No itinerário de uma alma dá-se sempre a luta por manter a inocência ou a capitulação desta para adaptar-se à Revolução. Ao tratar do menino que amou intensa e desinteressadamente a inocência mais do que a si próprio, Dr. Plinio, no fundo, descreve a si mesmo.

Vamos procurar analisar alguns aspectos do percurso de uma alma, levando em consideração que essa trajetória pode ter variantes, conforme as pessoas e os ambientes.

Período envolto em afeto, afinidade e despreocupação

A certa altura de sua existência, a pessoa se dá conta do universo das almas humanas. Então, a partir de determinada idade, a criança passa a notar as gradações de afeto e afinidade: por um lado, ela sente mais afeto da parte desses do que daqueles, e retribui esse afeto; por outro, percebe as afinidades maiores e menores, e começa a sentir também a estridência das heterogeneidades.

Até aquela idade, a criança se sente envolta num mar de afeto, de afinidade e despreocupação, supondo que todo mundo lhe tem o mesmo afeto manifestado pelas pessoas mais próximas.

Mais ou menos simultaneamente a essa percepção dos graus diferentes de afeto e das heterogeneidades – que não se apresenta necessariamente como uma coisa frustrante, mas uma novidade –, a criança começa a diferenciar mais nítida e conscientemente o mundo das crianças em relação ao dos adultos. Aparecem, então, muito definidamente também, duas formas de necessidade de contato social: um é com as crianças e outro com os adultos. Portanto, um afeto, um interesse e uma vontade de conhecer outras crianças e, depois, o mesmo com os adultos.

Entretanto, o desejo de conhecer os adultos e de se relacionar com eles é de uma natureza diferente. Com o adulto a criança tem uma amizade feita de reverência, confiança, admiração, até que chegue a idade da crítica; mas antes disso é assim. Uma necessidade de viver à sombra dos adultos, para ter segurança e saber que modelo seguir. Mas não é aquela atração enorme que começa a despertar na criança a outra criança. E propriamente a vida da criança são as outras crianças, muito mais do que os adultos.

Começa o confronto com os pais

A criança percebe que é menos importante do que os adultos, mas para ela as outras crianças dizem incomparavelmente mais. Então começa a aparecer uma necessidade de afinidade com outras crianças da mesma idade, e de dar importância a essa afinidade; bem como a considerar as heterogeneidades com uma paixão de recusa, de antipatia, ou então tomar os ridículos e puni-los com uma forma de desprezo e de rejeição assombrosa. Como também uma tendência à imitação enorme. Se uma criança julga que a outra é muito superior a qualquer título, tem uma grande tendência a agradar, a imitar, a ser igual, para efeito de se beneficiar do mesmo prestígio. Isso constitui o pequeno mundo da criança, onde o conselho de um menino de dez anos para outro da mesma idade pesa muito mais do que o conselho do pai ou da mãe.

Como sempre, e irremediavelmente, os pais não percebem isso e pensam que dando seu parecer eles esmagam o conselho do irmãozinho ou do priminho, que não é senão uma criança, tudo muito sem importância. Enganam-se completamente. Ao se abrir esse mundo para os pequenos, os pais ficam empurrados de lado.

Quando o filho, um pouco mais tarde, percebe fazer parte de um mundo, de uma geração que está entrando, fica apertado contra a parede, no seguinte ponto: “Eu afino com a minha geração. Parece que meus pais não afinam. E se não afinam, para mim e para os meninos de minha idade, eles não são nada.” Então começa a criticar os pais, querendo reformá-los para não ficar no papel ridículo perante seus próprios companheiros. E, ao pé da letra, julga o pai ou a mãe de acordo com a impressão que causará na porta do colégio, ou sentado no automóvel esperando um colega para irem embora.

Aquele pequeno mundo, de fato, julga os pais absolutamente de acordo com determinados critérios, e eles começam a perceber-se contestados, atacados. Os filhos têm vontade de esculpirem, segundo o gosto dos primos ou dos amigos, o pai e a mãe; e estes não querem saber disso, e nem percebem bem quais são os critérios adotados por esse mundinho.

Inicia-se, então, o período de confrontação entre os pais e os filhos, e aparece também o confronto do mundo infanto-masculino com o infanto-feminino. Porque as meninas – hoje deve ser diferente, mas no meu tempo de criança era assim – brincavam de boneca, cozinha e coisas análogas; e os meninos brincavam de soldadinho de chumbo, pauladas e daí para fora… O mundo delas parecia próprio a deformar o menino, privando-o da força, da importância que ele deveria ter. E, pelo contrário, para elas o mundo deles era o dos pequenos bárbaros, sem delicadeza, que convinha ignorar para poderem cultivar a sua própria vida.

A criança se sente envolta num mar de afeto, de afinidade e despreocupação, supondo que todo mundo lhe tem o mesmo afeto.

Contatos com os primos

Isto continua, mais ou menos, até começar a puberdade e a vida social tomar um aspecto mais adulto. Aí, pelo contrário, o mundo dos meninos e o das meninas se unem numa cordialidade muitas vezes excessiva. Mas antes, não; são mundos antagônicos.

Conforme o caso, ao ingressar na vida social, o mocinho descobre a importância do mundo dos pais e a não importância do seu próprio mundo. Então, quer voltar a se pendurar nos progenitores e percebe ter na sua testa a etiqueta: “Filho de Fulano e de Fulana.” E ele percebe que poderia ser mais se os pais o fossem, mas que podia não ser nada se não tivesse aqueles progenitores. Assim, os pais ressurgem, dão conselhos, porque os mocinhos vão entrando no mundo dos adultos.

Outra situação é a do mundo dos primos. Sobretudo a criança que não tem irmão tende a considerar como um irmão o primo mais amigo e mais próximo . Contudo, de vez em quando, ela percebe que o clã dos primos se fecha, de repente, e ela está de fora. E se dá conta de que não é o que ela imaginava.

Por exemplo, um menino frequenta a casa de um tio e é recebido absolutamente como um dos meninos da casa, com os quais está desde a manhã até a noite. Como é natural entre as crianças, ainda mais “homenzinhos”, elas brigam, falam mal umas das outras. O menino nota que alguns estão do seu lado, outros contra, e tem a impressão de que o fato de ser irmão não conta, mas sim o de ser primo, porque ele está dentro daquela família. Em certo momento, o menino percebe que alguma coisa fechou, não é para ele tomar conhecimento. Depois de muito tempo de silêncio, ele percebe – porque alguém deixa escapar em sua presença – que um primo ou uma prima estava doente, mas os da casa não contaram para os outros. Essa atitude mostra que ele é, em última análise, um forasteiro. E o menino pensa: “Mas eu estou só?! Como é isso? Por que não me contaram?”

Desejo de encontrar um amigo ideal

Tudo isso inaugura uma situação nova na qual os valores, os sistemas da época anterior se projetam numa clave diferente. Aparece no espírito do menino o gosto de conhecer ou de ter um amigo que, como ele, pense e sinta coisas que ele não conta para ninguém. Por exemplo, um com quem possa se abrir sobre o mundo maravilhoso dele, e que seria o amigo com quem ele poderia se relacionar; mas, sobretudo, ter essa afinidade de alma, que para ele, habituado à primeira fase em que todos os afetos eram indiscernidos, tudo era um mundo de afeto, de doçura, no qual ele se encontrava, que foi projetado para a segunda fase onde as heterogeneidades e as simpatias começam a se definir. Ele fica com a esperança de encontrar uma homogeneidade completa, maravilhosa, com pessoas com quem ele possa se abrir, e que sejam o prolongamento daquele mundo maravilhoso inicial.

Flávio Lourenço
Meninos brincando de soldados Academia de Belas Artes de São Fernando, Madri, Espanha

Vêm as saudades da primeira fase e o desejo de encontrar um amigo ideal. E assim como, na primeira infância, a criança imaginou um azul ou um vermelho ideal, imagina agora um amigo ideal, e caminha firme com a ideia de que esse amigo deva existir. E começa a procurar, entre aqueles com quem tem contato, se há um assim. E às vezes há aparências de que sim. Dá-se o primeiro contato, mas este produz, em geral ou sempre, um gelo ao cabo de um tempo maior ou menor. Seguem-se as decepções, e leva tempo para perceber que não há ninguém. Quando percebe, é uma crise axiológica a respeito do mundo.

Em determinado momento começa a aparecer o outro sexo. E a afinidade não é mais com um amigo, mas com a “Dulcineia” que ele procura nesta ou naquela menina; e é a mesma história: sucessivas decepções.

A apostasia da inocência

Então, o menino começa a fabricar para si dois mundos: um interno, que é a procura de alguma coisa a qual ele não tem, não está em torno dele, e que precisa alcançar; e o mundo externo no qual ele necessita viver bem, e com o qual ele alcança uma consonância – natural em alguns pontos, artificial em outros –, à força de procurar, de ser amável com os outros e de serem amáveis com ele. Ele aprendeu os truques da convivência. É mais ou menos como quem aprende a guiar automóvel. Sabe que precisa olhar no espelhinho, acionar a buzina, apertar com o pé ora a embreagem, ora o acelerador, ora o freio e, pedalando aquilo, ele anda pelas ruas. Assim há as regras de convívio, de educação, modos de ser tolerados e não tolerados. É uma verdadeira política. O indivíduo que não é bobo aprende essa política para poder viver sem amolação, mas constrói um mundo ideal dele, que não existe, ou capitula completamente.

Tenho a impressão de que a maior parte das pessoas pensa o seguinte: “A vida na qual eu estou entrando é muito atraente e agradável por vários lados. É uma vida de praias, de festas, de reuniõezinhas íntimas, de excursões com amigos, etc. Vou agarrar os meus lados que não vão com isso e comprimi-los, para gozar aquilo inteiramente.”

Dá-se, assim, a apostasia da inocência, à qual a pessoa renuncia inteiramente e entra naquilo como, por exemplo, a matéria-prima de um bolo entra numa fôrma. Ao cabo de algum tempo, tira-se da fôrma, aquilo tem uma forma que, se ninguém desmanchar, passará até o fim do mundo com aquele jeito.

Para compreender melhor a questão da imaginação de um mundo ideal, convém estabelecer uma distinção entre o romance histórico e o romance de ficção.

Romance de ficção e romance histórico

O romance de ficção, que se passa na época contemporânea ao próprio romance, fica a meio caminho entre a esquizofrenia e um ideal falso, em geral. Porque apresenta como normalmente existente um mundo que não existe, mas que o indivíduo queria que existisse. E depois faz o indivíduo viver naquele mundo inexistente, de tal maneira que quando o romance acaba ele fica com uma tristeza de se separar dos personagens, como se tivesse se despedido de uma cidade onde ele viveu para viajar a outro lugar. O encerrar um romance, às vezes, pode ser doloroso. O sujeito fica com saudades de uma pessoa, de outra, de uma terceira, que ele sabe que não existem, mas dá saudades.

E depois há o romance de ficção do futuro, que é uma outra questão.

O romance histórico leva o indivíduo, impregnado de algumas tradições, a ter na aparência a bonne fortune de viver num mundo que ele gostaria de ter conhecido, onde apreciaria ter vivido e como gostaria de ter sido.

Eu não acredito que haja muito menino que tenha lido os “Três mosqueteiros” sem vontade de ter sido mosqueteiro, imaginando-se como um deles e vivendo as cenas do mosqueteiro. E então vivendo num mundo imaginário, que ele sabe ser irrealizável, que não existe mais, mas que durante algum tempo o atrai prodigiosamente.

Mas quando ele percebe que esse mundo nunca mais voltará, e não tem mais nada de comum com o mundo no qual está, ele fecha aquele gênero de romance e entra no mundo real, e vai ser um homem. Sobretudo se ele entra nas técnicas, no comércio, na indústria ou nas finanças ele cancela isto completamente! E entra absolutamente no real. E julga que alimentar a sua cabeça com essas coisas vai depauperar a sua capacidade de produzir dinheiro, prestígio.

Aí se dá a “apostasia”, entre aspas, porque é uma imersão num mal pior, mas de fato já existe o mal de antes. O mal nasce quando o indivíduo, no limite entre a infância e a adolescência, percebe que tem um mundo de infância no qual sonhou coisas que não existem no mundo da adolescência. E que se levar esses sonhos para o mundo da adolescência, ele se torna inepto dentro desse mundo. Então ele tranca aqueles sonhos e entra no mundo da adolescência.

Itinerário de um menino fiel

No que consiste a inocência, então? Sonhar? Não. Há um desejo legítimo da transrealidade, da ordem perfeita das coisas, o qual uma pessoa que receba um bom ensino de Catecismo fica vendo que é o desejo do Céu. Essa tendência de alma é, portanto, uma coisa boa a ser preservada como um valor supremo.

Tendo considerado o roteiro de um menino infiel, como é o itinerário de um menino fiel?

Os primeiros, primeiríssimos dados, ele amou intensa e desinteressadamente mais do que a si próprio. No seguinte sentido. Se lhe oferecessem: “Você vai agora morrer, e irá para um mundo onde encontrará tudo isso que você quer”, ele aceitaria de bom grado. Não para gozar, mas para viver numa sociedade e ser um só com aquilo, para unir-se e encher-se daquilo.

E por causa disto, à medida que vai passando pelas várias situações descritas acima, ele pensa:

“Eu vejo que os mais velhos são um outro mundo. Percebo que os mais moços exercem sobre mim uma atração enorme. Isto está direito? Ou seja, debilita-se ou confirma-se essa visão dos vitrais adquirida por mim, a qual, em sua essência corresponde a uma verdade enorme que desejo servir?

“Noto haver, em parte, algo disso entre os meninos, mas que é muito mais forte no mundo dos adultos. E, portanto, preciso conservar em relação a este um respeito e uma atenção que não posso ter pelo mundo dos meninos com o qual, aliás, devo ter minhas reservas, pois esses ‘potrinhos’, dos quais eu seria um, e que estão entrando comigo na vida, têm atitudes esquisitas e quebram o vitral cujos cacos constituem a minha meta.”

Notei a consonância dela com a Religião verdadeira, católica, revelada, ensinada pela Igreja, e que a vida toda da Igreja vivia nela também.

Assim já se inicia uma diferenciação que é um comecinho de Contra-Revolução.

Como se forma o mecanismo da Contra-Revolução na alma fiel

Depois, na segunda etapa, mais uma vez a partir da inocência, analisa os outros: “Seria muito bom um outro? Mas cuidado, tem isso, aquilo…” Quando chega a vez da outra, nem se fala! Então: “Olha lá! Não te iludas!”

Em certo momento ele percebe que é organizado inteiro a partir de um ponto em que os outros não são organizados. E vem a ideia da Revolução e da Contra-Revolução.

Donde nasce a ideia da Revolução e da Contra-Revolução? Percebe-se que nas gerações anteriores esse embate era de pontos menos distantes, e a nossa geração é uma espécie de escoadouro de um rio, que se abre e as águas entram inteiras no oceano. Quer dizer, não sobra mais nada do que houve. E quem é contrarrevolucionário diz: “Não! Isto não pode ser! Há alguma coisa de eterno nisso: é a santa Fé católica apostólica romana, que deve reviver! Então preciso lutar, porque qualquer coisa que não seja isto não presta.”

Assim o mecanismo da Contra-Revolução vai se formando na alma fiel desde o começo.

Eu julgava – não sei se Dona Lucilia achava um pouco também – que o mundo dos adultos era muito bom, muito direito. E ela era uma pessoa do mundo dos adultos, que possuía muito nexo comigo, porque era minha mãe. Eu sentia uma afinidade pessoal enorme com ela, desde pequeno. Mas ela passou a ser uma pessoa inteiramente definida para mim quando comecei a ver a diferença das pessoas. E via mamãe como representando em alto grau tudo quanto estou dizendo aqui. E, sobretudo, quando percebi o lado religioso dela.

E notei a consonância dela, não com uma coisa que fosse uma mera apetência de minha alma, mas com a Religião verdadeira, católica, revelada, ensinada pela Igreja, e que a vida toda da Igreja vivia nela também. Daí um amor sólido, sério, de caráter sobrenatural, que foi até o fim da caminhada dela.

Assim nasce a Contra-Revolução.

(Extraído de conferência de 27/9/1989)