Altamente formativo para o homem contemporâneo é admirar o temperamento medieval descrito por Dr. Plinio neste número da revista1. Caracterizava-se ele pela estabilidade decorrente da noção da longa duração de tudo o que se faz. O medieval não tinha pressa, pois procurava em tudo a perfeição. Disso temos um belo exemplo no modo de ser sacral de Dona Lucilia, descrito pelo “Filhão” nestes termos pervadidos de gratidão:

O que caracterizava o espírito dela era uma retidão extraordinária, que consistia em ver sempre todas as coisas inteiramente de frente. Por mais dolorosas ou promissoras que fossem, ser inteiramente objetiva, vendo o sofrimento com toda a sequela de amarguras que ele pudesse trazer. Vendo também a alegria, sem exagerar as vantagens que trazia, e compreendendo bem como nesta terra tudo é aleatório e como, portanto, tudo de repente pode degringolar. De onde uma posição muito calma, muito estável em face da vida. Ela não tinha nem grandes torcidas, nem grandes ansiedades, nem grandes depressões, não sendo nem um pouco uma pessoa apática.

A minha mãe era o contrário do meu temperamento fleumático. Para usar uma expressão implicante de hoje, ela vivia profundamente todos os acontecimentos, mas com uma certa distância. Havia entra ela e os fatos uma camada que os ruídos destes não conseguiam transpor. E ela, para aquém dos fatos, conservava a calma, a distância psíquica, a estabilidade e a continuidade.

De maneira que ela era sacral, recolhida, tranquila, forte e meiga em todas as circunstâncias da vida. Por mais que estas mudassem, ela estava sempre na mesma posição.

Mas, por detrás desta atitude tão calma, havia um profundo senso do dever. Ela não entendia que a finalidade da vida fosse conquistar honras, prazeres, glórias, dinheiro para gozar o mais possível e depois morrer.

Para ela, a vida consistia num certo dever a cumprir e numa certa forma de alma a adquirir.

Ela considerava que a felicidade está em se ter uma alma elevada, piedosa e tranquila, e em gozar os prazeres simples, despretensiosos e normais da existência. A felicidade não está, portanto, nas grandes festas, nas grandes viagens e nas grandes fortunas, mas na boa ordenação da vida quotidiana, no bom aproveitamento dos lazeres comuns e em conferir um significado espiritual e moral ao gozo do que se tem. É uma felicidade, sobretudo, de alma, uma felicidade de situação temperante, tranquila, modesta, que se sente até no infortúnio, porque, desde que não tenhamos culpa pela derrocada, conserva-se o essencial: a consciência limpa diante de Deus e uma elevação de alma que torna a vida digna de ser vivida.

Ela possuía uma serenidade que a colocava acima de todas as vicissitudes e fazia dela uma pessoa constantemente igual a si mesma, mesmo quando os caminhos da vida se fechavam, às vezes de modo assustador.

E sempre com esta temperança, esta normalidade que era a perfeita proporção entre o acontecimento externo e a repercussão interna nela. De maneira que ela vibrava em face das coisas na proporção e na medida equilibrada, com uma ordem de valores em que o religioso estava acima de tudo. Abaixo do religioso vinha o metafísico, depois o moral, e em seguida os interesses contingentes da vida tratados com o devido cuidado.

Toda esta retidão ela possuía porque intuía que assim as coisas deveriam ser, e compreendia — com uma clareza cheia de verdades implícitas — estar conforme a Religião.

Quando eu tinha 10 ou 11 anos, notei o choque da Revolução e da Contra-Revolução, e percebi que toda a tradição que eu recebi dela entrava em luta com o mundo moderno. Em determinado momento, compreendi que a explicação verdadeira desta tradição era a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana. Deu-se, então, um flash no meu espírito e cheguei a unir todo o amor à Religião ao amor a esta tradição, cujo substractum religioso mamãe não via tão explicitamente.

É preciso ver em Dona Lucilia, sobretudo, aquela elevação de alma por onde, com toda temperança, desde pequenina, ela soube ir cada vez mais colocando a Religião acima de tudo, os valores espirituais acima dos materiais, e a vida terrena como uma coisa que deve ser vivida, sobretudo, para um dever, fruindo das pequenas vantagens da vida apenas o necessário para o cumprimento do dever.

É a impostação sacral da alma que a preparou para contemplar a Deus face a face. Creio que por aí podemos entendê-la bem e nos unir a ela.

(Extraído de conferência de 24/6/1973)

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