Desde menino, Dr. Plinio notou haver dois tipos de pessoas. Umas eram lógicas a ponto de parecer não ter sentimentos. Outras, levadas pelos sentimentos, pareciam não possuir lógica. Quando entrou no Movimento Católico, em 1928, ele estudou a Doutrina da Igreja e pôde comprovar a perfeita harmonia existente entre lógica e sentimento.

Lembro-me do que se passou em minha alma, quando eu estava entre os vinte e os trinta anos de idade. Dentro dos seus calendários internos, toda alma procura andar, mas tem etapas de reflexão, de detenção, para a conquista de verdades novas; depois a alma caminha mais depressa.

Duas asas simétricas, mas indicando direções opostas

Eu estava numa dessas fases, mais de detenção do que de reflexão, mas não se sabe bem quando a alma se detém de fato, ou se ela para apenas a fim de pegar aquilo que viu no caminho para examinar melhor e degustar.

Para uma alma, o que é deter-se? Já aí aparece um problema. Mas eu estava numa fase provavelmente assim, quando se colocou para mim, bem de frente, uma questão que, a partir de certa idade de minha infância, tinha começado a se pôr.

O problema se enunciava para mim da seguinte maneira:

De um lado existe a enorme gama daquilo que o homem sente, percebe e conhece. E de outro lado a gama das coisas a respeito das quais ele raciocina. Ambas são tão grandes que o homem procurando abarcá-las, ainda que tivesse asas de condor ou de águia, não conseguiria, pois elas vão além de qualquer horizonte.

E esses horizontes parecem, curiosamente, estranhos um ao outro.

De um lado, o mundo daquilo que a arte representa, por exemplo, a música, a qual procura exprimir a realidade da vida. Outra coisa é a razão que conceitua, define, estabelece, conclui, progride, avança. São, por assim dizer, e para voltar à metáfora de há pouco, duas asas que se desenvolvem simétricas, mas com as pontas indicando direções opostas do horizonte.

Como se coordenam essas duas coisas?

De um lado existe a enorme gama daquilo que o homem sente, percebe e conhece. E de outro lado a gama das coisas a respeito das quais ele raciocina. Ambas são tão grandes que o homem procurando abarcá-las, ainda que tivesse asas de condor ou de águia, não conseguiria, pois elas vão além de qualquer horizonte.

Dr. Plinio quando exercia seu mandato de deputado, no ano de 1932

Mentalidades truncadas

Essa coordenação é tão natural mais ou menos quanto a do olho esquerdo com o direito, ou, quando a pessoa caminha, a do braço esquerdo com a perna direita etc. O homem é feito de simetrias tais que, segundo me disseram, cortando ao meio uma fotografia de seu rosto e repetindo o mesmo lado da face, por exemplo, o lado direito, não se tem a fisionomia exata da pessoa. O rosto dá a impressão de ter sido planejado com o intuito de simetria, mas de fato um lado nunca é inteiramente simétrico ao outro. E se o fosse fracassava, porque daria uma face esquisitíssima. Então, a perfeição do rosto está nessa tentativa de conseguir a simetria; e algo de delicado, de subtil, se esgueira em uma coisa e outra e estabelece uma assimetria, concorrendo para dar à face algo de indispensável para sua expressão. Se não fosse essa diferença entre as duas partes do rosto teríamos, portanto, algo desfigurado. Fomos feitos assim.

Se alguém se puser a pensar como vai fazer para mover o maxilar a fim de falar, acaba gaguejando. Há coisas que estão na primeira natureza do homem, as quais, estudadas, tomam certo falseamento. O próprio estudar tem de ser feito com muito cuidado porque do contrário falseia, e o homem que começou se pondo o problema de como deve acionar os olhos, acaba vesgo. É melhor não pensar e olhar.

Isto nunca me teria ocorrido se não fosse o fato de eu perceber, entre os mais velhos — num artigo de jornal, num livreco qualquer ou coisas semelhantes — que o problema existia. E depois notar, sobretudo nas pessoas com quem eu tratava, que havia uma bipartição. Umas eram lógicas a ponto de parecer não ter sentimentos. Outras, levadas pelos sentimentos, na significação ampla do termo — não é, portanto, apenas o sentimento afeto, mas é o sentir através dos cinco sentidos — pareciam não ter lógica. E quando eu falava com uns, tinha que parar uma parte de meu ser e fazer funcionar a outra. Depois, quando conversava com outros, precisava fazer o contrário.

E o resultado é que, de muitos deles, eu ficava com a impressão de que eram fotografias tiradas pelo revés; por causa desse unilateralismo, me parecia terem uma mentalidade truncada, que não abrangia a realidade inteira na sua harmonia. A realidade era mais do que aquela meia cara que eu via de um lado, ou aquela meia cara que eu via de outro lado. Havia uma fisionomia total da realidade, feita dessa harmonia que eu sentia existir em mim, e também existia neles, mas tinham sido mal ensinados e se defendiam mal contra o mau ensino que haviam recebido, donde, então, serem tortos. Às vezes era por culpa própria, e eu notava que eles não apanhavam os matizes, debaixo de certo ponto de vista, supremos da realidade onde essas duas vertentes perceptíveis para o homem se encostam.

Equilíbrio entre razão e sentimento

A todo momento — é um psy momento — essa harmonia da razão e do sentimento vai se construindo, ao longo do pensar e do sentir. Tudo se encaixa, e nem percebemos o que estamos fazendo.

Como, por exemplo, enquanto conversamos, pela graça de Deus, pelos rogos de Maria, não deixamos uma só vez de pulsar os corações, respirar os pulmões e movimentar as pálpebras. Estamos fazendo isso a todo momento, mas nem percebemos. Pelo jogo da natureza reta, isso vai se fazendo e seria um pesadelo pensar: chegou a hora de respirar, de abrir a pálpebra… Assim não se vive.

A todo momento essa harmonia da razão e do sentimento vai se construindo, ao longo do pensar e do sentir. Tudo se encaixa, e nem percebemos o que estamos fazendo.

Victor Domingues
Castelo de Almourol (Portugal)

Então, à medida que ia me dando conta, confusamente, do problema, eu me sentia agredido, arranhado por ele, e tendia a defender-me. Isso quando eu era menino e, até começarem as reflexões nessa idade, tinha reações mais ou menos lógicas e mais ou menos instintivas: Virá um dia em que sentirei maturidade para tratar dessa questão. Mas como ela me devora, não vou tratá-la antes de chegar o momento. Deixo de lado com essas impressões e com essas reflexões que comecei a fazer. Guardo na memória e, quando houver o momento, tomo esse conjunto de coisas e analiso. Virá sua hora; agora, não!

Empurrar o problema, mas sem jogá-lo fora. Para cada nova faceta que ele apresentava, eu dava um olhar e o colocava de lado, mas o olhar ficava guardado. Um grande número de aspectos, impressões, ideias ia se acumulando para quando chegasse a hora.

O palácio e a floresta

Em determinado momento, pela ajuda de Nossa Senhora, chegou. Foi quando entrei para o Movimento Católico, as Congregações Marianas, e comecei a estudar mais intensamente a Doutrina Católica. Eu tinha até então estudado muito História, a qual apresenta muitas ocasiões em que esse problema se põe. Houve um tempo, por exemplo, em que estudei com muito empenho a História da Rússia e a queda do czarismo; tinha paixão por esses temas. Antes disso havia estudado a Revolução Francesa.

Nessas ocasiões se apresentavam ao meu espírito impressões e raciocínios. E quando comecei a estudar a Doutrina Católica, queria pôr em ordem uma porção de impressões retas, vindas do bafejo materno e principalmente da graça da Santa Igreja Católica.

Ele raciocina para todos os tempos e lugares. A Suma Teológica, naquela placidez, é uma corrida carolíngia atrás de todos os erros que tinha propósito pôr em elenco, feita de maneira a atingir, no cerne, todos os que errassem.

Sérgio Hollmann
São Tomás de Aquino – Catedral de Notre Dame, Paris (França)

No momento de ordenar essas impressões, cheguei à seguinte conclusão: Há algo aqui de puramente doutrinário, que é semelhante a um palácio cuja porta eu agora encontro, mas dentro do qual deverei entrar mais tarde. Também existe alguma coisa de meramente cultural, não doutrinário, que é não como um palácio com as salas e os móveis em ordem, tudo bem pensado, mas uma floresta magnífica, a floresta das impressões, dos sentimentos, sempre no significado amplo da palavra sentir. Nesta orla estou entrando e percebo que, sem me dar conta, já andei muito por esta floresta adentro e conheço muitas coisas dela.

Basta eu tomar as fotografias que bati dessa floresta, e tenho uma coleção colossal para examinar, além do que for vendo. Mas o demônio está sentado sobre os confins entre a floresta e o palácio, e ele procura baralhar as coisas. Assim, muita coisa que parece apenas impressão, bem estudada e analisada, se transpõe para a pura doutrina. E muita coisa, que é doutrina, encontra sua transposição inteiramente adequada para o terreno dos exemplos.

Há a falta de algo chamado explicitação.

Existem muitas coisas que se observam e sobre as quais não se raciocina; aquela observação seria dizível numa palavra, mas as pessoas, por preguiça, por não terem o vocabulário adequado etc., não sabem dizer aquilo que seria dizível e a respeito do qual depois poderiam raciocinar. Porque todo o dizível é matéria-prima para o raciocínio. E, portanto, explicitar é uma joia que abre os tesouros da floresta a fim de oferecer ouro, pedrarias, madeiras odoríferas para o palácio.

Não se pode permitir que o palácio não seja adornado pelo parquet feito das madeiras magníficas, pelo ouro e as pedrarias tirados da floresta. Esta é a explicitação, ou seja, sentir uma determinada coisa e encontrar os termos necessários para formar frases e, a partir dessas frases, elaborar raciocínios. É a extração dos tesouros da floresta para ornar o palácio.

São Tomás: um Carlos Magno do pensamento

De outro lado, há uma outra tarefa que é o raciocínio; ele mesmo pode ser contemplado pelo sentimento humano, de tal maneira que se pareça com realidades sensíveis, e é preciso saber sentir o raciocínio. Sem isto não se adquire amor ao raciocinar.

O raciocínio pode, por exemplo, ser comparado a um jogo de esgrima. Assim como todos aqueles passos de esgrima são altamente lógicos e práticos, mas têm um dinamismo próprio a cada passo e um pulchrum próprio a cada lance, e assim como o voo de um pássaro possui uma beleza que é própria a cada espécie, assim também toda forma de raciocínio que se empregue tem uma pulcritude própria. E o nosso sentimento tem que ser sensível, precisa perceber isto.

Não sei se estou me exprimindo com clareza, mas pode-se acompanhar um raciocínio como coisa viva e, por detrás do raciocínio, observar a alma na sua realidade espiritual, inacessível aos nossos sentidos, agindo. Entretanto, olhando a pessoa vê-se a alma e, vendo a alma, vê-se algo de entendido, que não é o raciocínio puro.

Uma coisa é a tese que estou sustentando e à qual vou chegar daqui a pouco; outra coisa é minha alma, enquanto desdobrando esses raciocínios, agindo sobre meu corpo, não só para falar, gesticular, mas à medida que ela faz esforços para chegar ao termo final, vai comunicando graus de vitalidade diferentes ao meu corpo e fazendo aparecer formas de estilo de vitalidade peculiares ao tema e peculiares a mim.

Quem lê, por exemplo, São Tomás, custa a perceber, ou não percebe, toda a movimentação da vitalidade desse santo, naquela impassibilidade celeste, angélica, virginal dele. “Se tal coisa é assim etc.”; todos nós conhecemos o ritmo de São Tomás.

O efeito grandioso não pode resultar da apatia, da moleza. Os moles de alma não fazem nada!

Ricardo Liberato
As Pirâmides de Gizé (Egito)

Dir-se-ia, numa primeira impressão, que o homem não está ali presente, mas só o raciocínio puro; e que, para fazer filosofia, é preciso fazer raciocínio puro. Eu digo: há algo de verdade nisso, porque o trabalho do raciocínio em si é tomar o problema e estudá-lo. Mas isto faz, por assim dizer, uma parte do homem, quando considera uma parte da realidade. A pessoa não deve sair daí com a ilusão de que operou, ela inteira, e que conheceu a realidade inteira.

Eu considero São Tomás como um Carlos Magno do pensamento. Ele foi carolingiamente pensador!

A secura dos argumentos do Doutor Angélico vinha do desejo de ser breve e de tirar o pretexto para que não lessem. Toda a intenção dele é de deixar o erro liquidado, e quem errou sem pretexto lógico ou psicológico nenhum para ter errado. Mais ainda: ele parece ter tido uma noção sacral e virginalmente despretensiosa de sua própria grandeza, compreendendo que era um sol posto para até o fim do mundo.

Ele raciocina para todos os tempos e lugares. A Suma Teológica, naquela placidez, é uma corrida carolíngia atrás de todos os erros que tinha propósito pôr em elenco, feita de maneira a atingir, no cerne, todos os que ­errassem, a amparar na verdade, no fundo da alma, todos os que acertassem, a converter todos os que quisessem se converter, a preservar todos os que desejassem salvar-se pelos séculos afora, de maneira que, pensava ele, muito depois de seu cadáver estar desfeito em pó, e também de o nome dele já não ter lugar na memória dos homens, a Suma Teológica estivesse presente na História.

Esse é São Tomás!

Critério de observação empregado por Dr. Plinio

O efeito grandioso não pode resultar da apatia, da moleza. Não se pode imaginar que um homem levantasse um obelisco sem fazer força, nem que uma alma tenha concebido a ideia de construir uma pirâmide, sem que fizesse uma força interior. Os moles de alma não fazem nada!

E para um indivíduo, quando ele não é mole de alma, o sentimento tem que ser possante.

A partir do momento em que me dei conta dessa reversibilidade entre o sentimento e a razão, o problema se destilou para o meu espírito. E passei anos e anos voltando à questão, perfurando mais algo do problema. Para encontrar essa reversibilidade entre o sentimento e a razão, era indispensável ter um critério de observação especial, porque era uma observação feita em mim.

Dom Duarte Leopoldo e Silva

Eu raciocinava sobre uma coisa e depois analisava a impressão que a mesma me tinha causado. Ou o contrário, recebia uma impressão e raciocinava sobre ela. Mas procurava, num cone de mim mesmo, o ponto de encontro das duas coisas.

Encontrando, percebendo a semelhança, eu procurava, então, as palavras que serviriam para uma e para outra coisa, para a razão e para a impressão. E assim explicitava a impressão.

Dom Duarte Leopoldo e Silva

Um personagem de que já falei largamente em nossas exposições foi o velho Dom Duarte Leopoldo e Silva, que era Arcebispo de São Paulo. Entrei para o Movimento Católico em 1928, e ele morreu, se minha memória não me trai, lá por 19381.

Eu ainda era menino e ele já era Arcebispo de São Paulo, e eu tinha ideia de como era sua fisionomia, suas atitudes etc. Dom Duarte tinha muito o que os franceses chamam, numa linguagem aliás ultraintelectiva e cheia de significados, le physique du rôle, físico do papel. Quer dizer, ele representava muito bem o papel do verdadeiro Arcebispo.

Percebia-se que ele, no fundo, era muito vibrátil, mas tinha aprendido a se dominar completamente. E, dominando-se, dominava os outros por força do princípio que ele representava, do carisma que possuía como Arcebispo; mas dominava também — não constitui uma coisa diversa disso — porque complementarmente era dotado do poder de sanções. E Dom Duarte facilmente sabia castigar e colocar mal à vontade quem se erguesse contra ele.

Como duelar com um Arcebispo é uma coisa quase impossível, não temos dificuldade em compreender que ele levava de roldão a situação. E as invectivas dele mais ameaçadoras, mais nobres eram feitas quando sua voz dava para o fino.

Este homem os meus sentidos viram. Agora a doutrina: Ele morreu na ancianidade, e a doutrina ensina, não preciso desenvolver a tese, que a ancianidade é intrinsecamente respeitável. Ele conduzia consigo a venerabilidade da ancianidade. Muito mais do que isso, era um homem de personalidade. E, mérito maior, não era uma personalidade toda ela nativa, mas uma personalidade semiconquistada. E eu só acredito nessa! Depois do pecado original, não houve personalidade nativa. Ele, portanto, era semirrecomposto por vários aspectos. E isso o tornava mais venerável.

Por cima disso há a condição de sacerdote de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas em sua plenitude. Ou seja, não só com a missão e os poderes do sacerdote que consagra e renova o Sacrifício da Cruz na Missa, mas, como ele era sacerdote na plenitude, tinha o poder de ordenar presbíteros e de sagrar bispos. E incumbido, como príncipe espiritual, da direção de uma parte do povo de Deus e, por isso, usando o cajado de pastor para mandar naquilo que os homens têm de mais nobre, e ao mesmo tempo mais difícil de governar: as almas. Lá estava ele de pé, com o physique du rôle, correspondendo ao que a doutrina ensinava a respeito de qual deve ser o rôle. Tudo quanto se lê em Teologia sobre um Bispo, não lucra em ver um homem assim?

Mas, se se tratasse de conhecer só o homem, sem saber o que é um Bispo, um índio saindo da taba e vendo Dom Duarte poderia até se impressionar com a sua figura, mas o que ele poderá concluir se não conhece a doutrina a respeito do que é esse homem? Compreendemos, então, ser necessário conhecer a doutrina e a realidade que se ilustram reciprocamente.

Esse trabalho não chegou a exprimir-se, ou exprimiu-se de um modo talvez insuficiente nas colunas do “Legionário”. Quando “Catolicismo” se fundou2, seu primeiro número teve a gota inicial dessa resina que foi “Ambientes, Costumes e Civilizações”, a qual nada mais é que uma tentativa de dar doutrina e impressão juntas.

(Extraído de conferência de 28/3/1981)

1) Dom Duarte Leopoldo e Silva (Taubaté, 4 de abril de 1867 – São Paulo, 13 de novembro de 1938).

2) Em janeiro de 1951.