Dona Lucilia possuía uma noção muito profunda da maldade do gênero humano, a qual se refletia nas pessoas com quem ela tratava e que lhe causavam decepções. Mas ela as acolhia sem nenhuma acrimônia, acidez, recriminação; era cheia de perdão e de bondade, porém nela não havia um pingo de ilusão.

De vez em quando, volta-me ao espírito o assunto da atitude de Dona Lucilia em relação ao processo revolucionário, com a curiosidade de colher pequenas reminiscências que me proporcionem ver e descrever melhor como era a questão.

Noção profunda da maldade do gênero humano

Há certas preliminares que, embora estejam à margem do assunto, devem ser consideradas.

A pessoa do século XIX era muito mais atenta para os próprios dramas interiores do que a pessoa posterior à Primeira Guerra Mundial.

Se há uma coisa que é pouco desenvolvida nas atmosferas marcadas pelo “hollywoodismo” é a sensação, a ideia do drama interior, de um elemento que falta a uma alma para ela se completar, o que a faz sofrer. Essas coisas que o romantismo do século XIX considerou com lente de aumento, o século posterior comprimiu o mais possível. Certas situações infelizes, no século XIX, a pessoa dramatizava muito mais, porque tomava muito mais a sério, levando com certa tendência ao exagero.

Não notei em mamãe uma tendência ao exagero, mas ela era muito séria. Aquela fotografia dela mocinha indica muito isso. Ela levava a seriedade até o último limite. E, por causa disso, certas situações internas Dona Lucilia considerava sobretudo com o seguinte aspecto: ela notava que, num mundo feliz – os irmãos, a família em geral, bem instalados – era a infeliz, porque tinha sofrido enormemente com aquela operação realizada na Alemanha, em 1912. Ademais, com dissabores que a tinham feito sofrer muito em moça também. Ficava-lhe, então, uma ideia de que ela era muito marcada pelo sofrimento e que a Providência a escolhera para isso.

De outro lado, a ideia de que a transformação notada por ela em torno de si, e que repercutia dentro dela, decorria de uma profunda maldade do gênero humano. Ela possuía uma noção muito profunda dessa maldade, sem acidez, sem recriminação, cheia de perdão e de bondade, mas na qual não havia um pingo de ilusão. Isso a respeito do conjunto da humanidade e, portanto, refletindo nas pessoas com quem ela se dava e com quem tinha decepções, mas sem nenhuma acrimônia.

Uma graça que não existe fora da Igreja Católica

Um dos aspectos de sua alma que mais me encantou foi vê-la, ao longo de sua vida, sofrer muitas coisas, medindo até o fundo cada sofrimento, sem se fazer ilusão nenhuma. Mas depois tratar tudo com bondade, um perdão que me fazia lembrar a Igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, e aquela atmosfera de inegável perdão existente lá. Ela parecia muito modelada por isso.

Luis C. R. Abreu
Sagrado Coração de Jesus Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, Brasil

Por essa razão ela me levou a considerar muito desconfiadamente o gênero humano. A questão punha-se assim: Mesmo as pessoas melhores, a quem fundadamente se quer mais bem, no fundo desiludem. E se não tiravam a ilusão a todos, desiludiam pelo menos a ela. Mas, desiludindo-a, marcavam que tinham lados ruins. Este era, então, um lado triste e até desolado da existência humana, considerado, entretanto, com muita suavidade, mas deixando transparecer no olhar uma perplexidade: “Eu estou vendo claramente como isso é, mas que coisa assombrosa de tão ruim!”

Pela fotografia, se nota que não há uma acrimônia, nenhuma acusação, nenhuma recriminação. Existe apenas uma espécie de perdão como quem diz: “Deixe isso ser assim, eu vou continuar a ser boa. Isso se explica em Jesus Cristo, Nosso Senhor, e não de outra maneira. Mas aí se explica mesmo!”

Se há uma coisa que não é natural é isso. Quer dizer, é uma graça recebida com o Batismo, sobrenatural, que fora da Igreja Católica não existe e dentro dela não é frequente. Fora da Igreja Católica é inútil procurar, porque não há. É uma graça que conforma a pessoa a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Existe aquela jaculatória a Nosso Senhor: “Jesus, manso e humilde de Coração, fazei nosso coração semelhante ao vosso!” É uma grande graça. Aliás, foi o que Nosso Senhor nos ensinou em toda sua vida. A atitude d’Ele conosco durante a Paixão, por exemplo, foi o tempo inteiro essa.

Um turbilhão de afeto, de compreensão e de carinho

Nosso Senhor viu o mal, é claro. Mas não se mostra Ele assim. Apresenta-se a tristeza d’Ele, mas não se chega a dizer taxativamente que essa tristeza é porque Jesus via o mal nos outros. Há um trecho do Evangelho no qual o evangelista faz este comentário: “Tendo amado os seus que estavam neste mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). Este amor até o fim é do que Dona Lucilia dava prova.

Eu acho que é propriamente a expressão, a irradiação de Nosso Senhor, e também de Nossa Senhora: Salve Regina, Mater misericordiæ, e tudo mais mostram a posição para com o pecador.

Daí a devoção dela ao Sagrado Coração de Jesus. E isso modelava sua alma de tal maneira que, no fim da vida, tendo sofrido tudo quanto sofreu, quando começaram a se aproximar dela alguns de meus jovens seguidores, notei que ela se deixou tocar por esse afeto, crendo nele inteiramente. Logo, ela não perdera nem sequer esse frescor de alma pelo qual a pessoa está disposta a crer e esperar mais uma vez, embora tenha tido mil decepções.

De repente apareceu em sua vida, prestes a terminar, um turbilhão de afeto, de compreensão e de carinho a que ela se entregou com toda a bondade. Ora, a reação “normal” seria: “Eu estou para morrer, não vou embarcar na milésima decepção de minha vida. Bato a porta.”

Isso corresponde a uma forma de perdão que é tocante. Não um perdão bobo, mas com um profundo discernimento.

Para utilizar uma imagem, era mais ou menos como certas gramas quando pisadas; o pé do homem verga a grama, mas aos poucos ela volta para o seu natural. Assim era Dona Lucilia. Minutos depois de receber a ofensa, ela estava com a mesma bondade, inclusive para com aquela mesma pessoa que a tinha feito sofrer.

Há almas que, à força de sofrer, ficam como alguém que, devido a um reumatismo, tem hirtas todas as articulações do corpo e, por isso, qualquer movimento range e dói. É horrível, é triste.

Se há quem não fosse assim era mamãe. Arquetipicamente não era assim. Ela manifestava, a qualquer momento, uma acolhida, uma gentileza, uma bondade de pasmar! Era a atitude de uma alma ciente de toda a maldade do homem, mas que sabia poder existir, axiologicamente, criaturas humanas que correspondessem. E ela levou essa certeza tranquilamente até o fim.

(Extraído de conferência de 31/8/1985)