A Revolução, fundamentalmente materialista, propaga a ideia de que o importante é o lado prático das coisas, pois proporciona conforto para o corpo, enquanto que o belo nem deve ser considerado. Dr. Plinio desmonta esse sofisma.
Diante de tantas coisas bonitas dos tempos antigos que foram sendo destroçadas, e tantas coisas hediondas instauradas nos dias de hoje em nome do prático, põe-se a pergunta: o prático não é um precursor da feiura e o belo um inimigo do prático?
Rapidez e comodidade
Para analisar esta questão, consideremos alguns meios de transporte.
Toda coisa é perfeita na medida em que atinge o seu fim. Ora, o fim de uma carruagem, por exemplo, é transportar; e se ela transporta nas condições ideais, realizou a sua perfeição.
Quais são as condições ideais do meio de transporte? Ele deve ser, entre outras coisas, rápido e cômodo. Entretanto, o conceito de cômodo é muito amplo, porque uma é a comodidade que se pode querer ter em um automóvel que transpõe a distância de alguns quarteirões; outra é a comodidade exigida desse veículo fazendo uma longa viagem. São distâncias muito diferentes em que o corpo e o próprio espírito humano pedem graus e modos de conforto diferentes.
Há outras circunstâncias que condicionam a comodidade de um veículo, como, por exemplo: um molejo adequado para transitar em superfícies irregulares; arranque suave e silencioso do motor; estabilidade pela qual o passageiro sinta-se bem e seguro, mesmo em alta velocidade, etc.
Chegamos, assim, à conclusão de que o espírito prático deve ser adaptado a várias circunstâncias.
Beleza ou conforto?
A beleza interna de um veículo é uma condição de conforto? Evidentemente sim. Porque tudo que lisonjeia os sentidos, de algum modo, é condição de conforto. É muito confortável viajar em uma carruagem e ver o sol entrando pelos cristais das janelas e incidindo sobre sedas, damascos, veludos, “brincando” naqueles tecidos de luxo. Portanto, estaria de acordo com o espírito prático — que deve procurar o conforto de um veículo — tornar bonito o interior de uma carruagem.
Mas também deve estar de acordo com o espírito prático que um automóvel tenha um compartimento com um pequeno refrigerador contendo líquidos gelados para que, no auge do calor, sem ter de diminuir a velocidade do carro, o dono possa servir-se de um refresco.
Havendo tudo isso, pode-se dizer que o espírito prático obteve uma vitória. Mas torna-se impossível fabricar uma bela carruagem com essas comodidades. Onde colocar a geladeira e as supermolas compatíveis com a supervelocidade? Onde instalar um mecanismo por onde baste apertar um botão para as janelas subirem e baixarem fazendo um ruído prestigioso? Essas coisas cabem nos produtos modernos, não nos antigos. Então, o que escolher: a beleza da carruagem ou o conforto do automóvel?
Alma do homem e pulcritude
Até pouco tempo atrás, os homens não tinham perdido a noção do belo, mesmo passando da era da bela carruagem para a do automóvel. Tomemos, por exemplo, automóveis do tipo Mercedes. Eram bonitos veículos, com cores lindas, reluzentes. O homem tinha a impressão de entrar em uma pedra preciosa, de tal maneira aquela lataria toda era ornada. Dentro havia couros de primeira ordem, espaço amplo, enfim, todos os agrados dos transportes de luxo se encontravam reunidos ali.
Isso obedecia ao seguinte princípio: há uma razão para, tanto a carruagem quanto o automóvel, serem belos.
Todos os argumentos dados até agora a favor do espírito prático valem para o corpo. Mas o homem tem só corpo? Ele é principalmente corpo? O homem não é principalmente alma? E se a alma é o elemento principal do ser humano, do que vale o belo para a alma? Neste caso, ter beleza não seria o principal componente que um transporte deveria possuir?
Lindos cavalos, belas carruagens
Analisemos o papel do belo.
Primeiramente, a pessoa que está em uma carruagem ou qualquer outro meio de transporte, ainda que seja simplesmente um cavalo, apresenta-se aos olhos do público de modo a chamar a atenção. Porque um indivíduo que atravessa uma rua dentro de um veículo ou montado em um animal, atrai muito mais a atenção do que quem vai a pé, e forma um todo psicológico e artístico aos olhos dos transeuntes.
Ademais, o homem tem interesse em ser conhecido pelo que ele é, para que se lhe dê o valor ao qual tem direito. Se ele é um verdadeiro cavaleiro, descendente, por exemplo, dos cruzados, convém que monte um lindo cavalo de raça.
E montar, não é estar sobre o animal como estaria um saco de batatas. É preciso cavalgar com elegância, altaneria e dignidade. O cavaleiro deve dar a impressão de tal domínio sobre o cavalo, que o oriente simplesmente pelo movimento das pernas. As rédeas servem mais como um elemento ornamental.
Além disso, o animal precisa estar belamente ajaezado com uma bonita sela, belos arreios. Tudo isso forma a moldura com que o homem se apresenta em público.
É de acordo com a dignidade do homem que ele queira cavalgar esplendidamente um lindo cavalo. Isso não é vaidade, mas o reto exercício do instinto de sociabilidade, não com pretensão, mas com a naturalidade com que uma pessoa quer mostrar o rosto limpo para os outros.
Tratando-se de pessoas de uma condição inteiramente excepcional, como um rei e uma rainha, que ocupam no Estado e na sociedade o primeiro lugar, é natural que, por uma necessidade da alma, se façam ver e reverenciar pelo que eles são, utilizando uma carruagem à altura de seu cargo.
Para eles, mais importante do que a grande velocidade e todas as comodidades é ter um coche, no qual se apresentem como dentro de uma linda moldura.
Por isso as altas situações são tratadas pelos artistas — no caso concreto, pelos fabricantes de coches — de maneira a serem realçadas. A arte se empenha em apresentar o rei, a rainha, os príncipes da casa real, os nobres, os titulares de altas dignidades da Igreja, do Poder Judiciário, das Forças Armadas, etc. de modo a serem naturalmente respeitados, proporcionando-lhes outra modalidade de conforto: a comodidade de governar.
Então, é uma vantagem do Estado que haja lindas carruagens. Quanta revolta é evitada, quanta guerra interna é poupada a um país porque o povo se habituou a respeitar quem o governa!
O Bucentauro e a ponte sobre o Tâmisa
A República de Veneza tinha um presidente do Conselho dos Nobres intitulado Doge, palavra derivada do vocábulo latino dux, chefe.
Para navegar pelas águas fabulosas da Laguna de Veneza, o Doge dispunha de uma embarcação, toda esculpida, folheada a ouro, lindíssima, que por uma reminiscência mitológica chamava-se “O Bucentauro”.
Na ocasião máxima do Estado Veneziano, o Doge partia no Bucentauro acompanhado de centenas de barcos, gôndolas com aquelas proas lindas, gente tocando instrumentos, cantando, etc., laguna adentro, até o Mar Adriático. E, quando estavam no alto mar, o Bucentauro parava e o Doge jogava nas águas um anel precioso: era o casamento de Veneza com o mar.
Veneza era uma grande república comercial e dominava os mares naquele tempo, sendo, por isso riquíssima. O casamento da República de Veneza com o mar representava uma espécie de união entre o Estado veneziano e seu destino histórico.
Evidentemente era útil para o Estado veneziano ter um barco assim.
Portanto, nem sempre a beleza tem essa incompatibilidade com o prático que apresentávamos no início desta exposição. Para a vida da alma, para o intercâmbio de relações entre as almas, para a formação da política e da cultura de um povo, o belo tem uma importância maior do que o prático. E quando há incompatibilidade, quase sempre o belo prevalece sobre o prático.
Dou um exemplo de nossos dias: o Rio Tâmisa, em Londres, com aquela ponte levadiça. Aquilo é lindo, mas já não necessário, porque com os meios modernos poder-se-ia construir uma ponte alta que substituísse aquela. Por que se mantém a ponte atual? Porque é bela!
Há, portanto, um prático de categoria inferior que encontramos ao olhar automóveis bem equipados. Mas há um prático mais elevado que toma em consideração que o homem é mais espírito do que matéria, e que as coisas do espírito têm muito mais importância do que as da matéria. Por isso, deve-se dar mais valor ao belo do que ao prático.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 4/10/1986)