sábado, noviembre 23, 2024

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Grandeza incomparável do sacrifício

Devido ao pecado original, o homem, mesmo inocente, tem necessidade de fazer sacrifício. E no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado, era preciso a ascese? Dr. Plinio julga que sim, pois seria um ato ordenativo do homem, em estado de prova.

Considerando o sacrifício na perspectiva da Doutrina Católica, parece-me que ele não tem o caráter de mera expiação, mas de um reconhecimento da supremacia de Deus, pelo fato de serem consumidas em honra d’Ele coisas que Ele mesmo deu ao homem, por onde este reconhece implicitamente que privar-se daquilo e dar ao Criador afirma a superioridade d’Ele em relação a todas as coisas.

Sacrifício de dedicação

Cornélio a Lápide1 distingue o sacrifício de dedicação e de expiação, no Antigo Testamento.

Analisemos o que significa essa dedicação.

Uma criança pode ver, pendente numa árvore, uma fruta muito bonita; corre, apanha-a e a oferece ao pai ou à mãe. É propriamente um sacrifício de dedicação que a criança faz. Isso que parece muito razoável pode ser desdobrado em aspectos.

Um aspecto é: a criança renuncia à fruta para dar aos pais. O que significa essa renúncia? Há nisso um ato de ascese, mas não é a principal nota do ponto de vista da dedicação que se deve considerar. No homem nascido sem pecado original, essa ascese não pareceria necessária, porque o homem tinha um inteiro domínio de si mesmo. Portanto, vigorava a ideia de que aquela fruta tão excelente, melhor conviria a uma pessoa mais excelente. Representaria uma forma de justiça colher aquela fruta tão linda e dá-la a uma pessoa tão bela. Esta seria uma dedicação.

Creio que é esse o espírito com que muitas pessoas colhem flores para oferecer nos altares de Nossa Senhora. Por exemplo, ornar um altar para o “mês de Maria”: uma pessoa pode colocar nisso uma intenção de reparação, mas não é o intuito comum, e que esteja próxima e imediatamente na natureza do ato. O que está nisso é a noção de que à Santíssima Virgem, sendo a Flor da Criação, fica bem que as flores muito bonitas estejam postas junto a Ela, por assim dizer porque similis simili gaudet2. Então, junto Àquela que poderia ser chamada, por algum lado, “Flor das flores” convém colocar flores.

Sacrifício de louvor

Bonhomme (CC 3.0)
Abadia de Cluny – Borgonha, França

Entra também outro aspecto metafísico, que me parece mais bonito e mais importante, por onde há uma afirmação do Absoluto. Aquelas coisas são lindas, mas passageiras; e convém que elas, no que têm de passageiro e contingente, sejam oferecidas a Deus, que é eterno e Absoluto.

Essa destruição do transitório e do contingente em honra do eterno e do Absoluto fica meio implícita na natureza. E é uma grande verdade que o homem tem vontade de explicitar, e Deus deixa a cargo do homem fazer a explicitação. O desejo de explicitar o que Deus pôs implícito leva o homem a dizer: “Vós que sois Absoluto, eu a Vós entrego tal coisa, porque me destes o domínio sobre ela. E a destruo em vossa honra, porque a Vós, que sois o Criador de tudo, compete que se Vos honre, destruindo algo do que criastes.” É uma espécie de homenagem ao próprio Criador, a Quem se homenageia, em parte, em alguns aspectos, destruindo, mostrando que Ele merece aquela destruição.

Da parte psicológica do homem, entra nessa destruição um reconhecimento efetivo do Absoluto.

Contudo, para o homem concebido no pecado original, entra um reconhecimento de caráter necessariamente ascético, pois o ser humano tem tal tendência a se apegar e a dar àquilo que é contingente o valor que ele daria ao Absoluto que, para corrigir este defeito e desagravar a Deus dessa tendência a que tantos homens cedem, é preciso sacrificar alguma coisa para dizer: “Eu cheguei ao ato concreto e, assim, esmaguei internamente a minha tendência a ver isso como uma coisa absoluta.”

É preciso notar que isto é um aspecto muito importante, mas que não está na essência do ato praticado. Há o sacrifício, portanto, de louvor, que é o sacrifício do amor. O louvor é a voz do amor. A adoração, o louvor, o sacrifício de louvor se exprimem assim.

Deus, como Causa exemplar

Aliás, o Ofício Divino — recitado, por exemplo, segundo o estilo beneditino — tem o sentido do louvor a Deus, que o religioso faz cantando de um modo belo um texto adequado que O louva com suas próprias palavras, porque quase tudo é tirado da Escritura; e, quando não é da Bíblia, é da Igreja. Ademais, louva-O também com um cerimonial bonito, objetos e órgãos bonitos, numa igreja bonita, etc. A organização do belo para louvar é um predicado eminentemente beneditino e, de fato, seria necessário que, no seu conjunto, a Igreja Católica tivesse algo especialmente voltado para isso.

Tal modo de proceder é perfeito e condiz com outro aspecto da questão, formando uma espécie de geminação onde se tem o equilíbrio perfeito. Esse sacrifício de louvor pode dirigir-se a Deus como Causa eficiente, final, e também como Causa exemplar. E, enquanto Causa exemplar, nós podemos oferecer ao Criador coisas criadas por Ele, e semelhantes a Ele pela conexão com Ele. E, neste sentido, por exemplo, um grande abade beneditino pode constituir uma abadia magnífica, sem ceder nada a um luxo emoliente, mas para louvor a Deus como Causa exemplar de todo o belo na Criação.

O luxo pode ter uma nota de sacrifício

Até uma pessoa como Salomão, antes do pecado, que lembrava muito a Deus como Causa exemplar, poderia cercar-se de todo aquele luxo virtuosamente, louvando o Criador como Causa exemplar e dizendo: “Vede em mim como Deus é grande!”

Este constitui o elogio certo, mas arriscado, de muita forma de grandeza e de beleza, indispensável para uma civilização considerada no seu total. Então, por exemplo, eu creio bem que o Louvre de São Luís deveria ter, por vários aspectos, muito luxo. Este luxo deve ser visto assim.

Isso tem a nota do sacrifício no seguinte sentido: são riquezas que foram desviadas do uso do rei para simbolizar, perante Deus, uma determinada perfeição que lembra a Ele. Seria, por exemplo, o luxo da Sainte-Chapelle, mas poderia ser o luxo da pompa real, enquanto mostrando o rei como representante de Deus, ou da pompa papal, enquanto manifestando no Papa o Vigário de Nosso Senhor.

Timothy Ring

A meu ver, esta é a melhor resposta à crítica protestante ao luxo eclesiástico. O protestante diz: “É para o gáudio do padre que se usa isso.” A resposta é: “O padre de fato goza muito pouco disso, mas se gozasse era um aspecto secundário. O importante é que Deus seja glorificado também nisso.”

Entretanto suporia, para manutenção do equilíbrio nesse próprio louvor, que o homem fizesse rebaixamentos, atos de humildade e de ascese que compensassem isso, para que o equilíbrio se apresentasse perfeito.

Então, se eu imaginasse, por exemplo, um rei que fosse um Salomão da Cristandade, resplandecente com todo o brilho da realeza, mas que na Sexta-Feira Santa, na hora de adorar a Cruz, fosse a pé e descalço, em trajes de penitente, flagelando-se, de maneira que todo o povo visse que de fato sua intenção sincera era de se humilhar diante de Deus. Esse homem realizaria um equilíbrio admirável das duas coisas, e que seriam duas formas de sacrifício que se completam, formam um carrilhão. E nesse carrilhão há a harmonia perfeita.

Quando numa civilização falta ou míngua uma dessas formas de sacrifício, ela não é completa.

Necessidade da ascese até no Paraíso terrestre

Restaria saber como seria no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado original e a consequente expulsão do homem.

Parece-me que não haveria a penitência, porque os homens não tinham pecado, mas existiria o que dizíamos há pouco do sacrifício de louvor, da doação, da entrega, pelo reconhecimento de que Deus é Absoluto e perfeito.

No que diz respeito à presença da ascese no Paraíso terrestre, uma vez que o homem se encontraria ali em estado de prova, é patente que ele seria tentável. Isso me inclina a pensar que, para prevenir essa tentação e oferecer um corretivo para algo que não era o pecado original, mas uma possibilidade de pecar, uma determinada ascese pareceria ser necessária. Não se trataria, portanto, de uma expiação, mas de um ato ordenativo do homem, porque naquilo em que ele era tentável havia a raiz de algo que poderia propender para a desordem.

Estamos, pois, em presença de uma hipótese que poderia dar ao sacrifício de louvor certo caráter preventivo da tentação.

Propriamente no sacrifício de louvor de que eu estava falando, o gáudio supremo que tem aquele que oferece o sacrifício é uma espécie de estremecimento de alma diante do fato de que, oferecendo alguma coisa que se destrói, ele pratica um ato que, aparentemente, na ordem natural não é razoável, e encontra sua razão de ser apenas no caráter de dádiva “inútil”, “desarrazoada” Àquele que é Absoluto. E desta maneira se afirma com louvor — e com o único louvor adequado — o caráter absoluto d’Ele, e o nosso reconhecimento deste caráter absoluto. Nisto entra exatamente uma espécie de ósculo do contingente no Absoluto, que é uma atitude totalmente desinteressada, realizada por ser Ele Quem é.

A doação supõe o sacrifício feito como que gratuitamente, diante do mero fato de que Deus é Deus, mais nada.

Sacrifício desinteressado

Este é o estado de espírito com que se deve morrer. Na hora da morte, a pessoa deve aceitá-la como sacrifício merecido pelo pecado original e pelos seus pecados atuais. Pode até oferecer pela Cristandade, por outros interesses, o que Nossa Senhora quiser, mas acrescentaria um elemento altíssimo se dissesse só isto: “Por serdes Vós Quem sois, eu me ofereço!”

Então, o fazer-se pequeno é o único modo, a garantia única que o homem tem de que todas as grandezas construídas por ele não deem em vanglória. Por quê? Porque terá atendido à exigência dessa ordem metafísica mais profunda, que é o sacrifício desinteressado.

Aliás, tenho a impressão de que no sacrifício de Isaac entrava isso: era um sacrifício tributado a Deus porque Ele quis o filho único de Abraão, que disse: “Bem, Vós quereis esta hóstia de louvor, que é meu filho inocente. Vós o tendes!”

Algo disso parece-me estar presente também na resposta de Nosso Senhor à objeção de Judas contra Santa Maria Madalena, quando esta lavava os pés do Divino Mestre com um perfume muito valioso: “Por que não se vendeu este perfume por 300 denários para dá-los aos pobres?” (Jo 12, 5) — reclamava Judas. Ao responder: “Deixai-a; ela conservou esse perfume para o dia da minha sepultura! Pois sempre tereis pobres convosco, mas a Mim nem sempre tereis.” (Jo 12, 7), Jesus dava a entender que não se deve deixar de prestar a Deus o sacrifício desinteressado, de puro louvor, sob o pretexto de acabar com a pobreza.

Essa atitude de abnegação tem seu reflexo nas relações humanas. Também a perfeição da amizade vem do fato de alguém ser capaz de fazer uma coisa dessas por outrem que mereça. Por exemplo, estou com uma pessoa que é santa e vejo que vão matá-la. Posso substituir-me ao santo, para ser morto eu e não ele, pela seguinte razão: “Não toque naquele que é uma obra-prima de Deus!” A primeira ideia é a incolumidade daquele que é obra-prima de Deus, para continuar a dar glória a Ele. Eu, pecador, desapareço dentre os viventes, mas consegui que o santo continuasse a existir. É uma coisa muito bonita!

A autêntica imolação deve ser total

Reinhardhauke (CC 3.0)
Infortúnio de Jó – Igreja da Visitação de Nossa Senhora, Limbourg, Bélgica

Também me parece que na humilhação bem aceita está o sacrifício voluntariamente realizado. Esta necessária humilhação diante de Deus absoluto traz consigo uma passageira, transitória, mas efetiva como que destruição de si próprio, por onde, além do lado expiatório, o indivíduo faz por amor o que ele faria da flor que ele ofereceria a Nossa Senhora. Ele como que se destrói, pondo-se até abaixo do que é, para fazer consigo o que realizaria com a flor.

Este ato, por ser como que uma destruição, produz sofrimento nesta Terra, dado o pecado original. De algum modo, o mais humilde dos homens realiza isso num espírito de sofrimento. Porque, por mais santo que ele seja, tem uma parte ruim, não consentida, que sofre com a humilhação.

Como seria no Paraíso terrestre, para o homem concebido sem pecado? Ele se apequenar ao ponto de ser um nada diante de Deus, não traria revolta? Isso é muito misterioso.

Vê-se que com satanás, em determinado momento, o fato de sentir-se não pequeno, mas “apenas” o primeiro dos grandes da corte de Deus e não o próprio Deus, trouxe uma inconformidade, e esta participa da dor. Portanto, vejo de um modo um tanto nebuloso como seria este fenômeno na natureza angélica.

Entretanto, mesmo para o homem concebido sem pecado original, se esse aniquilamento não chegasse efetivamente ao último limite de si mesmo e reservasse qualquer coisinha, ele não seria autêntico.

Há atitudes em que a imolação só é autêntica quando é total. Foi o que, em última análise, Deus quis de Jó, quando permitiu que o demônio o tentasse.

É nessa perspectiva que tomam toda a beleza coisas que a “heresia branca”3 admira sem considerá-las debaixo deste ponto de vista. Então, por exemplo, um de nós tem um inimigo leproso e faz por ele um determinado benefício, humilhando-se inenarravelmente diante do opositor, que ainda responde com um desaforo. Tal ato, visto somente como o considera a “heresia branca” — ou seja, a pena do leproso e o leproso que não tem compaixão de mim — não manifesta toda a sua profundidade. O fundo está na pessoa ter-se apequenado de tal maneira que chegou a sofrer isto. Aí, nesse sentido do apequenamento que viemos expondo, o sacrifício tem uma grandeza incomparável. Mas isso a “heresia branca” não considera, porque tem horror à perspectiva de grandeza e de seriedade.

(Extraído de conferência de 27/9/1984)

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Do latim: o semelhante alegra-se com o semelhante.

3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

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