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Oferecimentos gaudiosos e o sacrifício redentor – II

Tendo Nosso Senhor Jesus Cristo assumido a expiação dos nossos pecados, torna-se tão viva a nossa relação de remidos com o Redentor, que a partir disso o homem fica impossibilitado de pensar nas alegrias sem ter, ao mesmo tempo, um olhar para a Cruz. Aí entra a luta, a penitência e a dor que acabam adquirindo, no existir humano, um sentido de píncaro.

Tendo tratado anteriormente a respeito dos oferecimentos, consideremos agora a parte relativa ao sacrifício.

A necessidade preponderante do sofrimento após a Redenção

Entretanto, houve o pecado e tudo mudou. O Homem-Deus, ápice da Sabedoria e de todas as belezas, foi destinado a ser morto. A vinda d’Ele à Terra foi marcada pela dor, humilhação e pelo contrário de tudo quanto seria a ordem normal, se os homens não tivessem prevaricado.

O pecado pôs uma espécie de crêpe lilás em toda essa celebração. Mas pôs também uma beleza a mais, desde que saibamos compreender.

Eu não sei, se não tivesse havido o pecado, se os homens chegariam à compreensão de que Deus Se imolaria por eles.

Acaba sendo que essa ordem de valores que enunciei não fica perturbada em nada por esse dado. Mas, pela desordem humana, o homem fica impossibilitado de pensar nessas coisas sem ter, ao mesmo tempo, um olhar para a Cruz. Porque, a partir do momento em que pecou, ele é feito para a dor, para a luta, para a agonia, no sentido grego da pala vra. Entretanto, ele tende a fugir dela de todas as maneiras possíveis. O resultado é que, ou ele considera tudo em função da agonia ou considera errado.

Isso é uma necessidade moral, psicológica, correspondente a uma outra realidade mais profunda: uma vez que Deus assumiu a expiação dos nossos pecados, por assim dizer, Ele adquiriu um título tão mais alto, em todo caso tão mais especial e, por assim dizer, tão mais insondável à nossa admiração, que a nós remidos não é lícito considerar qualquer coisa n’Ele que abstraia da Redenção.

Para não ficar puramente uma ideia abstrata, dou um exemplo. Imaginem um rei que para vencer uma batalha deixa-se prender. O adversário diz: “Nós, ou invadimos o seu reino e o liquidamos ou vos entregais como prisioneiro.” Ele pensa: “Se eu me entregar como prisioneiro salvo o meu reino. Os meus súditos podem vir atacá-los e me resgatar.” Então ele se entrega e o povo não é destroçado.

Depois um regente do reino vence e o liberta. Ele volta carregado de cicatrizes e, vamos dizer, coisa horrível, cego. O povo, o tempo inteiro em que olhasse para esse rei, se não o considerasse sempre em função do ato praticado por ele, todo o resto ficaria imperfeito. A própria glória maior da realeza deveria ter sempre em vista esse ato, pois é tão insondável o sacrifício realizado pelo rei que todo o resto careceria de sentido se não se levasse isso em consideração.

Especulativamente poder-se-ia pensar de outro modo, mas é tão viva a relação do homem resgatado com quem o resgatou que este passa a ser para ele um redentor. Não se pode prescindir disso. Portanto, em todo culto a Deus, em toda a Religião Católica, em toda a consideração da vida esta presença preponderante do sofrimento, da luta, da dor é uma necessidade de justiça baseada num fato histórico insondável, que é a Redenção, que criou algo de ontológico – porque o que houve ficou existindo na ordem do ser – e é, de outro lado, uma necessidade psicológica. O homem debanda e prevarica se não fizer assim.

Luta e dor: um píncaro para o qual todos são chamados

Flávio Lourenço
Cristo preso – Museu de Belas Artes, Valência

A partir disso entra a luta, a penitência e a dor, as quais acabam tendo, no existir humano, um sentido de píncaro. Também a abnegação e tudo mais adquirem esse sentido que não exclui o resto, mas deve estar presente em tudo.

Fala-se tanto no aspecto pagão da Renascença, é claro, mas neste aspecto está a negação da Redenção e de tudo quanto estou dizendo. Do mesmo modo, o otimismo norte-americano é o contrário do que acabamos de falar, ou seja, a prevalência da agonia como valor à luz do qual tudo deve ser visto, porque o homem pecou e Nosso Senhor Jesus Cristo o resgatou. Nossa Senhora foi Co-Redentora do gênero humano e, portanto, tem na Redenção a parte que nós sabemos.

Isso criou uma outra ordem de coisas, além da elevação para o gênero humano trazida pela Encarna ção, a qual existiria mesmo se não tivesse havido o pecado.

Assim nós teríamos o lado sacrifical explicado inteira e claramente. Nossa alma é aberta para alegrias, até enfáticas. A vocação de todo bom católico não é lacrimejante, mas possui no centro de tudo a alegria da batalha, da luta e, portanto, da dor, da agonia, em todos os sentidos legítimos e exatos desta palavra. Aqui está o sacrifício e o oferecimento.

Flávio Lourenço
Oração no Horto – Museu de Belas Artes, Valência

Ofertar tudo a Deus, porém sem cacoetes nervosos

Põe-se a pergunta: aquela festa de Veneza poderia realizar-se sem a Missa? Violaria tudo quanto eu disse, pois seria excluir da comemoração das alegrias de Veneza o fato de que aqueles dons todos concedidos por Deus existem numa trama histórica desenvolvida de dentro do pecado. E que, portanto, a todo momento, naquela festa mesmo, há uma luta não só interior, mas a Igreja está continuamente sendo alvo de ciladas, os adversários do Estado veneziano estão sempre armando perigos contra ele. E, portanto, é preciso estar em atitude de defesa.

E qual é o sentido do oferecimento? Cada vez que uma ação se abre e se completa, em qualquer ordem de coisas que seja, nessa perspectiva ela deve ser oferecida a Deus.

Por exemplo, ao começar um trabalho, andarei bem se oferecê-lo a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora. Porque foi um episódio da História querido pela Providência, eu agi de acordo com sua divina vontade e terminei o serviço de acordo com ela. No momento de começar, suplico: “Senhor, protegei-me para sair como Vós quereis. Dai-me mais do que tenho, para eu fazer melhor do que posso para Vós.” Na hora de terminar, digo: “Senhor, eis.” O oferecimento deveria ser próprio a todo trabalho.

Por exemplo, como é adequado e bonito oferecer o fim desta conferência. “Nós vos damos graças, ó Deus, porque vos servistes de nós, pelos rogos de vossa Mãe Santíssima, para que fosse dito, nesta época de pecado, aquilo que em nenhum lugar foi considerado. Perdoai-nos, Senhor, se tudo não foi falado como deveria. Recebei isso benignamente, e sabemos que vos deu glória. Ó Maria Santíssima, tomai esses dons e oferecei-os a vosso Divino Filho; por vosso intermédio, eles Lhe serão gratos. Assim seja.”

Isso se deveria fazer com tudo. Sem mania, sem estar oferecendo ninharia, enfim, sem estar transformando isso numa espécie de cacoete nervoso, a ponto fazer oferecimento de qualquer coisa. Então, chamo o elevador, faço o oferecimento; chega o elevador, eu agradeço: “Ó Deus, que para a minha invalidez suscitastes essa criatura elevador…”

Eventualmente, uma alma chamada a isso de modo especial poderia ser assim. Eu não sou essa alma; prefiro pensar de um modo mais desanuviado. Mas, ter isso claro e nas ocasiões grandes, fazer o oferecimento de modo augusto. De vez em quando, numa ou noutra ocasião pequena, também; quando não me pese e não constitua um fardo para mim, mas ajude a respiração de minha alma que dá graças a Deus. Por que não?

Perfeito oferecimento: pedir forças para ver a luta por inteiro

Então, o que é propriamente o oferecimento? Eu volto ao conceito inicial. É aquilo feito segundo a vontade, com o apoio e o auxílio de Deus, e recebido por Ele.

Seria como um joalheiro que termina uma joia e dá para a rainha: “Senhora, eis a joia destinada a vós. Vós a queríeis, vós me destes o desenho, a inspiração e a força para realizá-la, me ensinastes e me ajudastes a fazê-la. Ajoelhando-me, digo: Senhora, aqui está vosso filho.” Como estaria direito!

O oferecimento tem também um aspecto de complementação da obra de Deus. Seria um pouco como um pai que dá para uma criança um caderno com desenhos para ela colorir. A criança colore e entrega ao pai, completando assim a obra iniciada pelo pai ao dar-lhe o caderno e os lápis.

E mais: a obra realizada se projeta numa perspectiva histórica e alcança os esplendores do Padre Eterno. A ação cessou, mas nos esplendores do Padre Eterno ela permaneceu. Vou encontrá-la quando morrer.

Então, tudo bem examinado, cada vez que acaba uma ação – poderia falar do início também – há algo à maneira de um juízo que eu formo sobre a minha ação e o apresento a Deus. Ele aceita, premia ou castiga.

Sobre o oferecimento no começo de uma ação, não conheço modo mais belo do que a oração de Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Aquilo é o modo paradigmático pelo qual se começa uma ação: medir todo o bem que ela vai fazer, tudo quanto vai custar a mim e preparar a minha alma, pela antevisão disso, para receber o baque, e pedir as forças.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1992

Na hora de beber o cálice da consolação, entender que estou sorvendo também o do sofrimento. Bebendo aquela consolação, comprometo-me especialmente a aguentar a dor. Isso me parece ter relação com o cálice que o Anjo trouxe para Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Lc 22,43).

Eu sei que o beber do cálice da Missa não tem esse significado, mas quando o padre o eleva e bebe, lembro-me da Agonia no Horto. A partir de então começam as calúnias, o desprezo, a flagelação… Assim se começa! Não conheço começo igual. Ali, de fato, Nosso Senhor já fez o sacrifício d’Ele no que diz respeito à alma. É de uma grandeza!

Eu me abismo nessa consideração, e penso: “Vamos em frente! Terei que sofrer tudo isso. Eu medi, eu quero. Senhor, pelos rogos de vossa Mãe, dai-me forças!”

Como seria bonito se antes de começarmos as nossas ações difíceis pensássemos nisso! Meço por inteiro todas as dificuldades que sinto, mas quero! Peço a Nossa Senhora que me dê forças, amor a Ela, una-me inteiramente a Ela para travar essa batalha, diante da qual cambaleio, mas quero travar. Entro cambaleando, mas vou em frente. Ofereço o que for. Eis aqui o servo do Senhor, faça-se em mim segundo a sua vontade. Fazer isso conscientemente. Agindo desse modo não dá mais ânimo? Eu acho que dá.

O oferecimento a Deus do fim da História

Sou propenso a achar que os últimos homens, quando perceberem ter chegado o fim do mundo, oferecerão como um sacrifício, junto com Nosso Senhor Jesus Cristo, o mundo castigado e torturado, e a justiça vencedora como um triunfo. E a glória d’Ele se afirmará. Ali o sacrifício é de glória.

Ele vem na glória porque esse sacrifício é o fim da História e, portanto, já é triunfante. O mundo liquidado, escangalhado, purificado. É o episódio final de uma História que começou com os comprazimentos de Deus.

É o episódio final?

É e não é. Porque o episódio verdadeiramente final é Nosso Senhor Jesus Cristo que desce com todos os eleitos, em sua pompa e majestade, vitorioso sobre este mundo e oferece a Deus Pai o fim da História da humanidade. Aí é a glória e a vitória. É o oferecimento do Vencedor.

(Extraído de conferência de 5/11/1982)

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