A Sainte Chapelle  (Santa Capela), mandada cons­truir pelo rei São Luís de França, é um desses tesouros da arte católica, inspirado por uma Fé tão rica e tão florescente, que sempre encontramos algo de novo a se dizer e se comentar a respeito dela.

Por exemplo, acerca de seus magníficos vitrais.

Quando os conheci, tive a impressão de estar ouvindo um fabuloso coro cantando, no qual cada vitral era uma voz, e que entoava uma melodia entendida de maneira peculiar por mim, assim como era compreendido de modo di­verso pelas diferentes almas que o “escutavam”. E como é o próprio da interlocução, deram-me oportunidade de dis­cernir, no meu interior, mil virtualidades, anseios, sedes que eu tinha e que só percebi no momento de “beber a água”, ou seja, “ao ouvir” aquele cântico feérico dos vitrais da Sainte Chapelle . Supérfluo dizer que me encantaram ao ponto do indizível. A partir desse momento, ao pé da letra, vários espaços de minha alma começaram a viver.

Que lembranças guardo do que eles me diziam com suas “vozes” que não emitiam sons, mas fabulosos coloridos?

Eu não imaginava que daquelas cores — digamos, de um azul, de um vermelho, de um verde, etc. — fosse possível obter tantos matizes, finos, suaves, fazendo aparecer o que essas cores têm de mais delicado, sem se transforma­rem em cor-de-rosa, azul claro ou verde-água triviais que por aí existem.

Por outro lado, desmentiam para mim uma idéia primiti­va, segundo a qual essas cores muito delicadas só eram ob­teníveis com matérias-primas raras e com elas apenas se podiam pintar superfícies pequenas, deteriorando-se logo. E que, portanto, havia um irremediável divórcio entre a gran­deza e aquela forma de delicadeza matizada que estava lá.

Ora, diante de mim reluziam vitrais enormes, apresentando matizes de extrema suavidade, sem serem homogêneos, com uma agradável variedade de tons dentro de cada painel. E então este instantâneo da delicadeza fixada, tornada grandeza, e o débil que se apresenta rei, deu-me a im­pressão de uma vitória da alma justa, de uma vitória de tu­do quanto é frágil, reto, inocente, sobre o que é ruim, uma impressão de fato extraordinária, que produziu no meu espírito um “tressaillement” de contentamento.

Agora, num misto de análise artística e psicológica, no­tei também que esses matizes que assim se ostentavam não ven­ciam com a arrogância de um boxeur que derruba o adver sário, põe o pé em cima dele e depois acena para a platéia. Nada disso. Essa delicadeza de matizes vencia com uma es­pécie de dignidade, com folga tal que ela não sentia sequer a necessidade de esmagar o adversário. Este não se encontrava estirado ao solo: estava eliminado do panorama. Assim, criava-se a idéia de um mundo onde, desde o co­me­ço, só ele, vitral, existira. Algo parecido com aquela Sabe­do­ria que, no princípio dos séculos, brincava com todas as coisas…

Percebi que na delicadeza de cores da­queles vitrais ha­via a candura e a como que inexperiência do virginal, aliada à estabilidade e à dig­nidade da experiência de uma matriarca no auge mais dourado de sua vida, na ple­na lucidez e no pleno conhecimen­to das reali­dades da nossa existência ter­rena.

Ainda nessa linha de impres­sões, ima­ginando que ca­da vitral era como que alguém que tivesse a alma construída da­quele jeito, ima­ginando que esses “alguéns” do mundo dos possíveis foram sonha­dos pela Idade Média e tiveram começos de realização em milhares de almas, então eu pensava em São Luís, nos artistas dele que edificaram essa maravilha da arte católica, na multidão de súditos que amavam seu monarca santo e admiravam nele as suas se­melhanças com o Rei dos Reis, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu pensava nisso e entendia ainda melhor o que foi a época áurea da Cristandade.

Essa é a análise dos matizes.

Agora, a impressão que tive do conjunto de todos os vi­trais foi a de uma harmonia constituindo uma espécie de figura não-expressa, ideal, de um vitral arquidelicado, de um vitral perfeito contendo em si todas as cores arqui-sua­ves na­que­le estado que acabei de descrever. Trazendo con­sigo a noção de que essa delicadeza assim apresentada — lon­ge de ser ini­miga dos tons mais for­tes, na linha dos estados de alma como na linha das cores e na dos sons — fa­zia pen­sar no desfile sem fim de to­dos os coloridos pos­sí­veis, mes­mo os mais an­ti­té­ti­cos, em to­dos os es­tados de espírito possí­veis, mesmo os mais di­ver­­sos, den­­tro daquela har­monia.

E dessas impressões se des­prende, afinal, uma idéia de perfei­ção enquan­to perfeição, de harmonia enquanto harmonia, de san­tidade enquanto san­tidade — portanto, de verdade enquanto verdade, e de be­leza enquanto beleza — reluzindo neste píncaro da montanha da delicadeza, a partir do qual se percebe toda a cor­dilheira dos sentimentos opostos e afins que constituem o espírito indizivelmente rico da Igreja Ca­tólica.

Matizes de extrema suavidade, com uma agradável variedade de tons; o débil que se apresenta rei, dando a impressão de uma vitória da alma justa, e de tudo quanto é frágil, reto e inocente sobre o que é ruim. Vitória com folga e dignidade, como se desde o começo só ele, vitral, existira. Algo parecido com a Sabedoria que, no princípio dos séculos, brincava com todas as coisas…