Flavio Lourenço; Arquivo Revista
Castelo de Peñafiel, Espanha

Discreta ao exprimir em palavras seus sentimentos mais íntimos, Dona Lucilia possuía, entretanto, uma comunicativa ação de presença que envolvia de afeto aqueles que dela se aproximavam e impregnava até mesmo os objetos de seu uso.

Eu noto uma certa dificuldade – muito explicável – da parte dos mais novos em se darem conta de como uma pessoa tão transbordante de sentimentos como Dona Lucilia fosse tão reservada ao exprimir estes sentimentos em palavras.

Walter Stoneman (CC3.0)
Winston Churchill em 1941

Então eu queria dar uma explicação a esse respeito.

Divulgação (CC3.0)
Paul von Hindenburg e Erich Ludendorff em 1916

Mudança na mentalidade humana: do polemismo à espontaneidade

Biblioteca Nacional da França (CC3.0)
Georges Clemenceau em 1908

Até meados do século XX, gostava-se de polemizar e, portanto, as pessoas admiravam quem fosse lutador. Por causa disso, era bonito e próprio ao homem ter controle de si mesmo, dar-se conta de tudo quanto pensava, policiar o que acontecia no seu exterior. Sob alguns aspectos, estas características estavam para o conjunto do homem como as torres estão para uma fortaleza medieval. Elas seriam as torres da mentalidade humana.

Churchill1 foi dos últimos homens desse gênero. Clemenceau2, Hindenburg3 e Ludendorff4 certamente eram assim.

Entretanto, a era do polemismo cedeu lugar à era kennediana5. Nessa transição, passou a ser bonito algo diferente do autocontrole: a espontaneidade. O homem já não se dá conta do que pensa, mas deixa correr o marfim, cogitando no que lhe vier à cabeça. Também não se importa muito com o que diz.

No fundo, trata-se da negação do dogma do pecado original: todos os homens são bons e não precisam se controlar. Não precisam controlar seus pensamentos e, portanto, não precisam controlar suas palavras, porque os outros sempre as receberão bem. A espontaneidade tornou-se o modo de ser habitual das pessoas.

Sentimentos inefáveis, transmitidos pela ação de presença

Isso é o contrário daquilo ao que fui habituado. Em minha mocidade, e a fortiori no tempo de Dona Lucilia, impressionava num homem o fato de ele ter o domínio de si mesmo, notar-se um espaço de respeito e reverência entre o que ele pensava e o que consentia em pensar, e isto e o que ele dizia. Suas palavras saíam amoldadas a cada um, para produzir o efeito desejado.

De uma pessoa assim se dizia: “Esse é um homem!” O espontâneo, ao contrário, tornava-se um desacreditado: “Esse é espontâneo? Então não é civilizado!”

Daí decorre que muito frequentemente a pessoa era levada a guardar os seus sentimentos mais íntimos e mais delicados, julgando-os inefáveis, superiores a qualquer expressão. E se sabia fazê-los sentir não por meio das palavras, mas pela presença.

As senhoras e os homens antigos tinham muita presença e, pela presença, diziam uma porção de coisas que são delicadas demais para se transmitir verbalmente.

Para usar uma expressão que eu ouvi de um francês, certas confidências muito íntimas duas pessoas cochicham uma para outra, mesmo quando estão a sós. Quer dizer, sentimentos muito elevados, muito internos, mais se exprimem pela presença, pela atitude, pelo gesto, do que pela palavra.

Silêncio cheio de carinho e atenção

Ora, se há uma pessoa que no meu modo de sentir tinha presença, essa pessoa era Dona Lucilia. E uma presença que transborda até mesmo das molduras dos quadros dela. Quem tratou com mamãe sabe o quanto ela manifestava de consideração, de gentileza, de atenção, de estima para com alguém, sem dizer uma dessas palavras de amabilidade que se costumam usar hoje.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1981

Um membro do nosso movimento contou-me em certa ocasião as impressões que teve quando tratou com ela no período de minha doença,6 como minha mãe era comunicativa sem precisar dizer, por exemplo: “Considero-o muito”, “Tenho-lhe muita simpatia”. Nem ficaria bem se ela dissesse, pois seria redundante. Já estava dito.

É como eu a sentia.

O shake hands caloroso de nossos dias não cabia com ela. A comparação soa até absurda, de tal maneira está distante do modo de ser dela. Sem estrangular os dedos de ninguém, ao dar a mão Dona Lucilia já dizia uma porção de coisas.

Isso explica por que, no convívio com ela, eu me sentia – não digo apesar dos silêncios dela, mas dentro dos silêncios dela, na ausência de elogios – acariciado de ponta a ponta, desde o primeiro momento de contato até o último. E ainda quando saía de casa sentia-me acariciado, tanto quanto cabe de uma mãe para com um filho. Mas sem que ela tivesse de dizer nada.

Fico com a impressão de que o ter de dizer é algo dos tempos mais recentes, corresponde à era kennediana. As coisas que se dizem não são as mais importantes. O que se é, o que se comunica, é de longe o mais importante.

Xales que guardam o perfume de uma presença

Os que convivem comigo viram-me enfrentar mil dificuldades. As dificuldades trazem riscos, e eu sei bem que os riscos entre os quais estou caminhando vão num crescendo.

Entretanto, graças a Nossa Senhora, nunca me viram recuar. Mais do que isso, nunca me viram deixar de ser o primeiro a perceber a saída arriscada e entrar por ela! Se um risco é necessário, o primeiro a perceber a necessidade do risco e lançar-se nele sou eu!

Gabriel K.

Pois bem, tal era a ação de presença de mamãe, e a tal ponto essa ação de presença penetrou os objetos que lhe pertenceram, que até hoje não tive coragem de ver a coleção dos vários xales dela que estão guardados num armário, por receio de me emocionar demais. Vejam a força de uma ação de presença.

Outro dia, pensando que eu não soubesse disso, alguém me perguntou:

— O senhor sabe que no armário estão guardados alguns xales de Dona Lucilia?

— Sei.

— O senhor não quer que eu os leve até o escritório, para o senhor ver?

Eu pensei comigo: “É uma pergunta embaraçosa e não sei se ele compreenderá a resposta. Mas talvez eu não execute bem meus trabalhos depois de ter visto esses xales”. Então respondi:

— Não!

Aos pouquinhos vou me preparando para ver esses xales. Quando isso acontecer, quero vê-los sozinho no meu escritório, junto ao Quadrinho7. Se Nossa Senhora assim dispuser, chegará o momento. Eu me sentirei, nessa ocasião, respeitado e acariciado como só Dona Lucilia poderia fazer.

(Extraído de conferência de 1/5/1981)

1) Winston Churchill (*1874 – †1965). Estadista britânico, conhecido principalmente por sua atuação como primeiro-ministro do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial.

2) Georges Clemenceau (*1841 – †1929). Político francês, foi primeiro-ministro de seu país por dois mandatos, sendo o último deles durante a Primeira Guerra Mundial.

3) Paul von Hindenburg (*1847 – †1934). Marechal alemão que comandou o Exército Imperial durante a Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, foi presidente da República de Weimar.

4) Erich Ludendorff (*1865 – †1937). General do Exército Imperial Alemão, que ganhou destaque por sua atuação durante a Primeira Guerra Mundial.

5) Dr. Plinio faz referência a John Kennedy (*1917 – †1963), Presidente dos Estados Unidos.

6) Trata-se da grave crise de diabetes que acometeu Dr. Plinio em dezembro de 1967, obrigando-o a permanecer em repouso no seu apartamento por alguns meses.

7) Quadro a óleo pintado por um dos discípulos de Dr. Plinio com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia.