Flavio Lourenço
A Virgem com o Menino - Igreja de Santa Maria, Oviedo, Espanha

A família espiritual dos “moderados” é responsável pelo avanço da Revolução. Em matéria religiosa, de “moderação” em “moderação”, vai-se chegando ao ateísmo. O mesmo se passa no campo moral: as modas atualmente consideradas “moderadas” eram as imorais de outrora, e as imorais de hoje serão as “moderadas” de amanhã.

Dentre as objeções que poderiam ser feitas à visão da História por mim apresentada em “Revolução e Contra-Revolução”, as mais atuais – senão as mais inteligentes – poderiam ser expostas da seguinte maneira:

Divulgação (CC3.0)
“Sacrifício à Internacional”. Cartaz de propaganda antibolchevique da Rússia Branca, produzido durante a Guerra Civil Russa.

Os crimes da Revolução teriam sido causados pelas reações da Contra-Revolução

É certo, poderia alguém dizer, que da Idade Média para nossos dias o mundo vem seguindo a linha histórica apontada nessa obra, mas o autor viu as coisas por seu pior ângulo, e por isso apresentou o curso dos fatos de modo profundamente pessimista.

Desde o século XIII ou XIV, vem se acentuando um progresso no que toca à dignificação da pessoa humana. Em consequência, todas as transformações históricas deixam ver uma crescente tendência de cada homem à independência e à igualdade. A própria sociedade civil, movida pelos mesmos impulsos sadios e progressistas que se têm feito sentir nos indivíduos, manifesta, também ela, uma propensão à independência em relação à sua velha e, aliás, benfazeja tutora de outros tempos, isto é, a Igreja. Daí um caminhar incessante do homem e da sociedade para uma cultura, uma ordem social e política e uma estrutura econômica marcadas por anseios de liberdade, igualdade e autonomia do temporal. É certo que a progressiva satisfação dessa tendência fundamentalmente sadia deu lugar a que, ao lado dela, e com ela contribuindo para impelir o curso da evolução histórica, se manifestassem também o orgulho, a sensualidade e o espírito de dúvida. E por vezes essas manifestações foram brutais. Mas aí se trata apenas dos efeitos de paixões desregradas que em nada se confundem com as legítimas e elevadas aspirações do homem para estágios de civilização mais altos e mais dignos.

Jacques-Louis David (CC3.0)
Juramento do Jogo da Péla, 20 de junho de 1789 – Museu Nacional de Versailles

Os crimes da Revolução Francesa, por exemplo, não são fruto dos nobres anelos de liberdade do povo francês. Eles nasceram de instintos torpes que todos os homens têm em todos os tempos, e que explodem em todas as grandes convulsões com deplorável violência. No caso da Revolução Francesa e de movimentos congêneres, essas explosões passionais parecem causadas, não por aquilo que o autor chama Revolução, mas antes pelo que ele chama Contra-Revolução. São as reações intempestivas, cegas, brutais desta última que geram os excessos em que o autor vê frutos sintomáticos da primeira.

Isto explica os erros doutrinários de toda espécie que parecem constituir a alma da assim chamada Revolução: ateísmo, deísmo, laicismo, anticlericalismo, divórcio, amor livre, guerra às elites, negação da propriedade privada, etc. São excessos doutrinários simétricos com os excessos de outras ordens, que se encontram ao longo da marcha vitoriosa da igualdade e da liberdade. Constituem extravasamentos esporádicos de um rito que nem por isto deve ser impedido de seguir sempre para a frente. Pelo contrário, o único modo de reduzir ao mínimo as inundações por ele produzidas consiste em lhe deixar livre curso.

Seria difícil levar mais longe a candura. De tudo isto se segue que nada é mais legítimo do que a “Revolução”, e nada mais desastroso do que a “Contra-Revolução”.

O mundo está desconjuntado em todas as articulações do corpo social

Toda esta argumentação peca pela base. Ela parece supor que, lado a lado, duas grandes famílias espirituais impeliram a humanidade nas vias que ela vem seguindo. Uma é formada de homens profundamente afeiçoados à civilização, à família, à propriedade privada e até à Igreja, mas desejosos de reivindicar para si uma parcela de legítima importância. Esses homens foram alheios a todos os excessos, têm um programa sumamente moderado e nutrem horror à outra família espiritual. Esta se compõe de quase toda a borra da humanidade (“quase toda”, dizemos, pois não figuram nela os negregados contrarrevolucionários), quer toda forma de excessos e é responsável por todos os crimes. A primeira família é muito mais influente e forte do que a segunda. Ela faz o progresso que há cinco ou seis séculos vem caminhando incessantemente. A outra não faz senão esporádicos “quebra-quebras” que nenhuma relação profunda têm com o curso dos acontecimentos.

Ora, se assim é, não se compreende porque o mundo, em vez de ser regido pela harmonia, pela moderação e pela ordem, é presa de terrível confusão, está desconjuntado em todas as articulações do corpo social, vai apresentando sintomas crescentes de desequilíbrio e degradação moral, e está afundando num caos diante do qual tremem todos os homens sensatos.

Esta espantosa realidade, da qual brotam todas as outras realidades espantosas de nossos dias, por quem foi produzida? Pela família espiritual dos moderados? Então, no que consiste esta moderação? Pelos degradados? Então, no que consiste a força dos moderados? E como afirmar que foi a moderação que nos conduziu a este excesso? Quem não vê o que há de ilusório em tal visão da História?

Trata-se não de uma crise ligeira, mas de uma tragédia

Mas, objetarão outros, não se trata disto. Um adolescente pode ser por vezes desatencioso e até grosseiro com seus pais. É a expressão excessiva de um legítimo desejo de independência. Na idade madura, conquistada a liberdade, o filho se voltará com saudades e gratidão para seus velhos pais. Tudo terá entrado novamente na ordem. Os excessos atuais da Revolução constituem fenômenos de adolescência. Consumada a evolução histórica, as coisas voltarão a suas posições normais e a sociedade, já evoluída, se reconciliará com a Igreja.

Pierre-Gabriel Berthault (CC3.0)
Proclamação da Constituição francesa de 1791

É outro modo falso de interpretar os fatos. Sem entrarmos na análise desta concepção, devemos dizer que a figura não condiz com a realidade. Se a Igreja é a mãe, o Ocidente o filho, e a Revolução é a crise, cumpre reconhecer que se trata, não de uma crise ligeira, de simples escaramuças domésticas, mas de uma tragédia, pois o Ocidente, por formas ora brandas ora brutais, despojou a Igreja de todas as prerrogativas que lhe competem como Rainha e Mãe, dando-lhe por muito favor a liberdade que só aos facínoras se recusa. Ademais, nos campos de concentração do nazismo, e por detrás da cortina de ferro, ele a espancou e feriu de mil modos. Quando entre mãe e filho as relações estão nestes termos, é o caso de prever como mais provável, segundo o curso comum das coisas, que tudo volte por si à rotina ou que as desavenças caminhem para as últimas catástrofes?

A família espiritual dos “moderados” fez uma imensa e sistemática Revolução

A ideia de tomar entre os excessos e os crimes da Revolução, de um lado, e a Contra-Revolução, do outro, uma linha média moderada, não é de nossos dias. Ela nasceu, por assim dizer, com a própria Revolução. Na Época Contemporânea, por exemplo, esta fórmula de falso equilíbrio seduziu numerosíssimos elementos em cada uma das gerações que se sucederam desde 1789 para cá.

Na esfera política, entre os partidários do Ancien Régime e os jacobinos, a corrente “moderada” julgou por muito tempo que o ponto de equilíbrio certo era a monarquia constitucional. Mais tarde, quase desaparecidos os partidários do Ancien Régime, o papel de “moderados” tocou aos republicanos conservadores, meio-termo “sábio”, “prudente”, “sensato” entre dois excessos contrários: a monarquia e o socialismo. Em muitos países as coisas já evoluíram e a “moderação” consiste em defender o socialismo contra a república burguesa, à direita, e, à esquerda, o comunismo.

Façamos a análise desse curioso processo. Essa família espiritual de “moderados”, pretensamente equidistante de ambos os extremos, outra coisa não fez senão uma imensa e sistemática Revolução, com interstícios aparentes e recuos estratégicos que se perdem como simples acidentes na imensidade da trajetória percorrida. Cada geração de “moderados” criou, desta ou daquela maneira, uma outra geração que lhe sucederia na mesma adoração da “equidistância” e do “equilíbrio”. Mas cada geração que vinha dava um passo à frente, tomando precisamente a posição que a anterior alcunhava de exagerada. Os “moderados” monárquicos e constitucionais franceses, por exemplo, reputavam exagerada a República. Ora, das situações plasmadas e dominadas por eles se originaram os “moderados” que, em nome da moderação, fizeram a República.

Assim, a “moderação” caminhou sempre de um excesso para outro. Como ver nela, então, outra coisa senão a Revolução?

E se a marcha da “moderação” nos leva sempre alguns degraus mais abaixo na espiral revolucionária, como supor que no fim da caminhada não estejamos no mais fundo do abismo da Revolução?

As “moderadas” e o avanço da imoralidade dos trajes

Já que a Revolução é um imenso todo, e não um processo meramente político, também em outros campos poderíamos notar o mesmo papel da “moderação”.

Adélaïde Labille-Guiard (CC3.0)
Traje do século XVIII – Maria Adelaide de França, quarta filha do Rei Luís XV

Em matéria religiosa, por exemplo, quantas vezes um cristianismo interconfessional e vago tem parecido um meio-termo judicioso entre um catolicismo exagerado e um deísmo audacioso? E, depois, quantas vezes o papel de meio-termo passou desse tal ou qual cristianismo para o deísmo, “ponto de equilíbrio” simpático entre as “crendices” cristãs e os excessos do ateísmo? Assim, de “ponto de equilíbrio” em “ponto de equilíbrio”, de “moderação” em “moderação”, onde se vai chegando, onde já chegaram tantos e tantos, senão ao ateísmo, que é o sumo desequilíbrio, o sumo exagero, a mais aberrante imoderação?

E no terreno da imoralidade dos trajes, quanta observação análoga haveria que fazer! Em cada época há moças de costumes recatados, outras “ousadas”, e por fim uma imensa maioria que está no meio-termo. Ora, em via de regra, as “moderadas” de hoje são idênticas às exageradas da véspera. E as exageradas de hoje são idênticas às “moderadas” de amanhã. Como, pois, confiar nessa “moderação” como força capaz de evitar o triunfo dos piores erros, dos excessos mais detestáveis?

Mas, perguntar-se-á, o autor chega ao ponto de negar que, acidentalmente pelo menos, a Revolução produziu altas vantagens? Ela não teve, para exemplificar, o grande mérito de acentuar nos operários um sentido mais nítido de sua dignidade? E não é certo que a expressão “promoção do operariado” tem um significado profundamente simpático a toda alma católica?

Certos processos de degradação moral podem trazer, acidentalmente, a correção de alguns defeitos. Assim, uma jovem pura, educada num ambiente muito fechado e por isto mesmo tímida, pode perder-se e, ao mesmo tempo que nela desaparece a pureza, é possível que desapareça também a timidez. Será o caso de se dizer que sua degradação teve a vantagem de a livrar da timidez? Absolutamente falando, haveria um fundo de verdade nesta asserção. Mas, já que há tantos meios normais de uma pessoa se corrigir da timidez, a afirmação tem qualquer coisa de desagradável a ouvidos dotados de fina percepção.

A promoção do operariado consiste em que ele se compenetre da dignidade e grandeza cristã de sua condição

A Revolução concorreu para que todos os homens – e não apenas os operários – tivessem uma noção plena de seus direitos. Bom teria sido que ela também lhes tivesse falado de seus deveres. De qualquer forma, o meio normal e adequado para que os homens chegassem ao pleno e harmônico conhecimento de seus direitos não teria sido a Revolução, mas o progresso nas virtudes cristãs, isto é, precisamente o contrário da Revolução. É este o fundamento de toda promoção, inclusive do operariado.

No que consiste essa promoção? Não em que o trabalhador, intoxicado pela Revolução, tenha vergonha de sua condição e queira ser burguês. Nem em que deseje estabelecer a ditadura do proletariado para calcar aos pés as classes sociais mais altas. A promoção do operário consiste em que ele se compenetre sempre mais da dignidade natural e da grandeza cristã de sua condição, e procure marcar com esta convicção todo o seu porte, suas maneiras, seu traje, sua residência, etc.; e que ame a hierarquia social na qual lhe cabe um degrau modesto, mas digno. Neste sentido, estavam muito mais a caminho de uma promoção os operários rurais de outrora, com seus belos trajes típicos, suas músicas e suas danças populares, suas casas e seus móveis de uma pitoresca e confortável rusticidade, ou os membros de uma corporação antiga, do que tantos pobres trabalhadores de hoje, vítimas da Revolução, peças sem iniciativa nem vida de um grande mecanismo econômico, moléculas inexpressivas de uma imensa massa, e não mais células vivas de um verdadeiro povo.

Flávio Lourenço
Corte do feno – Museu Palazzo Rosso, Gênova, Itália

A promoção operária comporta, é certo, também uma melhoria de condições materiais de vida. Mas, ainda aí, cumpre lembrar que se isto supõe o salário justo, suficiente para o trabalhador e sua família, supõe também o hábito e os meios de fazer economia, de formar um patrimônio próprio e de ter pelo menos casa própria. O operário inteiramente sem pecúlio, dependente em tudo e para tudo do sindicato e de organismos congêneres, é uma vítima da Revolução e não é, de nenhum modo, um operário “promovido” segundo as normas da Contra-Revolução.

Sobretudo, é preciso lembrar que a promoção de uma classe é na sociedade como o crescimento de um membro no corpo. Deve ser um capítulo necessário e precioso de um progresso concomitante das diversas classes sociais, e nunca um marco para o nivelamento de todas. Como vemos, a Contra-Revolução favorece a promoção do operariado. Mas como essa promoção difere das promessas subversivas e enganosas da Revolução!

Há abusos por excesso e por omissão

Resposta análoga poderia ser dada a quem pretendesse que o processo revolucionário, limitando o pátrio poder, a autoridade marital, as precauções morais dos costumes de outrora, etc., prestou insigne serviço à humanidade. É como pretender que se prestou serviço a alguém cortando-lhe um braço, porque assim nunca mais machucará os dedos. É possível que os abusos do pátrio poder tenham diminuído em número, mas o abuso da independência dos filhos não terá gerado males mil vezes piores?

A própria expressão “abuso” precisaria, aliás, ser matizada. Há abusos por excesso. Digamos que diminuíram. E os abusos por omissão do pátrio poder: não aumentaram eles prodigiosamente sob o signo do liberalismo? Quem poderá jamais dizer que cúmulo de desastres morais se tem originado de tal omissão?

A Civilização Cristã poderia tomar por lema as palavras ouvidas pelos pastores na noite em que nasceu o Salvador: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). A paz é, segundo Santo Agostinho, a tranquilidade da ordem1. Da ordem de Cristo, bem entendido, no Reino de Cristo. Para a realização desse anelo não pode ser de qualquer valia a Revolução, pois as ações inspiradas por esta, mesmo quando vistas de um ângulo indevidamente otimista, não passam de corretivos desproporcionados e selvagens a abusos que inevitavelmente existem em toda ordem cristã.

Conta-se de um oculista a quem um cliente se lamentava exageradamente do incômodo que lhe causava o uso de óculos. Feita uma operação, por imperícia do médico, o cliente ficou cego. Quando este voltou a si, reclamou indignado contra o desastre que lhe sucedera. Confundindo-se em desculpas, o oculista acrescentou, à guisa de consolação:

— Pelo menos, o senhor não terá mais que usar óculos…

É no que nos fazem pensar os que, para justificar a Revolução, alegam no seu ativo vantagens deste porte. A civilização está em frangalhos, o mundo ameaça ruir nesta era em que sopra livremente e em todos os sentidos o tufão revolucionário. Entretanto, dizem eles: “Cantemos loas a este tufão porque eliminou alguns abusos do Ancien Régime.”

(Extraído, com adaptações, de Catolicismo n. 101, maio de 1959)

1) Cf. De Civitate Dei, XIX, cap. 13.