É um erro pensar que a autêntica coragem consiste apenas em enfrentar os riscos com valentia, impulsionado por um entusiasmo sensível. Nosso Senhor Jesus Cristo nos dá o exemplo da perfeita coragem.
A coragem é, por definição, a disposição de alma, a virtude pela qual o homem enfrenta grandes provas, grandes dores, grandes dissabores, grandes desgostos, grandes perseguições, por um ideal que ele coloca acima de tudo.
Diversas formas de coragem, dois estados de espírito
Há diversos tipos de coragem. Uma coragem para aguentar os sofrimentos da alma, outra para suportar os padecimentos do corpo, outra para arcar com ambos os sofrimentos. Há modalidades de coragem para enfrentar os padecimentos da doença, e outras para os tormentos da guerra. Varia muito.
Entretanto, ao resolver enfrentar o sofrimento necessário para alcançar seu objetivo, o homem pode assumir dois estados de espírito diversos.
Um é o entusiasmo sensível. Ele se vê na contingência de sofrer muito por uma alta finalidade, e resolve, no seu arrebatamento: “Vou sofrer!” E vai para a frente.
Outras vezes, não. O homem não tem qualquer entusiasmo sensível em relação ao que vai fazer. Na sua mente, ele compreende que deve, e quer realizar aquilo. Mas a sua sensibilidade não está de acordo, encontra-se fraca, abatida. E ele tem que ir adiante, apesar de sua sensibilidade estar rumando para o sentido oposto.
A perfeição da coragem
O Corajoso dos corajosos, o Forte dos fortes foi Nosso Senhor Jesus Cristo, evidentemente. No Horto das Oliveiras, quando começou sua Paixão, Ele não tinha nada que representasse, na sensibilidade d’Ele, um élan, um gosto, uma satisfação para sofrer. Antes, pelo contrário, os Evangelhos nos contam que Ele começou a pensar em tudo o que ia acontecer, e a preparar sua Alma para isso. E, em vez de Se alegrar, diz o texto sagrado que Ele começou a sentir tédio, pavor, e a ficar triste.1
Diante do que Lhe deveria acontecer, o seu celeste, admirável, perfeito instinto de conservação fê-Lo ter tanto medo, que as capilaridades das veias arrebentaram e Ele começou a suar Sangue.
É um fenômeno estudado na Medicina, conhecido perfeitamente. Há pessoas que, levadas por um grande receio, um grande temor, acabam transpirando sangue.
Nesse momento, Ele teve o supremo gesto de coragem, dirigindo-Se ao Padre Eterno e dizendo: “Meu Pai, se for possível afaste-se de mim esse cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha.”2
O auge da coragem estava nisso: Deus tem desígnios que, segundo a infinita perfeição d’Ele, às vezes remove, às vezes não remove. E apesar de tudo quanto levava o instinto de conservação perfeitíssimo de Nosso Senhor a ficar absolutamente tenso na perspectiva do que viria, Ele deliberou: “Eu vou, Eu aceito! Faça-se a vossa vontade e não a minha” É a perfeição da coragem!
O Evangelho conta que um Anjo baixou do céu e o fortaleceu.3
Quer dizer, para essas almas que têm medo, tensões, e ficam dilaceradas pelo pavor do que pode acontecer, há uma misericórdia especial. Para umas almas a misericórdia consiste em dar essa sensibilidade para a luta; para outras, a misericórdia consiste em deixar a pessoa sentir-se desamparada. Mas, na hora H, vem uma ajuda e a pessoa avança.
Deus nunca abandona quem se mantém fiel
Não se deixem levar pelo erro que a linguagem corrente coloca — ao menos no português do Brasil —, de imaginar que coragem é a mesma coisa do que essa valentia sensível pela qual se enfrenta tudo. Não é esse o único corajoso. É uma forma de coragem, mas não é a única.
Esta coragem na dor, na desolação, na agonia, é uma forma de coragem esplendidíssima, porque é a coragem da qual nos deu exemplo, pessoalmente, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Nas ocasiões comuns da vida, a pessoa pode não ter coragem para as coisas extraordinárias e, portanto, por causa disso ter um acesso de medo. Mas quando se trata de ser fiel à graça de Deus, não tem por onde escapar: a pessoa pode estar como for, vem para ela uma graça. E, no meio do medo, ela aguenta.
Santo Inácio de Antioquia, por exemplo — um mártir famoso —, foi para o martírio, chegou diante das feras, abriu os braços e exclamou: “Meu Deus, que meu corpo seja triturado pelos dentes das feras, e esmagado como se faz com o trigo usado na transubstanciação!” E realmente as feras caíram em cima dele e o estraçalharam; e ele, na alegria, foi para o Céu. É uma coragem admirável!
Os romanos levavam os cristãos, na véspera da execução, para o Coliseu ou para o Circo Máximo, e eles ficavam a noite inteira acordados, com medo do martírio do dia seguinte. E as feras que lhes deviam comer estavam ali perto, em outro cárcere, uivando. De maneira que, no silêncio da noite, de repente se ouvia o rugir de uma fera faminta. E o católico sabia que seria ele o alimento daquele animal.
Então, diante dos leões, leopardos, tigres, panteras, que começavam a uivar, durante a noite, alguns católicos ficavam entusiasmados, outros se encolhiam, pois receavam não ter coragem. Chegada a hora do suplício, eles tinham uns procedimentos admiráveis.
Houve uma santa que pediu a Deus o seguinte: ela estava disposta a aguentar tudo, mas não tinha coragem de ser comida por um leopardo, por ter um medo especial desta fera. Apareceram as feras, entre as quais havia leopardos. A santa olhou aquilo e pensou na oração que fizera. Veio um outro animal, que não era leopardo, e atirou-se sobre ela, devorando-a.
Outras vezes, as feras se aproximavam, mas não ousavam fazer nada contra o santo. Então o imperador mandava lhe cortar a cabeça. E todos os mártires tinham atitudes admiráveis.
Os “lapsi”
Existia no meio do Coliseu um ídolo, junto ao qual ficavam uma espécie de tigela com incenso e uma pira com fogo. Os cristãos que se aproximassem do ídolo e jogassem incenso no fogo, indicavam por este gesto terem adorado o ídolo. Então, imediatamente eram soltos e podiam voltar para casa. Esses eram chamados lapsi.
Um monge relapso é um monge que não teve coragem de levar até as últimas consequências sua vida monacal. Um aluno relapso é o que não teve a coragem de aguentar o peso do estudo.
Os lapsi — a palavra “relapsos” vem de lapsi — tinham que voltar para a catacumba e apresentar-se com vergonha, como lapsi. E continuavam a viver a vida de todos os dias dentro do opróbrio.
Tanto mais que existiam outros meio estropiados porque tinham conseguido sobreviver aos tormentos, sendo depois resgatados, à noite, pelos outros cristãos que, durante a noite, recolhiam os corpos dos mártires, e os eventuais feridos com vida, levando-os para serem cuidados. Esses sobreviventes eram heróis, tinham enfrentado as feras!
Imaginem um daqueles lapsi olhando para uma moça frágil, que perdera os dois braços, e que está na catacumba, rezando. Ele, um atleta. Que vergonha! Dá vontade de sair correndo…
Às vezes os lapsi que voltavam eram novamente presos. E, na segunda vez, eles se mostravam corajosos. Apesar do pecado cometido, a graça de Deus ainda os apoiava na hora do martírio.
Vivamos e morramos como Deus quer
Quando chegar a nossa hora, devemos pedir a Nossa Senhora que nos dê qualquer forma de coragem, contanto que sejamos fiéis a Ela, custe o que custar. O resto não tem uma importância decisiva. Mas é preciso, nesta hora, ser corajoso.
Eu me lembro de ter ouvido falar de um santo que pregava muito sobre os novíssimos do homem, entre os quais está a morte. Mas ele tinha um pavor de morrer, que era uma coisa medonha! Quando ficou velho, chegou a vez dele. Veio a morte, e ele morreu com uma serenidade impressionante, uma coisa admirável!
São os diferentes desígnios de Deus para cada pessoa.
Queiramos viver a nossa vida e morrer a nossa morte como Deus quer. Vê-Lo no Céu, por toda a eternidade, é o que devemos pedir a Nossa Senhora.
(Extraído de conferência de 4/9/1989)
1) Cf. Mt 26, 37-38.
2) Cf. Lc 22, 42.
3) Cf. Lc 22, 43.
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