países inteiros tenham caído repentinamente na heresia, como a Inglaterra, ou as nações escandinavas: todo o ambiente tinha uma nota apenas aparente de catolicidade. O que era verdadeiramente dominante era a indiferença, a tibieza.

Em sentido contrário, poder-se-ia argumentar com a expansão da Igreja sob as perseguições e seu afrouxamento depois de Constantino. O argumento é intrinsecamente tão fraco que faz sorrir. Quem pode admitir que a Esposa Mística de Cristo só seja fecunda quando tratada a chibatadas? Que seus verdadeiros benfeitores sejam os Neros e os Dioclecianos, e seus verdadeiros perseguidores um São Luís de França, um São Fernando de Castela ou um Santo Henrique da Alemanha?

A sociedade temporal, querida por Deus, ordenada para Ele, realizando em si mesma uma obra que é de santificação, é uma sociedade santa, que tem uma função sagrada. Sociedade inteiramente natural como a família, mas como ela trabalhada a fundo pela vida sobrenatural que borbulha em seus membros. Sociedade santa e sagrada como o é a família cristã, à qual convém tão bem a designação de santa, que até seu vínculo constitutivo é um Sacramento instituído pelo próprio Jesus Cristo.

Santo Império, Santa Rússia, Santa França eram antigamente designações correntes e perfeitamente legítimas. E ninguém estranhava que o óleo sagrado servisse como um sacramental para ungir os reis, que sua investidura no poder temporal supremo se desse durante a Missa, numa função essencialmente religiosa, com a participação do clero; que a Cruz de Cristo brilhasse no alto do símbolo do poder temporal, que era a coroa; ou que o título mais honroso do detentor supremo do poder temporal fosse um título religioso: Sacra Majestas, Rex Apostolicus, Rex Christianissimus, Rex Catholicus, Rex Fidelissimus, Defensor Fidei. Que os duques da Lorena — que se presumiam reis de Jerusalém — cingissem uma coroa cujo diadema era feito de espinhos, ou que o Rei da Lombardia tivesse em sua Coroa de Ferro um cravo da Paixão de Cristo. Todos esses fatos atestavam a sacralidade da sociedade temporal e, portanto, do poder temporal, embora este fosse distinto da Hierarquia eclesiástica.

Chegamos assim à noção da sociedade temporal ministra da Igreja, que abre amplas perspectivas para a noção da sociedade temporal sacral.

Parece-nos que, se todos os que se interessam pelo problema das relações entre a sociedade temporal e a Igreja tivessem bem claro no espírito que a palavra “temporal” inclui, a título capital, imensos valores espirituais, e quais sejam eles, mais fácil lhes seria compreender a “ministerialidade” do temporal.

1 São Tomás, De Regimine Principum, ensina que a sociedade humana só é realmente sociedade porque constituída de homens, isto é, de seres dotados de alma. Um formigueiro ou uma colméia não são sociedades.