O verdadeiro católico deve ser uma pessoa de princípios, não só no campo religioso e moral, mas também no social e cultural. A partir do momento em que se olvidam os princípios, sua decadência está em marcha. Isso se aplica também à sociedade orgânica: quando seus integrantes se esquecem dos princípios que a constituem, surge a Revolução.
Retomando o tema tratado em conferências anteriores sobre as duas formas de vitalidade na sociedade orgânica1, nasce a seguinte questão: até que ponto se deve permitir e favorecer o desenvolvimento da vidinha e da “vidona”? Porque ambas, levadas ao seu último limite, destroem-se mutuamente.
Então, até onde é conveniente estimular cada uma das duas, e qual é o ponto de conciliação que as mantém no equilíbrio harmônico no qual a organização política do país deve firmar-se? E equilíbrio não só no tocante à organização política da nação, mas contrário à mania de centralizar na capital toda a vida cultural, social, enfim em todos os aspectos de um determinado gênero de atividades. A capital deve ser realmente a cabeça de todo país, em todos os sentidos, ou se poderia compreender várias capitais em função de diversos aspectos?
Dinastias centralizadoras e dinastia descentralizadora
A nação que mais conservou um equilíbrio nessa matéria — acabou perdendo, mas o manteve por mais tempo — foi a Alemanha.
Os Bourbons2, na Espanha, foram centralizadores de primeira força. Também os Hohenzollerns3, na Alemanha, eram centralizadores. Contudo, a Alemanha não conseguiu, senão muito tarde, o predomínio de uma dinastia sobre as outras, e esse predomínio foi o dos Habsburgs4, que eram muito descentralizadores por política, por índole e tudo mais, e não conduziram uma política de centralização, a não ser numa fraca medida. Então, na Alemanha isso ficou muito diverso.
No tempo de Guilherme II5, por exemplo, a capital política e militar da Alemanha era Berlim, mas a capital artística podia bem ser considerada Dresden, capital da Saxônia, ou em algum sentido Munique, capital da Baviera. Ambas, em todo caso, muito superiores a Berlim, debaixo desse ponto de vista artístico. Mas as capitais econômicas eram Colônia, na Renânia, e Hamburgo, na desembocadura do Reno. E daí por diante, encontramos o país servido por um sistema de comunicação esplêndido, centralista no fundo, mas que não conseguiu eliminar essas autonomias — porque são verdadeiras autonomias — que, por exemplo, na Espanha tenho a impressão de que os Bourbons acabaram suprimindo.
Questões relativas ao equilíbrio entre o regionalismo e a unidade nacional
Para termos esse equilíbrio bem mantido, devemos nos pôr nessa clareza dos princípios fundamentais sobre a vidinha regional e a “vidona” global.
A comparação que eu fiz com o organismo humano tem um interesse apenas ilustrativo. Não é porque o organismo humano seja assim que a sociedade humana deve ser da mesma maneira. Como o organismo humano é desse modo, e tem uma analogia com o organismo social, neste caso concreto ele seria o padrão mais natural a ser dado como elemento para explicar o organismo social; tendo, portanto, um valor didático para abrir hipóteses.
Para tratar da questão do ponto de equilíbrio, devemos, antes de tudo, nos desligar de falsas formulações, pois se as admitirmos, caímos num dédalo, num pântano. A questão não é somente se perguntar em tese, em qualquer nação do mundo, qual o equilíbrio que deve haver entre o regionalismo e a unidade nacional. Isso seria uma coisa mal apanhada. A questão é diferente. Dadas as condições concretas de um determinado país, se essas condições fossem inteiramente normais e as coisas próprias a essa nação se tivessem resolvido normalmente, no que consistiria o equilíbrio? Este seria um primeiro ponto.
Segundo: dado que o país não está em condições normais, enquanto essas não se verifiquem, qual é o equilíbrio, já não ideal, mas possível?
E um terceiro ponto: que política existe para chegar ao normal e conseguir, então, o equilíbrio ideal?
No Brasil há uma unidade indiscutida
Considerando sempre que esse equilíbrio ideal é diferente de país para país, vou dar um exemplo que é muito característico: uma comparação entre o Brasil e a Espanha.
O Brasil é um país com pequenas fricções entre um Estado e outro, questões limítrofes, um pouco de birra, implicância, mas de um modo geral muito unido. Apesar de existirem tantos fatores de desunião: extensão geográfica enorme, a possibilidade de a maior parte dos Estados existirem economicamente como nações independentes sem precisarem das outras, e uma série de outras coisas, o que faz a unidade do Brasil que, salvo circunstâncias artificiais, é uma unidade indiscutida?
Creio que se puser essa questão para qualquer brasileiro médio da rua, ele vai achar essa pergunta esquisita, porque essa união parece tão natural, que levantar um problema a esse respeito lhe pareceria singular. É um pouco como perguntar por que os dedos não se destacam da palma da mão. Quem perguntasse isso pareceria meio louco, por estar questionando o inquestionável.
Seria também como um casal bem constituído a cujos filhos se perguntasse por que os pais não se divorciam. Eles cairiam das nuvens! “Papai se divorciar de mamãe? Não é possível, não acontece! Sua indagação não me interessa, pois você pergunta o absurdo!”
Quando uma realidade como essa é admitida por todos, e ninguém levanta a pergunta sobre por que ela é aceita, debaixo de certo ponto de vista, ela conseguiu condições ótimas de existência.
Tendência para o centrípeto e para o centrífugo
É preciso, entretanto, conhecer esses princípios porque sempre que os princípios constitutivos de uma ordem são esquecidos, surge a Revolução.
Então, há uma aparente antinomia: as condições são ótimas quando o assunto nem é levantado, mas o tema não é levantado por causa de uma longa tradição da profissão dos mesmos princípios. Depois, a situação ficou tão sólida que até se esqueceram dos princípios; ela, ao mesmo tempo em que dava esse sintoma de solidez, abria as portas para o adversário porque, esquecidos os princípios, a Revolução entra.
Como se fixa o ponto de equilíbrio?
Por certas razões psicológicas, culturais, históricas e outras, em determinados países o princípio centrípeto adquire mais vigor do que o centrífugo, mas o adquire de um modo vivo, e não artificial. Não é uma constituição eleita por um contingente preestabelecido, que se reúne e executa uma palavra de ordem urdida por uns poucos e imposta aos demais, inclusive utilizando-se dos meios de comunicação em massa. Não é isso! A tendência para o centrípeto aumentou organicamente, e a tendência para o centrífugo teve que diminuir, como que automaticamente.
Às vezes dá-se o contrário. Quando é que existe a tendência para o centrífugo? Esta questão nos interessa mais do que a tendência para o centrípeto, pois nosso estudo visa a defesa do centrífugo quase anulado contra o centrípeto hipertrofiado. Portanto, interessa-nos mais conhecer o centrífugo e robustecê-lo para restabelecer o equilíbrio.
Papel da capital de um país
A condição de vitalidade de todo grupo humano consiste em que ele se reúna em torno de um grupo menor de pessoas, que sejam os modelos geralmente admitidos como tais pelos inferiores. A partir desse momento, tudo quanto os modelos fazem interessa ao pessoal menor, cujo centro e diversão passam a ser acompanhar, saber o que fazem, o que pensam, o que dizem aqueles que são admitidos como modelos.
Acontece que a eliminação das influências diretivas locais destrói a cidade ou a região, e elimina a vida, porque a vitalidade consiste em ter um elemento diretivo em torno do qual se constitua um relacionamento interessante. Esse elemento diretivo não deve ter os olhos fixos sobre a capital, mas frequentá-la apenas enquanto uma variedade que aumenta a vitalidade da capital, entretanto não para se revestir dos aspectos, hábitos e mentalidade dela.
Quer dizer, a capital deve ser um ponto de convergência, e não de liquidificação das diferenças. Concebida assim, a tendência centrípeta faz com que cada indivíduo vá para a capital com a preocupação de marcar e tornar presente a sua peculiaridade, e não de disfarçá-la, afundando-se na homogeneidade da capital.
Donde nós temos uma distinção entre dois centros: os que devoram as periferias, os quais são, por assim dizer, criminosos, praticam o “banditismo” da eliminação dos que a eles recorrem; e, pelo contrário, os centros que brilham com todo o fulgor das diferenças que neles se encontram, onde os mais altos personagens parecem dizer ao mundo: “Vejam que amplitude de diferenças temos a glória de abarcar!” E não o oposto: “Vejam que amplitude de homogeneidade nós dominamos!”
Império Austro-Húngaro
Por exemplo, em Viena, ainda nos últimos anos do Império Austro-Húngaro, em certas cerimônias não cosmopolitizadas — a coroação do Imperador como Rei da Hungria, da Boêmia, ou tomando posse da dignidade imperial — poder-se-ia compreender que afluíssem para lá magnatas húngaros com trajes típicos, elementos das várias ordens do país, inclusive alguns dignatários eclesiásticos com trajes de ritos orientais católicos, em vigor em certas partes do Império Austro-Húngaro, junto com clérigos com trajes de rito latino. Depois, elementos da nobreza, magnatas, altos aristocratas da Boêmia, chefes locais dos países da zona adriática do Império, tiroleses, etc., cada um com suas qualidades, seus atributos, comparecendo à cerimônia, e a glória do Império sendo a refulgência, a feeria dessas luzes diferentes. Isso eu acho uma coisa magnífica!
A estandardização é a morte, e começa por matar as influências locais.
Para ser possível essa variedade, seria preciso que cada elemento da sociedade desse o seu contributo, que consiste em evitar uma certa faceirice de querer ser admirado pelo mundo inteiro. É própria do regionalismo uma sadia indiferença em relação à apreciação do mundo sobre ele.
Suponhamos que à coroação do Imperador da Áustria como Rei da Hungria compareça um alto dignatário do poder judiciário, com traje que tenha reminiscência indumentária dos primeiros juízes do tempo de Santo Estêvão ou de Santo Américo, por exemplo. E que se encontre, na mesma arquibancada, com um magistrado austríaco vestido à maneira da indumentária judiciária que se espalhou em todo o Ocidente no século XIX: monótona, com ar de agente funerário. O magistrado vestido com traje típico não deve ter vergonha disso, mas sim uma noção viva de todas as possibilidades, de todo o valor, de todo o padrão humano que há na própria regionalidade.
Falo do magistrado, mas poderia dizer do professor universitário, dos chefes das pequenas tropas locais, e todo o pessoal a seu modo proeminente. Eles devem se aprofundar no espírito local, que possui matéria-prima para constituir um pequeno universo, e ter o espírito aberto para isso.
Profundezas do autêntico regionalismo
E aqui surge uma tese muito importante, difícil de provar, mas que é mais ou menos intuitiva: a ideia de que todo regionalismo autêntico tem profundezas quase inesgotáveis, e o progresso não se faz encontrando um ponto de estancamento, mas aprofundando; o que, sob certo ponto de vista, equivale a dizer acentuando.
Teríamos, então, um primeiro princípio, que já não é o da vidinha e da “vidona”, mas o da inesgotabilidade das peculiaridades locais; a esse princípio devem-se acrescentar dois outros.
Um deles é que tais aprofundamentos, ao contrário do que se diz, não preparam necessariamente a luta com outras regiões, mas sim um entendimento com elas, porque se a Doutrina Católica é bem conhecida, cada um ama o próximo com suas peculiaridades, singularidades, e, portanto, cada região cumpre o mandamento de amar a outra como a si mesma, prezando as peculiaridades da outra, de algum modo como ama as suas próprias peculiaridades, e procurando a harmonia.
Se a rivalidade destruiria o convívio dos indivíduos numa família, por que não há de extingui-lo nas regiões de um país? Analogamente destrói. Numa família com cinco filhos, em que cada um implica com as características pessoais do outro e quer ser superior ao outro, o pressuposto da vida familiar está extinto.
Então, as rivalidades regionais muito entretidas acabam sendo de uma nocividade profunda, e é preciso saber resolvê-las em profundidade. A inveja, a concorrência, o debique estúpido conduzem à dissolução. Nós não podemos conceber um regionalismo no qual esse espírito prepondere.
Terceiro princípio: bem estudadas as condições locais de qualquer região, deve-se dar o necessário para que essa região se desenvolva inteiramente de acordo com aquelas condições, atingindo uma estatura correspondente à estatura psicológica e mental de que aquele povo é capaz.
Contra-Revolução cultural
Dou um exemplo. Tanto quanto eu saiba, as Baleares6 constituíram outrora uma espécie de unidade na Espanha, unidade variada, com subunidades, mas não percebi, até hoje, sinal de guerra entre elas; cada uma delas tratando de tirar de seu próprio modo de ser e das condições de sua terra, os melhores pratos, os melhores modos de cantar, de passear, de se entreter, de construir, etc., que as circunstâncias locais, trabalhadas por aqueles espíritos, permitem. De maneira que se trata de civilizaçõezinhas locais.
Assim, o vinho, o queijo, o cancioneiro local, outras coisas muito adequadas, a variedade a que a isso se presta é enorme! Tudo isso constitui a condição para que o regionalismo exista.
Portanto, estudar o plano meramente político, dizendo: “Eu gostaria que a Espanha tivesse suas regiões; logo, vou fazer uma constituição que teoricamente dá tais autonomias e tais franquias de impostos a cada região, e com isso a Espanha está descentralizada…”, é de uma superficialidade de espírito lamentável!
A ação deve começar, pelo contrário, por uma espécie de Contra-Revolução cultural na qual se acentua, se procura valorizar e intensificar o que ainda exista ou existiu de próprio a cada região, de maneira que a psicologia dela comece de novo a borbulhar e a circular. Parece-me que seria uma coisa muito útil.
Então, o que faz a unidade da nação? É um denominador comum psicológico forjado pela História, no qual todas essas regiões tenham ideais comuns. É a presença de algumas disposições de espírito, tradições, vínculos de afeto em todas as peculiaridades locais, de maneira que as regiões se amem umas às outras.
Isso produz uma espécie de concentração de luzes com cores diferentes, incidindo sobre o mesmo ponto. Surge daí uma “cor misturada” que é a nação, à qual corresponde um governo central, uma capital e um direito de lançar impostos, taxas para sua finalidade comum, sempre que isso não prejudique o justo e explicável predomínio de uma região que naturalmente sobressaia, e que constitui a base sobre a qual esse fator nacional deita raiz para irradiar sobre todo o país.
Eis alguns princípios do verdadeiro regionalismo.
(Extraído de conferência de 16/8/1991)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 195, p.14-17.
2) Dinastia que passou a governar a Espanha com Filipe V, em 1700.
3) Casa Real europeia que, em 1871, unificou os Estados germânicos e passou a governar o Império Alemão.
4) Dinastia que imperou sobre o Sacro Império Romano-Germânico de 1273 a 1806, e sobre o Império Austro-Húngaro, de 1867 a 1918.
5) Governou o Império Alemão de 1888 a 1918.
6) Arquipélago localizado no Mar Mediterrâneo. Constitui uma comunidade autônoma na Espanha.