Deus dispôs na Criação uma mútua dependência entre os seres, a qual se evidencia, sobretudo, nas criaturas racionais: Anjos e homens. Isso faz com que a vida em sociedade constitua um importante instrumento para a salvação ou perdição das almas.
O tema a tratar é relativo à alocução de Pio XII ao Segundo Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos1. Parece-me que muita coisa de nosso cotidiano, de nossa ação pessoal e de nosso labor apostólico tomará uma clareza maior se analisarmos esse documento.
Uma ideia errada sobre a responsabilidade dos leigos no apostolado
Com efeito, nosso Movimento é constituído, em sua grande maioria, por pessoas pertencentes à categoria de leigos consagrados inteiramente ao apostolado. Isto indica uma orientação e um empenho muito profundos no que diz respeito ao apostolado dos leigos, mas se mistura também com alguns estados de espírito inconscientes e pontos de vista equivocados, por não conhecermos o fundamento teológico dessa nossa dedicação.
Permanecemos, por isso, ao menos subconscientemente, na velha ideia de que o padre se obrigou a trabalhar a vida inteira pela Igreja e renunciou às vantagens deste mundo; e que para nós, leigos, porque não nos consagramos à Igreja de modo especial, a vida é nossa. Deus quer que os padres façam tudo por Ele e que os leigos, ao contrário, gozem sua vida o quanto quiserem e puderem, contanto que não O ofendam. Entre a posição do padre e a do leigo haveria uma diferença fundamental: o padre dá tudo, o leigo simplesmente não ofende a Deus.
Se aceitamos esse pressuposto, somos levados a concluir que temos um direito muito estrito de cuidar acima de tudo dos nossos interesses privados, nossa carreira profissional, nosso lazer, enfim, levar a vida como bem entendermos, contanto que não ofendamos a Deus.
Este ponto de vista tem outra consequência, que poderia se traduzir no seguinte raciocínio: “Eu sou muito bom, pois Deus exige de mim muito pouco e dou muito. Ele é um mendigo a quem dou esmolas de rei. Queria saber se Ele nota bem isso… Ademais, não tenho obrigação de fazer isso. É por tê-Lo visto em aperto e, afinal, por ser Ele uma “boa pessoa”, que resolvi sair dos meus cômodos afazeres para auxiliá-Lo um pouco. Mas, na realidade, faço porque quero, e por isso mesmo Deus me deve ser muito grato. Dou quanto quiser, sem remorsos de consciência.”
A “consecratio mundi” e o apostolado leigo
Tudo quanto acaba de ser dito constitui um conjunto de meias verdades que se misturam com alguns erros muito graves, os quais encontram seu desmentido no documento acima mencionado. Consideremos a temática tratada pelo Santo Padre.
Ele fala especificamente sobre o apostolado dos leigos e desenvolve, entre outros argumentos, o de que a consecratio mundi é uma das razões pelas quais os leigos devem fazer apostolado.
O que vem a ser essa sacralização do mundo a que se refere o Sumo Pontífice? Um grande número de teólogos medievais usou essa expressão. Com a decadência da Escolástica, ela se tornou menos frequente e, ao menos no linguajar comum da Teologia contemporânea, o termo é quase desconhecido. Pio XII deu-lhe vida nova empregando-o nessa alocução. Essencialmente, a consecratio mundi explica-se da seguinte maneira.
A ordem humana se compõe de duas sociedades: uma sobrenatural, espiritual, que é a Igreja Católica; outra temporal, constituída pelas nações com toda a sua organização relativa à vida social.
A respeito da finalidade dessas duas sociedades, encontramos em muitos tratados de Direito Natural uma noção que, sem ser errada, é, entretanto, perigosamente parcial: a Igreja trabalha para a salvação das almas, enquanto à sociedade temporal compete a manutenção dos meios materiais para a sustentação da vida natural.
Segundo a doutrina da consecratio mundi, a vida nesta Terra foi dada aos homens para alcançarem o Céu. Por conseguinte, todas as coisas terrenas devem nos servir de meio para nos elevarmos até Deus. Se considero, por exemplo, uma borboleta ou ouço uma música, devo notar nelas uma semelhança criada com o Ser incriado.
Sendo Deus a Perfeição, a Ordem, a Beleza, ao contemplar tudo quanto seja retamente ordenado, perfeito e belo, a minha alma deve amar essa perfeição, ordem e beleza, de maneira a compreender que sou chamado a adorar, no Céu e por toda a eternidade, Aquele que, de modo inexprimível, infinito, sobrenatural, é o modelo divino de todas essas perfeições e belezas. Por isso, não posso manter-me indiferente aos seres que me circundam.
Se passa por mim, por exemplo, um sacerdote encanecido no trabalho apostólico, com seu breviário embaixo do braço, dando-me a impressão do acúmulo de bênçãos sobre bênçãos durante décadas de uma vida consagrada a Deus, devo me lembrar de que ali não está somente um ancião vestido de preto, mas que as virtudes irradiadas por ele têm como modelo o próprio Deus. De maneira que, compreendendo e amando todos os valores ali representados, não amo apenas o sacerdote, mas o próprio Deus, de Quem ele é uma imagem e semelhança.
O mesmo princípio se aplica quando considero uma religiosa que ensina o Catecismo a crianças. Por vezes, trata-se de uma senhora de grandes dons e inteligência, que abandonou uma elevada posição social e emprega seu tempo em formar crianças com as quais ela nada tem a ver. Não tenho o direito de passar por ela sem pensar no cúmulo de qualidades morais que isso representa, pois aquilo foi instituído por Deus para meu bem e posto no meu caminho pela Providência para edificação de minha alma. E eu devo pensar que ali está uma alta beleza de alma.
As obras humanas completam a Criação
Mas isto vai mais longe. Entro num palacete e contemplo dimensões, formas e jogos de cores bonitos; devo considerar que as proporções desse edifício foram idealizadas por um arquiteto, mas foi Deus quem deu aos homens a capacidade de fazer esses cálculos e criou a matéria passível de ser assim modelada. O próprio Criador concedeu ao homem a possibilidade de completar suas obras, de maneira a tornar perfeita a beleza do universo.
Amando as obras retas elaboradas pelo ser humano, amo algo feito por Deus indiretamente. Dante Alighieri diz que as obras dos homens são netas de Deus porque, sendo Ele o Pai dos homens, é “Avô” daquilo de bom que produzimos.
Realmente, em alguns aspectos, a Criação se assemelha aos desenhos que são dados para as crianças colorirem. Deus deixou muita coisa incompleta no universo, traçando apenas o esboço e conferindo-nos capacidade para completar sua obra.
Imaginem um lindo panorama diante do qual passa um arquiteto de talento e percebe que aquela paisagem poderia ser completada por uma bela torre, um imponente castelo ou uma bonita capela. Ele interpreta o panorama e coloca ali o tipo de edifício necessário para que a aquela beleza seja perfeita. Com isso, esse homem completou a obra da Criação porque Deus assim o quis.
A sociedade temporal existe para levar as pessoas à virtude
Vistas as coisas por esse prisma, torna-se claro que quanto mais uma civilização tem aspectos de reta beleza e ordenação, tanto mais leva as pessoas à prática da virtude. Compreendemos, assim, como não se pode afirmar de nenhum modo que a sociedade temporal simplesmente prepara as condições materiais para as pessoas não morrerem de fome, ignorando o fato de que ela é feita para conduzir à virtude.
E entendemos melhor a grande importância do convívio dentro da sociedade temporal para a salvação das almas, se consideramos que Deus dispôs suas criaturas de maneira a haver mútua ajuda e dependência entre seres maiores e menores.
Vê-se isto com os espíritos angélicos. São eles escalonados numa hierarquia e Deus quer que os Anjos dos coros superiores governem e ajudem os inferiores, e estes sirvam e auxiliem os superiores. Assim, a Providência Divina faz com que sua obra se complete.
O mesmo se dá com o homem, a quem Deus criou sociável. Eu creio ser muito raro que uma alma vá ao Céu ou ao Inferno sem levar consigo muitas outras, sobretudo determinadas pessoas a quem Deus dá um particular poder de influência. No convívio diário notamos como certas almas são dotadas de uma capacidade especial para arrastar outras. Alguém faz uso da palavra, ninguém presta atenção, mesmo quando diz coisas muito sensatas; outro fala uma coisa que vale a décima parte do que disse o anterior, e repercute pela sala inteira, todo mundo comenta. Ou, então, um conta um caso, todos acham sem graça; outro narra o mesmo caso, acham engraçadíssimo. Isso corresponde a certos dons imponderáveis que fazem com que toda palavra da pessoa tenha um alcance verdadeiramente extraordinário.
Também o ambiente criado pelo conjunto das pessoas exerce sobre cada indivíduo uma influência muito grande, contra a qual ele poderá reagir com êxito maior ou menor, mas sempre a receberá. Por essa razão o ambiente que nos rodeia pesa muito sobre a nossa salvação, e esse ambiente é a sociedade temporal.
Por vezes, a influência da sociedade temporal sobre a ação da Igreja é menosprezada
Nossa família, o local de trabalho, a escola onde estudamos constituem esse ambiente que nos rodeia e no qual a todo momento nossa batalha está sendo travada, com o concurso de fatores que nos levam para o bem e outros para o mal.
O peso disto resulta tão grande que, às vezes, tenho pena de certos sacerdotes que não compreendem a realidade como ela é. Fico pasmo ao ouvir um sacerdote dizer:
— Tal cidade é imoral porque o cinema está fazendo muito mal lá. Mas explica-se: eles não têm padre, a matriz está fechada. Mas logo que o Sr. Bispo mandar um padre para lá, a vida sobrenatural ficará mais intensa e tudo se resolverá.
Eu poderia dizer a esse padre: “Se basta uma matriz para fechar um cinema, como se explica que exista um cinema em frente da matriz? O padre celebra a Missa, administra os Sacramentos e já está tudo bem? Ora, os padres vivem fazendo isto e as coisas correm como estão correndo.”
Outras vezes ouço comentários assim de padres ou de católicos leigos:
— Tal paróquia é florescentíssima: vinte associações religiosas, duas mil pessoas inscritas, tem obras sociais muito desenvolvidas…
Na porta da igreja há um aviso: “Pede-se às senhoras que forem receber a Sagrada Comunhão que não o façam com trajes imodestos.”
Quer dizer, quando não é por reverência à Sagrada Comunhão, não tem importância.
Pergunto por que não mudar a frase para: “As senhoras que usam trajes imodestos não compareçam à Sagrada Comunhão.” Respondem que não pode ser, porque hoje em dia ninguém aceitaria isso. Portanto, é preciso condescender.
Ora, a paróquia é florescente, mas não se pode exigir das paroquianas que cumpram os Mandamentos! Então no que consiste uma paróquia florescente?
A dois passos, um templo protestante; quase em frente, um lugar de culto espírita; mais adiante, uma igreja cismática e uma mesquita maometana. Conversa-se com o pároco:
— Como vai a paróquia?
— Muito bem. Uma de nossas associações comprou tal aparelho, temos mimeógrafo, um gabinete dentário moderníssimo…
Entretanto, sabemos o mal que o cinema vai fazer e, depois dele, a dança. Também é conhecido o mal causado pelo baile. Não acredito na sinceridade de uma pessoa que me diga que ir ao baile não faz mal. Todo rapaz procura para dançar uma moça pela qual tenha atração, pois do contrário não procuraria. Ora, qual o homem, normalmente constituído, que pode dançar durante quinze minutos com uma pessoa pela qual tenha atração, sem que nada aconteça? Isto é uma mentira, uma hipocrisia.
Então, a pessoa ouve pela manhã, na igreja, um sermão com uma porção de conselhos, mas entre os quais se omite: “Não vá dançar”. Ela vai ao baile e ali faz exatamente o contrário do que ouviu no sermão. Entretanto, o padre e os membros das associações paroquiais acham que não há nada de mais. Porque, como foi feito aquilo que é próprio à vida da Igreja, o resto não importa. Eles não se lembram exatamente que a sociedade temporal tem um peso imenso para a salvação das almas.
Se quisermos que as almas se salvem, deve-se agir dentro da sociedade temporal, fazendo com que ela seja reta, conforme à Lei de Deus e Lhe dê glória. Uma sociedade temporal assim torna-se um meio poderoso de santificação. Sem dúvida um meio instrumental, pois o meio próprio é a Igreja, mas um meio sem o qual o homem não se salva, porque se trata da ordem que Deus pôs no mundo.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 21/1/1958)
1) Realizado em 5 de outubro de 1957.