Ao comentar a cerimônia de coroação do Imperador do Sacro Império Romano Alemão, realizada na Basílica de São Pedro e narrada em tom declamatório, Dr. Plinio faz reviver um passado tão amado por ele.
Diz-se que o tempo irreparável foge, e é verdade. Mas nas páginas da História, debaixo de certo ponto de vista, ele para.
O passado não morre
Embora, na aparência, o passado seja objeto dos esquecimentos mais monumentais, ainda que ele possa parecer morto, enterrado e sepultado completamente pela avalanche dos fatos novos que vêm, há em certos aspectos do passado qualquer coisa que lhe assegura a perenidade e faz com que, por exemplo, no tempo em que a cerimônia aqui descrita se realizava, neste lugar onde nos encontramos — talvez sede de uma taba de índios ou um matagal, não se sabe que espécies de onças, tatus, insetos, serpentes rondavam e rastejavam por aqui —, ninguém haveria de imaginar que, passados tantos episódios, ocorridas tantas revoluções, de tal maneira convulsionado o curso da História, no ano de 1984 a cerimônia renasceria lindamente declamada para uma juventude que ouve entusiasmada!
Passou o tempo para esta cerimônia? Sim e não. Ela não se realiza mais, está nos arquivos e, de algum modo, misturada com a poeira do passado. Sobre ela poder-se-ia dizer, meneando a cabeça: fugit irreparabile tempus… Mas, de outro lado, non fugit! Ficou uma nostalgia, uma saudade, a afirmação de algo de perene que existe nesta cerimônia.
Assim, quando ouvi, narrado há pouco, o cerimonial da coroação do Imperador do Sacro Império, e evocadas, com uma saudade cheia de apetência, as cerimônias das repúblicas aristocráticas ou burguesas e corporativas da Idade Média, pensei: “O passado não dorme, não morre! Ele é como um rio que, às vezes, afunda na terra, como se desaparecesse, mas renasce mais adiante!”
Todas essas recordações reaparecem, não é possível estancá-las, pela graça de Deus. Uma das riquezas do passado está nisto: a declamação. Paulo VI disse que estávamos na civilização da imagem, e para tal civilização esta declamação poderia parecer uma coisa envelhecida, pois todo mundo quer ver, ninguém deseja ouvir.
Entretanto, é feita aqui a declamação segundo os cânones antigos, para descrever uma cerimônia antiga, e todos prestam mais atenção do que se presenciassem um espetáculo de televisão. Quem ousa dizer que todo o passado morre, que para tudo foge o tempo, e que não há valores perenes na História dos homens? Ó ilusão! Non fugit irreparabile tempus!
Feitas essas considerações, passo ao comentário que me pediram.
Vivacidade do povo italiano
Roma, a cidade dos Papas, gozava de certa autonomia municipal em relação ao Sumo Pontífice. Por isso, sob certo ponto de vista, poderia ser comparada a uma república municipal. Iam, portanto, de encontro ao Imperador do Sacro Império os dignatários do que poderíamos chamar, para simplificar, de república municipal romana.
Consideremos os pormenores do cerimonial.
“Em breve, o longo e lento cortejo cruzará as muralhas da cidade de Roma. Cerca de duas ou três horas antes do momento marcado para o encontro com o Imperador, já o cortejo está organizado dentro da cidade.”
A Itália sempre vivaz, alegre e cheia de meninos dispostos a exclamar, a bater palmas, a vaiar, enfim, a se manifestar. No meu modo de sentir, as velhas loquazes e os meninos manifestativos marcam especialmente a vivacidade italiana.
E enquanto tudo se organiza dentro da seriedade, com as pessoas vestidas em trajes próprios às suas funções, perfilando-se e alinhando-se, podemos imaginar no meio disso o pitoresco da vivacidade romana:
Uma menina que grita para o pai:
— Não deixe de pedir ao Papa tal coisa!
Ele, solene, faz um sinal para não perturbar a cerimônia…
Ela, correndo, leva uma florinha a um senhor e diz:
— Leve para o Imperador de minha parte.
O homem sorri, e guarda a flor no bolso.
Mais adiante, um indivíduo cobra uma dívida de outro que está montado a cavalo. Pouco mais à frente, antes de iniciar-se o cortejo, está um, por via das dúvidas, acabando de comer um pedaço de pão com queijo.
Afinal, os sinos começam a tocar e o cortejo lentamente se põe em marcha através da cidade. As velhas portas se abrem — sérias, solenes, veneráveis — e o cortejo penetra no campo.
Juramentos prestados pelo Imperador
“Do Monte Mário partiu o Imperador, acompanhado dos seus guerreiros germanos, bem como seus prelados, abades e bispos. Os dois cortejos se encontram a certa altura do trajeto. Do lado da municipalidade de Roma, todos apeiam. O próprio Imperador desce do cavalo para saudar o povo romano que veio a seu encontro.”
São gentilezas: o Imperador não apeia do cavalo para saudar algumas pessoas, mas para saudar o povo romano que vai hospedá-lo!
Os representantes da cidade de Roma tiram seus grandes chapéus de veludo, bordados a ouro, com pedras preciosas e fazem uma profunda reverência. O Imperador os recebe com uma bondade monumental!
Na continuação da cerimônia, o Imperador deverá entrar com suas tropas na cidade de Roma. Ora, nem sempre a recordação das tropas imperiais é muito pacífica… A nação alemã é valente, intrépida e muito empreendedora. Tropas armadas, numa cidade desarmada, podem levantar interrogações…
“A municipalidade, na pessoa de seus representantes, avança com uma linda almofada sobre a qual está um belo ritual, contendo um juramento que o Imperador deve prestar antes de transpor os umbrais das portas de Roma.”
É o juramento de respeitar as liberdades da cidade de Roma, ou seja, não empregar a força e permitir que Roma continue a se reger de acordo com os seus privilégios.
O Imperador sabe que isso é uma formalidade, pois ele entra em Roma sem qualquer intenção de atacá-la. Durante séculos seus antecessores foram obrigados a prestar este juramento, no tempo em que ele era indispensável. Criou-se, assim, um hábito, e pela força do costume, com o passar do tempo, os imperadores já não podiam sequer pensar em violar esses privilégios. A tradição amarrava o braço forte do maior monarca da Terra!
Vamos supor que ele não jurasse. O cortejo voltaria e as portas de Roma se fechariam. E era preciso começar a guerra. Mas, se houvesse guerra, não haveria coroação. E, se não houvesse coroação, os seus vassalos não lhe prestariam obediência. Ele tinha, portanto, interesse fundamental em prestar o juramento.
O Imperador transpunha aquelas portas e provavelmente a cidade inteira o recebia cantando “viva o Imperador!” etc., até chegarem à ponte do Castelo de Sant’Angelo, antigo sepulcro do Imperador Adriano. Atrás daquela fortaleza, o Papa recebia o Imperador que, de joelhos, prestava outro juramento de fidelidade.
O Imperador é elevado à condição de subdiácono
Depois, o cortejo seguia para a Basílica de São Pedro e começava a cerimônia, que tinha por eixo o Santo Sacrifício da Missa. Nada é mais razoável, nada está mais de acordo com a Doutrina Católica do que isto. Por ocasião da posse, da investidura do Imperador, como em todas as grandes ocasiões da vida, uma Missa.
Daí o costume de, por exemplo, celebrar-se o Matrimônio durante uma Missa; Missa para Bodas de Prata, Bodas de Ouro, para solenidades, como uma formatura, e outras semelhantes. Algo desta tradição permanece até hoje: alguma coisa é grande, liga-se à Missa. Porque a Missa, sendo a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, tem papel central, é o ato mais importante em todo o culto católico.
A união entre a Igreja e o Estado é simbolizada deste modo estupendo: o Santo Padre fragmenta a Hóstia em duas partes iguais, comunga uma e dá a outra ao Imperador.
Então, a Missa é celebrada, mas não sem algumas cerimônias iniciais. Em certo momento dá-se um fato muito importante: O Imperador é elevado à condição de clérigo.
Quer dizer, tinha-se em tão alta consideração o clero que, para honrar o Imperador e lhe assegurar a invulnerabilidade, ele — o maior hierarca da sociedade temporal — era honrado ao receber um lugarzinho nos degraus da hierarquia eclesiástica, ocupando o posto de subdiácono. É uma pequena participação, mas honra o Imperador. Vestido de clérigo, ele entra na Basílica para, então, ser coroado Imperador. Vemos como o clero é colocado num píncaro que indica bem o caráter sacral dessa civilização.
Solenidade e grandeza
Um indivíduo “modernizado” poderia objetar: “Por que isso não se fez depressa? Por que não se ganhou tempo? Não se poderia fazer com que ele, ao mesmo tempo em que recebesse a condição de clérigo, fosse coroado ato contínuo? Dispensasse os cânticos, a entrada lenta em cortejo, a capela onde ele punha aquela roupa pomposíssima?”
A resposta é muito simples. Essas diversas fases da cerimônia devem se realizar em atos separados, lentamente e com solenidade.
A solenidade é um modo de fazer as coisas, por onde a grandeza delas aparece por inteiro. Por exemplo, uma Missa solene é um modo de cantar ou de rezá-la pelo qual a grandeza intrínseca dela transparece de modo sensível. A posse solene de um chefe de Estado, a coroação de um rei ou de um imperador é solene porque faz aparecer, aos olhos do povo, a grandeza da condição que aquele homem vai assumir naquele momento.
Poderia nascer outra pergunta: Para que revelar a grandeza intrínseca das coisas?
A resposta, ainda mais uma vez, é muito simples. Deus quis que sua glória fosse revelada aos homens de inúmeros modos sensíveis. “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos”, diz a Escritura1. Portanto, o Criador quer que suas criaturas conheçam a grandeza d’Ele; e para que esta grandeza seja conhecida, é preciso que ela se manifeste.
A solenidade, por sua vez, tem que ser séria, compenetrada, vivida por almas ávidas de grandeza e contentes por ver a grandeza reluzir em quem é mais do que elas e vê-la reluzir, participativamente, nos menores.
Não há o que não tenha grandeza, em grau maior ou menor. Um lixeiro, um sapateiro: suas tarefas têm grandeza. E é preciso que essa grandeza reluza aos olhos dos homens. Então, daí a solenidade.
Por que a lentidão? Porque nada que se faça com grandeza pode ser executado depressa. A pressa é inimiga da grandeza.
Assim, é preciso que os vários atos de que consta a coroação sejam separados uns dos outros, e que se sinta, se manifeste a grandeza própria do fato de o Imperador tornar-se clérigo. O império cresce e a Igreja manifesta o seu esplendor. Por isso é mister haver uma cerimônia específica para esse ato.
União entre a Fé e o poder
É necessária outra cerimônia para o momento em que o Imperador se reveste das suas insígnias, quando se manifesta a beleza da ordem temporal e não mais a da ordem espiritual. Pulcritude menor em relação à beleza espiritual, mas uma grande beleza, pois Deus é Autor também da ordem temporal.
Depois, o hierarca temporal, em solene cortejo dentro da Basílica, vai até o trono do Papa. A grandeza das grandezas está lá: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela.”2 Magnífico!
Assim, o povo vai olhando e compreendendo cerimônia por cerimônia. O canto, o órgão espalham suas harmonias pela Basílica, as velas brilham, o incenso se faz sentir, os sinos tocam; é um mundo de harmonias dentro do qual o povo contempla a grandeza do Papado, a grandeza da Igreja, a grandeza do Império.
O Imperador avança e chega junto ao trono do Papa. Primeira coisa: ajoelha-se. Aquele César, cercado de tropas, se curva reverente!
O Papa lhe dá um anel, símbolo da Fé e do poder. Que linda conjugação: a Fé e o poder! Como fica bonito o poder a serviço da Fé! Como fica faltando alguma coisa a todo o bem-estar da Fé, quando o poder não está a serviço dela! Que coisa bruta e ameaçadora o poder nas mãos do homem que não tem Fé! A Fé e o poder se unem; começa a Missa…
O Rei da França canta a Epístola, o Rei da Alemanha canta o Evangelho. França e Alemanha junto ao altar de São Pedro, unidas pela participação comum dos respectivos chefes de Estado numa cerimônia incomparável!
Esta cerimônia, ápice de todas as cerimônias, é a Santa Missa. Se esse símbolo tivesse sido tomado a sério, e se os dois monarcas depois se amassem como deveriam se amar; se ao longo da História a França tivesse sabido ser sempre a irmã da Alemanha, e a Alemanha a irmã da França, como o curso da História teria sido diferente! E como a civilização humana estaria mais alta!
Magnífica afirmação da solidariedade, da complementaridade destas duas nações, que em determinado momento histórico representavam o verso e o reverso da medalha, o lado direito e o lado esquerdo da fisionomia humana.
Eloquente sinal de unidade
Mas algo de muito mais augusto estava para se passar ainda nessa cerimônia. Era a união entre a Igreja e o Estado, que é simbolizada deste modo estupendo: o Santo Padre fragmenta a Hóstia em duas partes iguais. Comunga uma, e dá a outra ao Imperador para comungar. Eu não conheço um sinal mais tocante de unidade do que este.
A cerimônia chegou ao auge; e tudo quanto chega ao auge, termina. É a tristeza das coisas desta vida. Os sinos da Cidade Eterna começam a tocar, o Papa retira-se antes, carregado na sua Sede Gestatória porque ele vale mais do que o Imperador, acompanhado pelo amor de todos os que ali se encontram, deixando no meio do povo os maiores potentados da Terra: o Rei da França e o Imperador do Sacro Império; fecha-se com Deus em seus aposentos e se entrega a seus trabalhos e a suas cogitações, para governar a Santa Igreja.
Os séquitos dos dois monarcas, por sua vez, saem da Basílica, separam-se e se dirigem pomposamente para as residências deles na cidade de Roma. Aos poucos o povo escoa. Na Basílica fica apenas uma ou outra luz acesa, uma ou outra pessoa rezando — alguma mãe de família, algum oficial, algum clérigo, alguma freira —, com a alma cheia daquilo que viu.
Aos poucos esses também saem, e se fecham as portas da Basílica. É noite sobre a cidade de Roma… Nos conventos de oração perpétua ainda se reza; nos outros, todos dormem. Sobre a urbe vela apenas o Anjo de Roma.
Mas nas almas de todos reluzem mil policromias, cantam mil polifonias, mil harmonias, sobretudo canta um grande ato de Fé! Está coroado o Imperador do Sacro Império Romano Alemão!
(Extraído de conferência de 24/11/1984)
1) Sl 19, 1.
2) Mt 16, 18.
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