Pode-se falar em temperamento ideal, modelo para o homem contemporâneo? Partindo da descrição do ambiente de um castelo medieval, Dr. Plinio responde a esta pergunta ao expor o temperamento que caracterizava o homem e a sociedade durante a Idade Média, mostrando o que nele há de perene e válido para os povos de todos os tempos.
Em primeiro lugar, devemos procurar definir o que entendemos por temperamento nesta exposição.
Os diversos tipos de temperamento
Sabemos que as espécies animais têm um temperamento coletivo, ou seja, próprio a toda a espécie.
Chamamos de temperamento a uma certa nota fundamental que comanda e marca todas as manifestações de vida do animal. Assim nós podemos dizer que a águia tem um temperamento que não é o da pomba. O leão tem um temperamento que não é o do cordeiro. São entes irracionais nos quais o comportamento não decorre de nenhum modo de um pensamento, de uma reflexão, de uma doutrina, mas de algo que existe espontaneamente dentro deles.
E toda espécie — os leões, por exemplo — tem um temperamento.
Podemos dizer que o leão é feroz, majestoso e seguro. Não podemos afirmar, no mesmo sentido da palavra, que um gato é feroz, mas sim que ele tem sua ferocidade, suas seguranças, suas distinções; mas o gato é variável e tem um temperamento diferente do temperamento do leão.
Podemos dizer que dentro de uma mesma espécie os indivíduos têm temperamentos diferentes. Assim, de águia para águia, de cordeiro para cordeiro, de pombo para pombo, de leão para leão, de gato para gato há diferenças temperamentais também.
Transpondo isso para a escala humana, veremos que no homem o temperamento é algo ligado à biologia, ao corpo, à vida animal do ser humano, e que influencia, impregna, marca tudo aquilo que o homem faz. De maneira que todos os primeiros movimentos, as primeiras ações, as primeiras reações, os primeiros impulsos e, às vezes, muito mais do que os primeiros, são influenciados pelo que esse temperamento tem ou por aquilo que lhe falta, isto é, pelas carências desse temperamento também.
Nesse sentido, podemos afirmar existir também temperamentos de países. Há países com temperamentos diferentes uns dos outros.
Por exemplo, um prussiano e um italiano têm um temperamento marcadamente diverso. Muito menos diversos — porque na América do Sul as diferenças são menores —, mas também muito característicos, são os temperamentos do brasileiro, do argentino e do chileno.
Se quiséssemos aprofundar, poderíamos dizer que há diversidade temperamental de região a região, de cidade a cidade, e de indivíduo a indivíduo.
Tudo isso é conhecido, mas estou apenas lembrando para facilitar o desenvolvimento do que passarei a expor.
Assim como as nações, também as épocas históricas têm o que se poderia chamar “temperamento coletivo”.
Quando vemos, por exemplo, fotografias de pessoas da Belle Époque1, isto é, dos anos que se estendem mais ou menos das últimas décadas do século XIX até o começo da Primeira Guerra Mundial, notamos todos os homens com o peito erguido e posto para a frente, colarinhos e gravatas grandes, bigodões e umas fisionomias imponentes.
Aquilo não é mera representação, mas entra muito do estilo de vitalidade que o ocidental tinha naquele tempo, e que é uma vitalidade um pouco à Kaiser.
Se consultarmos um livro de gravuras do século XVIII, anterior à Revolução Francesa, compararmos com o período da Revolução Francesa, e depois com os anos de 1850, portanto, bem antes da Belle Époque, notaremos uma diversidade enorme de temperamento, que corresponde até a uma diferença de estrutura física.
Essas notas temperamentais, no homem, não ficam reduzidas puramente ao animal. Os reflexos da alma são condicionados pelo corpo, mas a ação dos princípios, das condições, dos hábitos modela, por sua vez, o físico. Há, portanto, o que se chama uma interação, uma ação recíproca alma-corpo, corpo-alma, que faz com que as coisas se componham e o temperamento de uma determinada época seja a resultante de determinadas condições biológicas e fisiológicas, mas também de um certo estilo de vida e de pensamento, de um certo gênero de atividades que as circunstâncias da época impõem. Assim, são muitos os elementos que modelam o temperamento da época.
Se explicitarmos estas ideias, chegaremos à conclusão de que há um temperamento pró-revolucionário e outro contrarrevolucionário.
O temperamento contrarrevolucionário é o do homem medieval, quando a Idade Média chegou à sua plena expressão.
O temperamento que é pró-revolucionário ou, se preferirem, o temperamento revolucionário é o que foi entrando no modo de ser do homem a partir do momento em que a Revolução começou.
Quando vemos gravuras, iluminuras, vitrais, castelos, tapeçarias, armas da Idade Média, somos introduzidos pelo espírito para um ambiente que forma um temperamento muito diferente do que se constituiu nas épocas posteriores da Renascença, do protestantismo, do Ancien Régime2 ou de nossos dias.
Haveria, para o homem contemporâneo, um modelo de temperamento segundo o qual ele se deve adequar?
O temperamento medieval
A meu ver, esse modelo se encontra — não ponto por ponto, para ser copiado exatamente, mas ao menos nas suas linhas gerais — na Idade Média.
Vou tentar descrever o temperamento medieval para depois mostrar que consonância isso tem com a Doutrina Católica. Por esta forma compreenderemos o que há de perene nisso, válido para todos os povos de todos os tempos.
Creio que poderíamos ter um pouco a ideia disso fazendo o seguinte trabalho interior, de ordem psicológica.
Tomemos qualquer castelo medieval e imaginemos que devêssemos viver, não trancados nele, mas envoltos em sua atmosfera a vida inteira.
Torres altas, portas com ponte levadiça suspensa, fosso do lado de fora. Quando entramos no castelo, aparece um guarda no alto da torre, olha e, conforme for, baixa a ponte. Atravessamos uma espécie de corredor entre duas portas, formado por duas torres enormes, sombrias. Olhamos para cima e vemos buracos feitos para descerem barras de ferro em caso de batalhas, e impedir o inimigo de entrar.
Transpondo esse longo corredor, temos a sensação de estar calcando aos pés a base do castelo, na qual nós sabemos que há armazéns, depósitos e também prisões sombrias onde se encontram homens acorrentados, às vezes acorrentados junto à parede, e que recebem a luz do dia por uma réstia de sol vinda através de uma seteira.
No pátio do castelo tem um poço, e a presença do poço nos sugere uma profundidade enorme da qual a água é tirada. Em alguns desses poços joga-se uma pedrinha, e até a pedrinha bater na água e fazer barulho, pode-se acompanhar no relógio, tal é o percurso que a pedra tem a fazer.
Não há água encanada nos quartos nem todas as comodidades daí decorrentes.
Olhamos para cima, muralhas altas. De repente detemos a atenção sobre a estrutura de ferro que encima o poço, com a roldana e o balde, e é uma peça graciosíssima, um ferro delicado terminando em cima por uma flor de lis sobre a qual está um passarinho se sacudindo, todo alegre.
Um pouco mais à frente está uma capela. Do lado de fora do pórtico, uma Madona risonha com o Menino Jesus no colo. Entramos na capela, é uma joia: vitrais, santos austeros no alto dos altares, candelabros grossos com velas grossas, bancos de carvalho, o assento do senhor feudal colocado junto a um trono; tudo leva a uma espécie de recolhimento, de sacralidade.
Fazemos uma oração diante do Santíssimo Sacramento presente na capela, saímos e olhamos para a casa do senhor feudal.
Na pracinha pública interna do castelo ouvem-se vários ruídos: é o ferreiro trabalhando, outro que trabalha em couro, o carpinteiro que, cantando, está fazendo um móvel. Sente-se um cheiro de comida que sai da cozinha da habitação do senhor feudal.
Do lado de fora do terraço de sua residência, o senhor feudal sentado num trono de pedra e, a seus pés, pessoas discutindo. Ele está julgando causas, por vezes triviais, de súditos em litígio: é a propriedade de um boi, quando não de um porco… E a coisa é discutida, às vezes, calorosamente, de camponês a camponês.
O senhor feudal, que é um guerreiro, mas também um camponesão, ordena: “Cale a boca!” E, dirigindo-se ao outro súdito, diz: “Agora é você quem fala.” Se o sujeito não obedece, ele chama um alabardeiro. Este vem portando na cabeça um capacete de ferro, revestido de uma cota de malhas, cingindo uma espada e, com uma alabarda, ameaça o rebelde que, por fim, fica quieto.
Se entrarmos na casa do senhor feudal, encontraremos um ambiente bonito, tapeçarias vindas do Oriente, novamente vitrais majestosos, lindos móveis de carvalho, ouve-se uma voz melodiosa, e é a castelã que canta acompanhada de um alaúde, e a castelã tem cabelos louros e que estão trançados com pérolas ou com pedras vindas de não sei onde, seda vinda de não sei onde, e os filhos do senhor feudal estão num outro quarto aprendendo a ler e a escrever. É a vida cotidiana do castelo.
Imaginemo-nos chamados a viver um ano nesse ambiente pomposo, enorme, forte, onde os aspectos mais graciosos, mais mimosos contrastam com os aspectos mais guerreiros e sombrios.
Quem de nós garante que, ao cabo de um ano, não estaria com saudades da respectiva capital onde mora? E de onde vem a incerteza de que conseguiríamos viver no castelo?
Estou certo de que, ao transpormos os umbrais do castelo, ficaríamos encantados. Não se trata, portanto, de uma objeção doutrinária, mas de uma falta de integridade na adesão temperamental.
Nisso vemos bem um choque entre o temperamento medieval e o nosso. E enquanto não conhecermos a razão desse choque e não tratarmos de tender para esse temperamento, não estaremos modelando nosso temperamento segundo a sã doutrina, e haverá um conflito entre nossos princípios, que são conformes àquilo, e nosso temperamento, contrário àquilo. Isso provoca uma ruptura interna.
O que parece contrariar o homem contemporâneo
Caberia aqui descrever quais são os traços do temperamento medieval, e no que esses traços me parecem contrariar o homem contemporâneo, dando-lhe uma sensação de claustrofobia. Esses traços são próprios a qualquer civilização cristã, pois defluem da Doutrina Católica.
O fundo do temperamento medieval é uma certa estabilidade, por onde o medieval é animado pela noção de que tudo aquilo quanto ele faz é destinado a uma longa duração, porque o normal é que todas as coisas durem muito, e até indefinidamente. E que as coisas novas não sejam o contrário, mas sejam um desdobramento harmônico das antigas.
Tomemos uma catedral medieval como Notre-Dame, por exemplo. Quem a construiu teve a intenção de edificar uma igreja que devia durar até o fim do mundo. Assim, o intuito de quem fez aqueles castelos, muralhas, mosteiros, etc., era o de realizar obras perenes.
Em cada século medieval há uma modificação na arte, mas sempre seguindo uma certa continuidade, por onde a enorme estabilidade não prejudica a mobilidade, porque esta se faz na linha do que já foi feito. É uma linha reta, coerente com o passado, e que se desenvolve indefinidamente.
Isso tem uma repercussão no modo de ser das pessoas. Como o medieval é no que ele constrói, assim também é ele na direção de sua própria vida. Em geral um casal que se constitui na Idade Média, se muda de casa uma vez na vida é muito. Ele é mais pobre no começo da vida, a certa altura está mais rico e faz uma casa nova. Nesta casa ele fica até o fim de seus dias. Se a casa é grande, os filhos vão viver nela, e uma família inteira vai passar séculos naquela residência, considerando a hipótese de uma mudança como a coisa mais absurda.
Se possui uma propriedade rural, a família se fixa ali. Eventualmente, pode até adquirir outra, mas não deixa aquela, e sempre haverá membros daquela família morando naquela propriedade rural, séculos e séculos. Naquele campo plantarão árvores que deverão tomar seu tamanho normal dali a cem anos, para os descendentes se beneficiarem, porque estão certos de que a família nunca sairá de lá. Tudo o que se faz é estável, sólido, durável.
Também os hábitos familiares tendem a ser estáveis. As gerações de sucedem e vão se fixando no modo de ser da família que tende a ficar definitivo. É uma prodigiosa tendência ao estável, porém não ao imóvel.
Notamos essa tendência nos gestos do homem medieval representados nas iluminuras. Se não está combatendo — única cena em que o homem da Idade Média avança com velocidade —, o medieval nunca aparece correndo. Ao vermos aquelas iluminuras, não temos a sensação da pressa.
O fundo do temperamento medieval é uma certa estabilidade, por onde o medieval é animado pela noção de que tudo aquilo quanto ele faz é destinado a uma longa duração, porque o normal é que todas as coisas durem muito, e até indefinidamente.
As pessoas pintadas num vitral, se estão em pé, dir-se-ia que criaram raízes no chão. Quando sentadas, tem-se a impressão de fazerem um só todo com a cadeira. As pessoas que estão trabalhando executam seu trabalho sem pressa e sem relaxamento, com normalidade e continuidade. E se estão se divertindo, são representadas com um aspecto mais leve e gracioso do que o da vida de todos os dias, e com uma nota de parêntesis de diversão em meio ao trabalho e à luta, convictas de estarem fazendo algo que é bom, na medida em que não seja feito sempre.
Estabilidade, sabedoria, lógica e sublimidade
A razão profunda dessa estabilidade é a virtude da sabedoria.
Como a natureza humana é uma só, enquanto um todo, mas dotada de peculiaridades, conforme os povos, é razoável que as nações sejam organizadas de um determinado modo, as casas dispostas de um determinado jeito, a arte realizada de uma determinada forma e o progresso siga uma determinada linha. A razão iluminada pela Fé encontrou a fórmula. Trata-se de seguir nessa fórmula até o fim. Isto é um dos traços do espírito medieval.
Esse traço tem o seguinte corolário.
O homem medieval é amigo de levar todas as coisas sem afobação, sem ímpetos temperamentais, sem explosões. A explosão, o ímpeto, é um vício. Ele é legítimo na guerra, e explicável na diversão; fora disso, é considerado uma desordem.
Por isso, na mentalidade, no espírito do medievo não há lugar para a contradição. Tudo se faz segundo imensas concatenações de raciocínios, imensos desdobramentos de ideias, fazendo com que no seu procedimento tudo seja uníssono e seu temperamento seja apetente de coerência, de harmonia, de uniformidade, de lógica.
Essa apetência da lógica é um dos traços mais marcantes do temperamento medieval. Mais uma vez, a virtude da sabedoria, mas no que ela tem de mais alto.
Pelo fato de ser lógico assim, o medieval tem uma alma profundamente feita para ser modelada pela Igreja, fonte da verdade e de toda a lógica. E por ser modelado pela Igreja, ele é movido por uma certa noção de que a linha-mestra do pensamento humano, o fim da contemplação e da apetência humana é o maravilhoso, o sublime, o elevado.
Em qualquer coisa que o medieval faça, por pequena que seja, pode-se notar a presença de algo de sublime. O vulgar, se existe, é contrariamente ao espírito medieval. É como o crime ou a sujeira numa cidade: não estão de acordo com as regras da cidade; antes, são o contrário do que ela deve ser.
Encontramos, então, mesmo no ambiente da vida medieval mais miúda, uma nota de seriedade, uma apetência de sublimidade que ladeia e coroa essa coerência, e faz com que tudo na Idade Média tenha um aspecto cerimonioso, protocolar, religioso, sacral, do qual o mundo de hoje está completamente despido.
A vida familiar de um trabalhador manual
Para exemplificar, não falarei das cortes dos reis, mas sim da vida e da família de um trabalhador manual.
Na vida familiar de um trabalhador manual, o pai é um rei. Ele é tratado pela esposa com veneração, e pelos filhos com arquiveneração. A sua palavra faz lei e o ambiente que o cerca é de verdadeiro respeito religioso. Este respeito se estende aos filhos maiores de idade, aos filhos casados, aos netos e aos netos casados, e ninguém ousaria tomar profissão, casar-se ou mudar de vida sem ouvir o parecer do patriarca e, em geral, sem pedir seu consentimento, pois sua vontade é absolutamente lei.
Vemos, então, a vida medieval organizada em torno de homens respeitáveis, sólidos, sérios, que encontram uma espécie de glória em atingir a idade madura e até a sabedoria da velhice; que não têm, como o homem moderno, a preocupação de estar continuamente bancando o mais moço; nimbados pela experiência da vida, pelos grandes sacrifícios feitos, pelas lutas, pelas incertezas que tiveram ao longo da vida, e cujas palavras são recebidas como oráculo que afina sempre com a Doutrina Católica, suprema lei do pensamento e suma regra do procedimento humano.
A chave de cúpula do temperamento medieval
Naturalmente, subindo de classe social iremos encontrando isso mais requintado. Compreendemos, então, que tudo na Idade Média visava o sublime, o maravilhoso, visava o celeste, o angélico.
A meu ver, esta é a verdadeira chave de cúpula do temperamento medieval. Esse horror ao vulgar, esse desejo do maravilhoso de maneira tal que na alma medieval há uma apetência de encontrar algo que nesta vida não se encontra. A arte medieval tende mais a pintar o Céu do que a Terra, colocando nossas almas diante de panoramas mais celestes do que terrestres.
Um vitral banhado de luz, por exemplo, é muito mais um pedaço do Céu do que uma representação terrena.
A atmosfera que banha os personagens de Fra Angelico é uma atmosfera celeste. A pompa de que se cerca um rei não é uma pompa grã-fina, não é uma exibição de dinheiro nem de força brutal. É a ostentação de uma finura sacral e de uma grandeza celeste. Quer dizer, o medieval está continuamente tendendo para o mais alto, para o mais sublime, para o celeste.
A pompa de que se cerca um rei não é uma pompa grã-fina, não é uma exibição de dinheiro nem de força brutal. É a ostentação de uma finura sacral e de uma grandeza celeste.
Havia um equilíbrio extraordinário dentro disso. Não se trata do pomposo meio engomado do século XIX, no qual se tinha a impressão de que aquelas pessoas, se sorrissem, desmanchar-se-iam inteiras.
O medieval não era assim. Ele compreendia e praticava o sorriso. Sorria com as coisas da natureza próprias a provocar o sorriso. Por exemplo, em catedrais medievais, em uma daquelas nobilíssimas colunas que se elevam até o começo de ogivas que vão até o teto, veem-se, de repente, um, dois, três esquilos de pedra “correndo” um atrás do outro. É uma brincadeira que o próprio escultor pôs naquela coluna tão séria. É um sorriso para esse lado risonho e aprazível da vida.
Ou então, em um vitral, a figura de um santo ou de um rei sentado no seu trono, e junto dele um cachorrinho. O que faz ali esse cachorrinho? É o sorriso do artista. Tornou-se célebre o fato de tal duque, que esteve nas Cruzadas e realizou tal feito heroico, ter tido um cachorrinho. Então, na hora de pintar um vitral representando o duque como benfeitor da igreja, ou como senhor feudal do lugar, põe-se o cachorrinho ao lado do duque. É uma forma de seriedade, porém não engomada, como a do século XIX. É uma seriedade angélica, que vê o gracioso, o pequeno e se encanta, numa ascensão contínua para o angélico.
Esse contínuo remeter para o celeste, para o religioso, repito, é a chave de cúpula da atmosfera da Idade Média; está presente em tudo e sem isso a Idade Média não se explicaria.
Essa coerência medieval é feita de exclusões, de rejeições e de certezas. Tanta força de fé, tanta estabilidade, tanta coerência, fá-la capaz de grandes movimentos de alma. Sai de dentro dessa grande estabilidade um grande “não” como um grande “sim”. Por isso, nessa época, a meditação da Via Sacra, por exemplo, tem por correlato o espírito guerreiro do medieval que vai para o combate libertar o Santo Sepulcro. Isso nasce da força do seu ato de Fé. Isso explica também como o medievo, tão estável, se deslocava, paradoxalmente, para imensas peregrinações a pé, de ponta a ponta da Europa.
Tudo o que vimos como característica da Idade Média, na Religião Católica, constitui um matiz. E, a meu ver, Nosso Senhor Jesus Cristo foi assim, como também os Apóstolos. Na Europa medieval isso refulgiu com uma intensidade particular, tomando tal plenitude, a partir de Cluny3, de maneira a conquistar o mundo inteiro.
(Extraído de conferência de 12/2/1971)
1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.
2) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
3) Abadia beneditina francesa que deu início a um importante movimento de reforma espiritual e cultural da Europa.