Fotos: Arquivo Revista

Dona Lucilia possuía uma grande seriedade de alma que se refletia até mesmo no trato com as crianças. Ao contar-lhes histórias, colocava sempre uma nota de seriedade, explicando o sentido moral e religioso daquela narração. Ainda quando a história não fosse religiosa, ela fazia uma crítica com muita paz, serenidade e objetividade, indicando como deveria ser aquele conto dentro de um contexto religioso.

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Dr. Plinio no cemitério da Consolação em 1981

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A presença de minha mãe dava sempre a impressão de uma tranquilidade cheia de doçura, de afabilidade que tornava essa presença muitíssimo atraente. Isso faz com que, ainda hoje, quando entro em casa, eu tenha a sensação de que o ambiente todo está embalsamado por aquela tranquilidade.

Carinho com um fundo de seriedade

Nota-se também esse ambiente de paz e tranquilidade nas pessoas que visitam a sepultura dela. Habitualmente, vou ao cemitério uma vez por semana, mas em horas variadas. Às vezes vou mais do que uma vez por semana. Não lembro que tenha acontecido eu encontrar o túmulo sem ninguém presente junto a ele. Nos dias em que há muito tempo livre – sábados, domingos, feriados nacionais – enche-se de pessoas ao seu redor.

Chama-me a atenção ver muitas pessoas rezarem, mas outras quietas, num estado de alma como quem está sorvendo aquela tranquilidade, abeberando-se dela no intuito de que algum tanto dessa serenidade seja colocado em sua alma. Assim, noto uma analogia ou uma identidade entre os efeitos que as pessoas sentem hoje, junto à sepultura dela, e os experimentados outrora por quem frequentava nossa casa quando ela estava viva. Essa identidade me comove.

Fotos: Arquivo Revista
Fotos: Arquivo Revista

Qual era o fundo dessa tranquilidade, dessa serenidade, dessa paz de Dona Lucilia? Antes de tudo, era uma grande seriedade de alma que se refletia até mesmo no trato com as crianças. Ela era muitíssimo carinhosa com minha irmã e comigo. Mas o carinho dela tinha sempre um fundo de seriedade.

Mamãe contava, por exemplo, histórias como a do Gato de Botas. Embora ela só tivesse dois filhos, na família éramos muitas crianças, pois havia muitos parentes, e formávamos uma roda enorme em torno dela, e todas as crianças sorviam as narrações com muito gosto.

Entretanto, apesar de fazer descrições inteiramente adaptadas para crianças, ela colocava sempre uma nota de seriedade, quer dizer, explicava no mais fundo o sentido moral e religioso daquela narração. Ainda quando a história não fosse religiosa, ela fazia uma crítica com muita paz, serenidade e objetividade, indicando como deveria ser aquele conto dentro de um contexto religioso. Aliás, a objetividade era uma das características do espírito dela. Ela queria ver todas as coisas como eram, sem se iludir sobre os lados bons, nem sobre os ruins.

Flávio Lourenço
Aparição do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque – Igreja de Santa Eulália, França

De outro lado, precisamente por causa dessa serenidade e objetividade, ela demonstrava uma grande resignação. Dona Lucilia era muito devota do Sagrado Coração de Jesus e de Nossa Senhora, e nessas devoções hauria uma conformidade com todos os aborrecimentos que a vida traz. Com efeito, a vida trouxe-lhe desgostos enormes, a respeito dos quais não é o momento de tratar, mas ela sofreu muito, inclusive do ponto de vista da saúde, pois foi sempre bastante doente.

Resignação haurida na devoção ao Sagrado Coração de Jesus

Tudo isso ela recebia com tal serenidade que esta se verificou até no momento de sua morte. Conforme conta o médico que a assistiu em seus últimos minutos, eram por volta das dez horas da manhã quando ela, percebendo ter chegado o momento de passar para a eternidade, fez um Nome do Padre muito grande e tranquilo e expirou. Era o fim próprio à vida que ela levara. Na serenidade, ela entregou sua alma a Deus com toda a doçura e suavidade. Era, por assim dizer, a essência do estado psicológico e moral dela.

Gabriel K.
Santíssimo Cristo da Expiração Sevilha, Espanha

Se quisermos gozar dessa paz, faremos muito bem se tivermos muita devoção ao Sagrado Coração de Jesus, lermos alguma coisa sobre essa devoção, a respeito de Santa Margarida Maria Alacoque, a quem o Sagrado Coração de Jesus Se manifestou, e tudo quanto Ele disse de Si mesmo a essa Santa, e que é uma escola de resignação para os homens.

Numa de suas aparições à Santa Margarida Maria, Ele mostrou seu Coração e afirmou: “Este é o Coração que amou tanto os homens e foi tão pouco amado por eles.” Mas Nosso Senhor Jesus Cristo fez essa lamentação com resignação divina da qual nos deu exemplo até na hora de morrer na Cruz, quando Ele disse: “Meu pai, em vossas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). E expirou!

Essa resignação haurida na devoção ao Sagrado Coração de Jesus traz consigo uma doçura extraordinária. Ainda mais quando é acompanhada pela devoção a Nossa Senhora, que seguiu todos os passos da vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o nascer da Igreja, e que era Ela mesma a Rainha da paz, da serenidade, da tranquilidade, mesmo nas situações mais dolorosas.

Flávio Lourenço
Pentecostes – Catedral de Santa María la Real, Pamplona, Espanha

Por exemplo, quando os Apóstolos abandonaram o Divino Mestre, em certo momento eles começaram a voltar. São João Evangelista foi o primeiro. Depois que Nosso Senhor Jesus Cristo foi sepultado, Ela dirigiu-Se para o Cenáculo e os Apóstolos foram, aos poucos, reunindo-se junto a Ela. Nós podemos imaginar toda a bondade e a doçura d’Ela recebendo-os, perdoando-os, estimulando-os, e sendo a Rainha da paz, mas também da resignação.

O homem moderno não é resignado. Quando quer algo, deseja aquilo ferozmente; um emprego, um passeio, um automóvel, enfim, seja o que for, ele quer de tal maneira que, se não obtiver aquilo, fica dilacerado na sua alma. A alma católica não é assim. Ela deseja, mas se não puder receber, se Deus dispôs que as coisas sejam de outra maneira, aceita na paz e continua a viver tranquilamente. Eu creio que com essas disposições nós podemos obter verdadeiramente a paz de alma.

Rezava até às três horas da madrugada

Dona Lucilia rezava muito. Como eu disse, ela era doente, e por essa razão, embora acordasse cedo, permanecia grande parte da manhã recostada, rezando. Só interrompia a oração por ocasião da visita de alguém da família, ou por uma criada que viesse pedir instruções a respeito da direção da casa. O resto do tempo ela passava em oração, recitando serenamente um eterno rosarinho, uma ladainha ao Sagrado Coração de Jesus, alguma outra prece assim. Chegada a hora do almoço, ela se levantava e tomava a refeição com meu pai, comigo e mais alguma pessoa da família que aparecesse. Quando todos saíamos, ela ficava em casa, ia para a sala de visitas onde se encontra uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, e retomava a oração. Depois ia cuidar dos seus deveres de dona de casa, dos quais, aliás, ela cuidava muito diligentemente. À noite, terminado o jantar, mamãe conversava com o meu pai, comigo e com quem houvesse em casa. A certa altura nos retirávamos e ela voltava a rezar ao Sagrado Coração de Jesus. Por vezes ela levava a oração até às duas, três horas da madrugada. Meu pai se levantava e a chamava para ir dormir; e ela com muita doçura fazia um sinal indicando que já iria, mas ainda demorava um pouco. Essa era a fonte dessa resignação doce, dessa tranquilidade em circunstâncias cruéis em que a vi sofrer.

Luis C.R. Abreu
Encontro do Menino Jesus entre os doutores – Santuário do Sagrado Coração de Jesus, São Paulo, Brasil

No tocante à educação dos filhos, minha irmã e eu passamos por todos os perigos espirituais pelos quais se passa na vida moderna. No que me diz respeito, eu notava que ela rezava muito, pois tinha grande medo de que eu me perdesse, porque no meu tempo era muito mais difícil um homem perseverar na Fé do que uma mulher.

Essas orações por minha perseverança ela as fazia, por exemplo, no fim da Missa. Há um altar na Igreja do Coração de Jesus, onde existe um grupo de esculturas representando Nosso Senhor Jesus Cristo discutindo com os doutores no Templo, com Nossa Senhora e São José que chegam para encontrá-Lo. Ela rezava muito lá; não me dizia, mas eu percebia que orava para eu ter bons argumentos, boa formação para resistir aos argumentos errados que quisessem me dar, e ela pedia ao Menino Jesus um pouquinho da Sabedoria infinita de que Ele deu provas naquela ocasião, para resistir aos inimigos da Fé.

Muito vigilante

Ela era uma mãe muito vigilante, mas de um modo curioso. Depois que me tornei adulto e dei provas de minha fidelidade, ela possuía muita confiança em mim, mas muita! Entretanto, ao mesmo tempo tinha uma vigilância da qual um sintoma interessante é este:

Arquivo Revista
Hall de entrada do apartamento de Dr. Plinio

Houve uma ocasião em que tive de fazer uma viagem à Europa. No dia de meu retorno, já tendo calculado a hora em que eu deveria chegar, ela ficou esperando sentada no hall de entrada, em frente à porta do apartamento, toda arranjada, tendo deixado preparada uma mesa com doces e outras guloseimas para eu comer. Quando entrei, fui depressa beijá-la. Depois das primeiras carícias, ela se afastou um pouco de mim e me olhou com toda a atenção. Não percebi o que ela estava fazendo, olhei para ela e deixei-a olhar, sorrindo. Ela teve esse comentário: “Graças a Deus você é o mesmo, não mudou em nada!”

Quer dizer, a viagem à Europa, os prazeres do turismo, etc., podem marcar desfavoravelmente a alma de uma pessoa. A grande preocupação dela não era saber se eu estava com a fisionomia saudável, e sim se a alma estava saudável. Ela me fitou com um olhar muito tranquilo, afetuoso, mas que ia até o fundo de minha alma.

Nisto consistia a seriedade dela, cuja fonte estava no Sagrado Coração de Jesus: Fé, objetividade e resignação.

(Extraído de conferência de 7/8/1990)