Dona Lucilia em Paris, por ocasião de sua viagem em 1912.

Em relação a todo mundo Dona Lucilia era afável, mas para aqueles que se encontravam num estado de debilidade ela manifestava um grau de afabilidade estudado, não no sentido acadêmico, mas calculado pelo afeto. Tal era sua bondade que ela possuía certa predileção pelas pessoas portadoras de alguma deficiência.

Dona Lucilia, em vida, foi a pessoa em cuja conduta o inesperado não era habitual. Quer dizer, todo o seu comportamento era lógico, dentro de uma certa linha coerente, e nunca fazendo algo que não se pudesse prever.

Predileção pelos fracos e pequenos

Se algum inesperado ocorria, rumava no sentido do que se poderia presumir de uma longa trajetória anterior: um requinte de afeto e de delicadeza inimaginável, e inventado por ela no momento.

Eu não diria o mesmo de sua conduta depois de morta. Toda a ação que se pode atribuir a ela, atendendo aos pedidos feitos, e tudo quanto tem sido realizado a propósito dela era-me inesperado. Um inesperado dulcíssimo, mas era inesperado.

Mas há dentro disso uma nota especial, que passarei a expor.

Parece-me que aquilo que, reta e ordenadamente, as pessoas possam desejar dela, plausivelmente ela concederá, ainda quando as almas um pouco “enjolráticas”1 dos que estão neste auditório queiram coisas inesperadas; nisso existe, por certo, um requinte de delicadeza. De tal maneira que já me tem acontecido de tomar como provável algumas coisas que desejam, e dar certo.

Isso se prende ao seguinte: durante sua vida, ela manifestou sempre uma predileção muito especial por aqueles que eram fracos, pequenos, e uma solicitude em atendê-los.

Mesmo em relação ao “filhão”2 que ela teve, Dona Lucilia procurava ver no que esse “filhão” estava precisando de algo, querendo alguma coisa, e se dedicava a encontrar, atender, favorecer, enfim a fazer o que ela pudesse em todas as idades dele. Todos entendem bem como isso está na linha do que ela faz com os presentes nesta reunião.

É compreensível, portanto, que ela tenha para uma geração tão posterior à minha uma solicitude especial; algo como eu a vi ter com a neta e depois com o bisneto dela.

”A afabilidade não é apressada e a pressa não é afável”

O assunto que me pediram tratar se contém, assim, um tanto sinteticamente nesta exposição. Ao contrário de Dona Lucilia, eu sou esquemático quando falo, embora não seja conciso no que escrevo, no sentido de que julgo necessário escrever coisas longas por causa da confusão que há nos espíritos. Mas sou conciso no seguinte: para dizer aquilo que afirmo, outros usariam muito mais papel do que utilizo. E ela não era concisa, falava longamente, com circunstâncias, com uma afabilidade sem pressa. Aliás, a afabilidade não é apressada e a pressa não é afável.

Ela não era concisa, falava longamente, com circunstâncias, com uma afabilidade sem pressa. Aliás, a afabilidade não é apressada e a pressa não é afável.

Mamãe contava, entrava em pormenores, passeava com o interlocutor pelos assuntos de que ela tratava, e nesse ponto as circunstâncias — não meu temperamento nativo — me obrigaram a ser diferente dela. E hoje em dia, quando exponho alguma coisa em qualquer ambiente, por mais filial e amigo que seja esse ambiente, já falo me defendendo contra as más interpretações. E também, por causa disso, procurando dar uma concisão didática ao que estou dizendo, para me defender de uma eventual acusação de ser muito prolixo.

Esse desejo de ajudar e esse modo de ser dela eu notei muito no seguinte: em relação a todo mundo Dona Lucilia era afável, mas quanto às pessoas que ela percebia estarem num estado de debilidade, qualquer que fosse esse estado, mamãe tinha um grau de afabilidade estudado, não no sentido acadêmico, científico, mas calculado pelo afeto. No que consistia isso?

Ela via uma pessoa com alguma lacuna, algum defeito, e analisava de que natureza era o efeito que isso podia produzir na pessoa. Na pessoa em tese e depois in concreto naquela pessoa.

Bondade proporcionada, adequada, estudada, adaptada para cada pessoa

Então, no modo de tratar, ela animava a pessoa e dava a entender que, por afeto, por bondade, ela se punha inteiramente naquela plana e tinha até certa predileção por aquela pessoa por causa daquela debilidade. De maneira que a pessoa ficava muito à vontade, como não costuma ficar um inferior em relação a outro que é superior. Com ela era o contrário. E, de outro lado, ela fazia isso, nem um pouco com ar de quem insinua estar fazendo uma esmola ou uma bondade, mas como quem está atendendo a um apelo de sua própria sensibilidade.

Por exemplo, tratar com crianças, com idosos e sofredores na vida. Há velhos que se tornam mais ou menos como certos serviços de mesa; às vezes se quebram tantas peças ao longo dos anos numa casa, que resta um prato ou dois. Alguns anciãos ficam assim na vida: o último prato de um serviço de mesa que já quebrou. O que fazer daquele prato? É um problema. E também pessoas com deficiência física; havia um primo cego e Dona Lucilia tinha um sobrinho surdo.

Por bondade, Dona Lucília demonstrava predileção pela pessoa mais débil. Não fazia isso com ar de quem insinua estar dando uma esmola, mas como quem atende a um apelo de sua própria sensibilidade.

Nesta página e na seguinte, fotos de Dona Lucilia com seu bisneto.

Mamãe nasceu em Pirassununga, e a família dela morou muito tempo nessa cidade. E deixou parentes, conhecidos etc., mas gente que inserida no ambiente de uma cidade do interior, como se apresentava naquela época, naturalmente acaipirou-se. E, às vezes, um ou outro desses aparecia em nossa residência, em São Paulo, para fazer uma visita; entrava na casa e percebia que todo o ar era diferente.

Como ela os tratava? Era sempre com uma bondade proporcionada, adequada, estudada, adaptada, que se tornava uma respiração, um oásis, um alívio para essas pessoas.

O primo cego, que possuía um grande apetite

Por exemplo, esse cego ao qual me referi era parente dela em grau relativamente longínquo. Acho que hoje em dia já não se considera primo. Era primo de terceiro ou quarto grau. E ela teria toda facilidade de se desfazer dele. Bastava num dia recebê-lo um pouco menos amavelmente que ela o empurraria de lado, e ele não teria coragem de voltar.

Ela recebia o cego com muita alegria. Porque o receio dele era ser recebido assim: “Ih! Aqui está ele de novo!” Então ela fazia o contrário do que o homem podia temer.

— Oh! Fulano, como vai você?

Na saída:

— Olha, apareça sempre, dá tanto gosto!

Esse cego era até bem inteligente, educado e muito discreto. Mas para ele era mais agradável ser recebido assim do que com a porta semicerrada. Qualquer um compreende isso.

Mamãe conversava com esse homem longamente. E como ele tinha grande apetite, na hora da refeição Dona Lucilia tomava o prato dele, escolhia os melhores pedaços de carne, cortava e, dizendo-lhe o que havia como acompanhamento, perguntava-lhe qual eram os alimentos de sua preferência. Tendo ele escolhido, ela punha no prato, depois picava.

Às vezes ela percebia que ele havia gostado muito mais de uma coisa do que de outra. Então mamãe chamava a empregada e lhe fazia um sinal… Esta ia, pé ante pé, e punha no prato do homem aquilo que já estava acabando.

Conforme fosse a distribuição dos lugares na mesa, se o cego estava sentado perto de mamãe, ela chamava a empregada e ela mesma completava o prato dele sem fazer nenhum barulho, de maneira a dar-lhe a impressão de que o alimento predileto ainda não havia terminado. E o prato do cego não esvaziava nunca!

Ele não perguntava nada. Não sei se desconfiava, mas o fato é que ele comia valentemente e com apetite. E daí resultava toda uma atmosfera que dilatava o coração do pobre cego, deixava-o à vontade e contente.

Na extrema velhice, brincando com o bisneto

Eu a vi na extrema velhice tratando com o bisneto dela. E me perguntei a mim mesmo: “Como é que mamãe vai arranjar um jeito de ter um terreno comum — ela bisavó — com esse menininho nascido na ponta da descendência e já portador de outros impulsos, de um meio muito diferente do nosso?”

Ele entrava no salão ou no quarto onde Dona Lucilia estivesse, e ela abria os braços para ele, que ia correndo e encostava a cabeça no peito dela. Ela o agradava: “Filhinho”. Eu via que ele ficava todo refrigerado.

Mamãe o deixava estar um instantinho ali e dizia para ele qualquer coisa do gênero seguinte: “Vamos brincar nós dois lá fora?”, para sair do ambiente dos mais velhos, onde havia uma conversa que o bisneto não entendia; e iam os dois fazer uma conversinha à altura dele.

Dirigiam-se para um quarto onde já havia uns brinquedinhos para ele. E esse entretenimento, em geral, ia até a hora em que a mãe ou a avó o levava embora. E notava-se que o menino saía porque não tinha remédio; ele queria ficar lá brincando.

Ele tinha uma pronúncia ligeiramente estrangeira, diferente da portuguesa. Não a chamava de bisavó — aliás, no Brasil nenhum bisneto diz bisavó, e sim “vovó” —, mas pronunciava carregado e dizia “pizavó”. Ela achava graça, mas nem dizia nada.

Ao entrar no local onde Dona Lucilia estava, ele falava: “Pizavó! pizavó! pizavó!”, e começava a conversar com ela.

Através desses fatinhos pode-se ver como era a conduta dela.

(Extraído de conferência de 15/4/1982)

1) Cf. “Dr. Plinio” n. 94, p. 23, nota 1.

2) Modo afetuoso com que Dona Lucilia tratava Dr. Plinio.