Na sociedade orgânica medieval existia muita bondade e combatividade. Não se podia mexer nos princípios, pois nesse caso o Cordeiro de Deus se transformava em Leão de Judá. Ela primava também pela lealdade, que é o hífen entre a doçura e a combatividade. Quando a Idade Média terminou e iniciou a Renascença, a lealdade foi deixando de ser estimada, começou uma insensibilidade para com a traição e as alianças passaram a valer cada vez menos.
Uma pessoa que, sendo objeto de toda a doçura, de toda a suavidade do Sagrado Coração de Jesus, se deixa enternecer e suavizar tem condições para que todas as suas qualidades pessoais se expandam largamente, sem constituir fator de agressão nem de briga dentro da sociedade orgânica.
Reciprocidade enternecida
Tomem uma pessoa que leia as revelações de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria sobre o Sagrado Coração de Jesus, e tem alma para se deixar tocar por isso. Enquanto é assim – pode deixar de ser –, ela tem gratidão que, afinal de contas, é essa reciprocidade no bem. Alguém nos faz bem, nós lhe damos essa reciprocidade; isso é gratidão.
A alma é muito instável nessa reciprocidade. E enquanto está tocada por essa reciprocidade, essa pessoa pode desenvolver todas as suas qualidades o mais que queira e tornar-se um colosso; ela é um fator de bem-estar, de ordem, de bom funcionamento de todas as coisas dentro da sociedade orgânica.
Se, pelo contrário, ela tem um tipo de alma que, sendo objeto de uma bondade tal do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria, não se deixa tocar, quanto mais ela se expande, mais tira o terreno dos outros, e mais torna a sua própria expansão daninha e insuportável.
Numa sociedade em que essa reciprocidade enternecida é o comum do trato de uns homens com os outros, o papel da autoridade fica muito pequeno, porque o caos, as desordens são muito raros. A autoridade não tem senão uma função repressiva limitada. Haverá sempre necessidade dela, mas é limitada. Possui uma função diretiva muito grande – inspiradora e diretiva – que consiste, sobretudo, em estimular essas disposições de alma.
Todos podem expandir-se inteiramente, sem que ninguém entre no terreno do outro. Daí se torna possível a sociedade orgânica, que se define assim: é a sociedade na qual todas as expansões não ocupam espaço vital a terceiros, e são benfazejas umas às outras.
Uma floresta de pesadelo
Nós deveríamos imaginar uma floresta de pesadelo, onde as árvores só pudessem crescer de maneira tal que umas batessem com os ramos das outras. Um tal crescimento seria, de um lado, a lei da vida; de outro lado, a lei do caos. Seria preciso repressão contínua nessa floresta de pesadelo.
E quando as árvores estão nutridas por um princípio vital, pelo qual elas se expandem sem se tocarem, sem invadirem reciprocamente o espaço vital, temos a floresta que se pode desenvolver livremente.
Qual é a condição que faz com que os homens não batam com as qualidades uns nos outros? É exatamente essa enternecibilidade diante da bondade muito grande, paciente, que espera, que perdoa; aí nasce a sociedade orgânica. Mas o famoso problema da sociedade orgânica realmente não é possível a não ser in caritate Christi1, exatamente por isso.
Os setenta sábios no Farol de Alexandria
Lembro-me dos setenta sábios no Farol de Alexandria. Para mim é das coisas mais belas que há: setenta sábios num farol estudando juntos os documentos sagrados, a interpretação, etc. Eu acho uma coisa maravilhosa. Como poesia, é de uma beleza única.
Se a pessoa tem a alma assim enternecível pela bondade autêntica que se lhe faça – não é, portanto, por qualquer agradinho vão –, quando vê um outro, que é um par dela, fazer uma coisa boa, ela fica contente, agradecida, porque a alma enternecida não tem rivalidade, nem vontade de esmagar ou de superar quem quer que seja. Ela quer que todas as formas de bem se expandam. E não quer ocupar nessa floresta senão o lugar onde naturalmente ela está.
Então, vendo outros que brilham mais, etc., ela se rejubila, até dá graças a Deus, toma isso como uma bondade de Nossa Senhora. Por quê? Porque um estado de espírito traz outro. Toda forma de bem a toca.
Por exemplo, num seminário onde os seminaristas são assim. Um seminarista vê um outro que o sobrepuja em virtude e fica contente: “Olhe, que bonito fez o clérigo Tal!”. Por quê? Porque toda forma de bem o enternece, ele fica grato.
É a aplicação num outro campo, quer dizer, nas relações horizontais, daquilo que acabo de dizer nas relações verticais, entre o Sagrado Coração de Jesus e nós. É uma variante.
Aseitas
Daí decorre também uma outra coisa: uma espécie de abundância de bem-estar interior, por onde a pessoa fica com o sistema nervoso, o temperamento, muito mais aberto, mais afável, mais flexível, recebe bem qualquer coisa. É à maneira do Cordeiro de Deus, desde que não mexam nos princípios. Este é o ponto que não pode ser tocado, pois do contrário o Cordeiro vira o Leão de Judá.
A sociedade orgânica vem do fato de que todo mundo expande suas qualidades, as quais se entrerrelacionam espontaneamente; movidas pelo bom impulso que elas têm, formam harmonias novas, como nunca ninguém pensou. É a aseitas2 da sociedade orgânica.
Falei há pouco da organicidade que vem de que isto procede do fundo de todos. Agora trato da aseitas. Isso tem uma originalidade que nunca ninguém pensou, porque dá origem a combinações sempre novas, inesperadas e, por causa disso, encantadoras.
Cada pessoa tem uma unicidade inconfundível. Nas relações de cada um com um outro nascem sempre, neste clima de organicidade, surpresas que ninguém pode prever. É propriamente a doçura de Cristo no Reino de Cristo. Então surge o reino da suavidade, o reino de doçura, o reino da bondade.
A verdadeira sociedade orgânica não existiu antes de Cristo
É uma coisa que um pagão não pode imaginar. Por causa disso, a verdadeira sociedade orgânica não houve antes de vir Nosso Senhor. Porque sem Ele não se concebe.
E esta unicidade não se poderia realizar antes da vinda de Jesus, por efeito do pecado original. Como se poderia pensar numa realização inteiramente na ordem da Metafísica, e levando-a até suas últimas consequências, por uma humanidade parada pelo pecado original?
Compreende-se assim o que vem a ser a revelação do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria e o convite para aquela devoção, retamente entendida. Daria o que nós acabamos de dizer.
Então, uma das coisas mais antipáticas do Ancien Régime é uma espécie de ressentimento contínuo de uns com os outros. Isso não existia na Idade Média, o clima era outro. E da simples generalização dessa devoção, se o rei tivesse dado apoio, teria nascido uma coisa que nós não sabemos como é.
Todas as elucubrações sobre Idade Média e a inocência do homem medieval não têm sentido se não tomarmos isso em consideração.
A pessoa assim não pode ser, habitualmente, muito apressada, posta no ritmo norte-americano do metrô, do elevado, do avião, etc. Eu procuro muito, dentro do corre-corre a que sou obrigado, não ter pressa interior. E acho que estou dirigindo minhas palavras contra o teor de vida mecanizado e moderno. A um homem que diz as coisas saltando de um lado para outro torna impossível ter esse estado de espírito.
O corre-corre, o apego e o pânico
Portanto, tudo quanto a Revolução colocou para acelerar demais o ritmo das relações humanas, eu considero de algum modo perturbador deste estado de espírito do qual estou falando. É necessário uma certa serenidade por onde as reciprocidades se sentem e têm tempo de recuar.
Na ponta de cada linha de obrigações do homem moderno está alguma agilidade inexorável, à maneira de um funcionário atrás de um guichê de um banco, dizendo: “Faça isso assim, porque do contrário serás prejudicado!”
No fundo de todo esse corre-corre existe uma promessa de suborno e uma ameaça. Quer dizer, um apego e um pânico. Ora, apego e pânico saem desse ritmo e não são compatíveis com a sociedade orgânica, a qual comporta um certo vagar, uma certa tolerância.
Em vista do que acabei de falar – desta virtude da gratidão, da reciprocidade, etc. –, se compreende a quase impossibilidade de se levar uma vida verdadeiramente católica – salvo melhor juízo da Igreja algum dia; aí me curvo, mas do contrário não – nesse corre-corre dentro do qual sou obrigado a viver.
Alguém dirá: “Mas o senhor vive ou não vive direito assim?” Eu espero que viva, mas não se pode exigir isso de cada um.
Não pode haver sociedade orgânica sem reflexão
Há também uma outra coisa desse estado de alma de que falei no começo da reunião, que é muito ligada com essa história da pressa. Todos conhecem, mas a questão é fazer o relacionamento debaixo desse ângulo. É o seguinte:
Quem tem esse estado de alma é reflexivo, reflete com facilidade e gosta de refletir. Será mais inteligente ou menos, pouco importa; ele reflete. Porque tem os interstícios, os intervalos, e uma necessidade de alma, por efeito de suas próprias reciprocidades, de pesar e ponderar o que se passou para, organicamente, se ajustar em vista do que aconteceu e fazer reflexões. E são reflexões sem pedantismo, mas que nascem do fundo da alma dele – tal coisa, tal outra, depois é de tal jeito –, que dão a vida refletida.
Um sabor que a sociedade orgânica precisa ter é sentir-se em todos os seus membros que eles refletem. Sem isso não há sociedade orgânica, como, por exemplo, não pode existir um avião sem asas e sem motor.
Digamos que uma pessoa acaba de fazer um negócio, no qual teve uma situação aflitiva de que um amigo a salvou, numa atitude elegante, desprendida. Ela, então, gosta de refletir, de recordar a cena, o amigo falando, de ponderar o que este sacrificou, a vantagem que ela mesma auferiu, e tem vontade de encontrar o amigo para lhe agradecer.
Não é necessário que seja sempre um agradecimento em expressos termos. Pode ser um agradecimento implícito que, às vezes, se exprime num modo de dizer “bom-dia”. Há mil modos de agradecer, mas ela gosta de agradecer. E isto sem uma reflexão não toma seu valor inteiro.
Conhecer a mim mesmo e a caridade que os outros têm para comigo
Então, esses problemas que se apresentam: “A sociedade orgânica deve ter uma economia de tal tipo ou de tal outro?” Eu começo por dizer para o sujeito que formula tal pergunta: “Faça primeiro os homens com a alma própria à sociedade orgânica, que a economia qualquer um a efetua, vai de si. Não venha com regras, mas procure criar homens que, pela sua natural expansão, sejam como as árvores da floresta que se desenvolvem.”
Daí vem a sabedoria popular, a filosofia popular que é o comum do pensamento do povo, etc., mas que dão a sociedade orgânica.
Eu volto a dizer: a reflexão assim pede negócios e um âmbito de contato pessoal que não sejam com muita gente, nem muito complicados, entremeados, mas que tenham uma certa simplicidade para poderem ser aprofundados.
Essa posição de alma suporia uma outra coisa, que é a seguinte: Um conhecimento muito equilibrado de si próprio, do que, segundo a justiça, me é devido, e depois qual a caridade que me fazem. Porque não é possível ter reciprocidade com os outros sem entender isso.
Alegria ao ver uma pessoa superior a nós
E esse simples enunciado põe o homem contemporâneo delirando, porque está tão apodrecido pela Revolução, que fica incapaz de refletir razoavelmente sobre o que ele é.
Ele é tão igualitário que, se for um homem de um pouco mais de valor, pensa para si o suprassumo e dá num orgulhoso; ou, se for um medíocre, quer reduzir tudo ao nível dele. Em ambos os casos, qualquer desigualdade o deixa louco.
Não é o modo pelo qual uma alma ordenada, da qual falei, considera isso: “Fulano tem tal coisa que eu não tenho? Fico contente! Então vamos homenageá-lo, felicitá-lo por causa disso, o que lhe dará alegria!”
Isto era, propriamente, o antigo ambiente de família. Quando aparecia um na família que se destacava muito, às vezes de um ramo bastante secundário, era uma alegria geral. Mas por quê? Porque a família, que era uma espécie de princípio vital, tinha manifestado sua fecundidade, florescendo naquele de modo especial. Era uma razão de alegria para todos, e não de pega-pega: “Aquele vai ficar mais importante que eu, não é possível…” Não existia isso.
Naquele tempo as moças cantavam, tocavam piano, etc. Se aparecia uma mocinha que está sendo apresentada à sociedade e cantava magnificamente, eclipsava todas as outras, estas ficavam alegres: “Já viu Fulana como está cantando bem? Convide-a para sua casa!” É o natural.
Mas sem esse sentimento, a pessoa não é capaz de saber aquilo a que tem direito e o que se lhe deve. Resultado: ela não é capaz de valorizar o que lhe é dado. É uma ponderação de que a pessoa se torna incapaz. Falta-lhe o senso da medida cômoda e tranquila para todas as coisas, que sem essa avaliação não é possível. Na sociedade orgânica existe isso.
Então, por exemplo: “Está aqui nos visitando Fulana, que é muito importante por causa de tal coisa. Vamos lhe oferecer um chá melhor!” É uma alegria que todos têm. Alegria de dar, sem interesse.
Com o fim da Idade Média, a lealdade deixou de ser apreciada
E há uma virtude que é o ponto de transição de tudo quanto eu acabo de dizer e as virtudes combativas. Refiro-me a uma virtude cujo nome está ultraconspurcado pela banalidade, mas é lindo. Chama se lealdade. Porque esse teor de coisas só pode se manter com quem é autêntico; com quem não é autêntico é imantenível.
Esse estado de espírito de que falei é pronto ao perdão. Mas uma das coisas que ele mais dificilmente perdoa é a falta de lealdade. Considerem dois amigos. Um pode perdoar ao outro qualquer coisa, por exemplo, um desaforo muito grande; porém perdoar uma deslealdade é mais difícil. Viciou a base.
De onde acontece que na falta de lealdade, não digo que seja inexplicável o delito, mas é preciso dar provas de si exuberantes para provar o arrependimento. Ou há uma expiação que é garantia de autenticidade a vida inteira, ou aquilo não se mantém. Ao desleal que peça perdão pode-se dizer: “Eu perdoo e vou rezar por você.” É muito mais difícil afirmar: “Eu perdoo, vamos conviver.”
E a lealdade está a meio caminho entre toda essa doçura à qual me referi e a combatividade. É o hífen que se põe numa ordem muito razoável. Não tem nada de sensacional. E a lealdade já é a passagem para a combatividade, para uma outra ordem.
E notem o seguinte: quando a Idade Média cessa e inicia a Renascença, começa uma insensibilidade para a traição. O traidor da Renascença é muito mais frequente. Mesmo as alianças passaram a valer cada vez menos. Mas por quê? Porque a lealdade passou a valer cada vez menos e ser desleal não ficava mal.
Então, com o fim da Idade Média, a lealdade deixa de se prezar. Quando esse apreço pela lealdade cessa, pode ter a forma de afetividade que quiser. Para um homem íntegro, essa afetividade significa pouco e é tratada como pouco. Não tem por onde escapar.
Bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Para se compreender e amar todas essas verdades, há um pressuposto que eu considero uma graça especial. Especial para nós porque vivemos neste século, etc., mas é uma graça frequente, corrente, comum na Cristandade: ter uma certa noção, comunicada pela graça, de como isso realmente foi com Nosso Senhor, e como o equilíbrio de tudo isso existia n’Ele.
Por exemplo, a bondade de Nosso Senhor é, ao mesmo tempo, por assim dizer, infatigável, insuperável; mas, de outro lado, procede de uma Pessoa de uma majestade indizível, fazendo que essa graça venha especialmente preciosa porque se percebe que ela desce infinitamente do alto. E, vinda de tão alto, ela preenche com tanta condescendência um espaço que percorre a distância infinita Criador-criatura, mais a distância insondável homem em estado de graça-pecador.
E quando a pessoa recebe essa bondade fica enternecida, em boa parte pela noção de quantas distâncias comparáveis a anos-luz essa bondade caminhou para chegar até ela.
De maneira que pela alma sensível, no bom sentido da palavra, ela é acolhida com muita gratidão. Mas uma gratidão profundamente respeitosa e desejosa, desde logo, no primeiro lance, de que não se diminua em nada a majestade que assim desceu até ela. A pessoa seria capaz de desembainhar não sei que espadas para manter esta majestade, porque, para ela, o reconhecimento da majestade e do infatigável, por assim dizer, da bondade, fazem um só.
Então, a seriedade, a transcendência, a perfeição de Nosso Senhor, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, enquanto Homem-Deus – a palavra transcendência se aplica aí numa situação mais analógica –, essa superioridade assim percebida enquanto vem a nós transbordante de bondade, mas fazendo sentir a sua superioridade, é o que de nenhum modo nas falsificações das imagens de Jesus estão.
Sua seriedade e majestade
Essa bondade é profundamente séria. Quer dizer, ela nos oferece aquilo a que não teríamos direito, mas ao mesmo tempo pede de nós, fitando-nos com força, que nos modifiquemos e tenhamos bem em linha de conta o que está nos sendo dado. Ou seja, não é uma bondade cínica. Ela quer ser devidamente avaliada.
É uma bondade disposta a perdoar muitas vezes. Mas cada vez que há um pecado, ela reconstitui a situação dramática anterior, agravada pela nova. E ela exige, de quem recebe a bondade, um preito de contrição ainda maior.
Quer dizer, há ao lado disso uma seriedade, um tomar-se a sério! E, no fundo, está dito o seguinte: “Meu filho, Eu te perdoo inúmeras vezes. Um dia você cai na minha justiça; há um certo limite, e ai de quem transpõe esse limite!” Embora não afirmado, isto está presente.
A majestade de Nosso Senhor é tal que nem sei o que dizer. Naquelas perguntas feitas por Ele aos fariseus há, ao mesmo tempo, uma simplicidade e uma invectiva onde está presente um equilíbrio que só o Divino teve, dentro do qual a própria bondade deve ser vista. Ela não pode ser considerada como uma virtude avulsa. É isto que dá a ela o sabor.
(Extraído de conferência de 17/2/1984)
1) Do latim: no amor de Cristo.
2) Cf. Revista Dr. Plinio n. 140, p. 16-21 e n. 141, p. 20-25.