sábado, noviembre 23, 2024

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“Senti a vida de Nosso Senhor em mim”

Em sua existência de quase 87 anos, Dr. Plinio fez milhares de conferências, escreveu muitos artigos e livros, promoveu grandes atividades em defesa da Santa Igreja e da civilização cristã. Mas propriamente o que caracterizou a vida de sua alma foi o contato, o afeto, a união com o Sagrado Coração de Jesus, fundamentados no amor à Cruz.

Já falei das minhas impressões1 — mais do que impressões, pois foram graças — sobre a Igreja do Coração de Jesus. E aquilo eu amei nos seguintes termos:

Intercâmbio de afeto e de comunhão com o Sagrado Coração de Jesus

Minha vida — a vida de minha alma — é eu ter contato, entrar em intercâmbio de afeto e de comunhão com essas coisas, portanto, com o Sagrado Coração de Jesus, em últimos termos, nos mais altos termos, nos termos conclusivos, finais. Isto marca a minha existência e marcará toda a minha vida com uma nota que desejo. Viver é isto! Ou seja, quer com relação à vida eterna, quer com a terrena, não desejo uma existência que não seja marcada por esse ideal, porque não amo outra coisa senão isto.

Vejo bem que devo lutar por isto até o fim, quer dizer, fazer que prevaleça acima de todas as coisas. A ideia de luta eu não tinha inteiramente clara, mas sim a de fazer prevalecer, restabelecer a ordem a este respeito. Ou seja, vou restabelecer esse ideal e sei que isto dará, no fim, numa glorificação minha. Mas a glorificação não é apenas a celeste, a mais desejável de todas, mas também será nesta vida. Por quê? Porque há um movimento interior que me diz isto. Mas que não concebo em termos de grandeza mundana, e sim de união com isto. Serei aprovado, acariciado, afagado e premiado, e me unirei mais com o Sagrado Coração de Jesus.

Problema de vaidade nem se punha. De maneira tal que o clamor que se elevasse me aplaudindo, seria um clamor aplaudindo a Ele, Nosso Senhor Jesus Cristo. E isto eu quero. Mas não sou alheio a este circuito. Sei que passa por mim. E com isto a minha vida teve seu resultado.

Isto tudo foram coisas sentidas, intuídas, porque ficam de um modo ou de outro na linha do que um homem sentiu, não do que ele raciocinou. Portanto, em algum sentido da palavra, isto é sentimento.

A Moral só se sustém com base na Religião

Depois, ao compreender a enormidade do sacrifício que esta minha adesão me impunha, na hora de, por assim dizer, verter sangue, começar a enorme hemorragia, veio a pergunta: O que me garante a inteira autenticidade disto que estou fazendo e deste passo que estou dando? Isto é mesmo a vontade de Deus? E por que, em última análise, devo seguir isto? Em termos de razão e de Doutrina Católica, não de especulação individual, que fundamento tem isso?

Aí não é mais o primeiro élan, mas um movimento de alma em que entra algo da miséria humana. Na hora de dar, do holocausto, mede-se o preço. Porém, é compreensível que isto venha ao espírito.

Eu fazia o seguinte raciocínio, que ninguém me explicou, tive que descobrir:

A vida, sem ser norteada por uma Moral, não é vida. É uma existência de mero gozador, destes que vejo em toda parte.

Outro dado: uma Moral só se sustém com base na Religião. Porque se não é por Deus — que existe verdadeiramente como Ser inteligente, individual, pessoal, distinto de mim, infinitamente superior a mim e que me prescreve essa Moral —, não tenho razão para seguir esta Moral. De um lado é sublime, mas de outro não se justifica sem Ele. E se eu não cresse em Deus, ficaria desolado de não seguir esta Moral, mas diria: “As ilusões de minha infância são por demais belas, mas exigem esforço; e o chiqueiro é muitíssimo atraente. Não sou homem para exercer essa força; vou afundar no chiqueiro!”

Entretanto, uma vez que há Deus, e evidentemente a Igreja Católica é verdadeira e perfeitos são os Mandamentos, justifica-se e impõe-se que eu siga esse ideal. Assim, tenho uma razão definida para mim mesmo, analisada e criticada por mim, que me diz: “Agora, para o sacrifício!” Então, entro no sacrifício.

Na hora de conceder o dom, o Altíssimo não apresenta a conta. Ele primeiro nos deixa querendo muito, para depois nos mostrar a conta: “A cruz é esta.” E pergunta: “Queres?”

E essa interrogação apresenta-se no choque com um sacrifício tão tremendo, que a alegria interior não compensa o sofrimento. Ou a pessoa se apoia na razão, ou não se escora. Para a minha psicologia, esse ponto tem uma importância absolutamente fundamental.

Depois vem o livre-arbítrio, a graça, que jogam no sistema clássico, segundo explana Santo Inácio de Loyola.

O cavalo velho, molhado e surrado, puxando uma carrocinha

Primeiramente, o que eu vou dar? Tudo! Porque tenho ciência de que perderei todo o deleitável da vida terrena. Entrevejo que, de um jeito ou de outro, serei um depenado, espezinhado, posto de lado, nem sei o que vai acontecer comigo!

De outro lado, não. Porque se eu tomar esta via fico contente, desde que tenha esta união com o Sagrado Coração de Jesus. A essas alturas, Nossa Senhora já estava inteiramente definida no meu horizonte; era por causa d’Ela que eu estava diante disso. Maria Santíssima e a Igreja Católica dão-me tal alegria de seguir esse caminho, contentando-me eu com tão pouco, que se me restar esse pouco para poder respirar, eu carrego a cruz! E, portanto, vamos para a frente!

E, realmente, a razão de eu aguentar tanta coisa está no fato de contentar-me com muito pouco. Não sou exigente nem birrento. Estou tão disposto a ver os méritos nos outros, sem ser ingênuo — se há uma coisa que não sou, é ingênuo! —, que qualquer coisinha boa que se faça para mim e, sobretudo, para a causa da Igreja, acolho de braços abertos.

Certo dia, transitando de automóvel por uma das ruas que circundam o cemitério da Consolação, vi passar diante de mim uma carrocinha comum, carregada não sei do quê, num dia de chuva — dessas chuvinhas finas de São Paulo —, puxada por um cavalo velho, magérrimo, molhado a mais não poder, e cavalgando contentinho, disposto a tudo até cair morto de cansaço, de frio, de fome.

Mas trotando com tanta naturalidade, desenvoltura e — se pudéssemos dizer isto de um animal — com tanta alegria no meio daquilo tudo, que me fez lembrar mamãe acolhendo-me muitas vezes com alegria, ficando satisfeita com o mínimo agrado de minha parte. Era só o que ela possuía na vida, não tinha outra coisa. E continuava o caminhozinho dela, até a hora da morte.

Ao ver aquele cavalinho velho, molhado e surrado, puxando aquela carrocinha, eu me emocionei. Primeiro, por me lembrar de mamãe, mas depois por pensar em mim mesmo, porque, de fato, eu me contento com muito pouco. Isso representa um grande fundo de felicidade. Ou sabemos valorizar muito a pouca coisa que temos, ou não somos felizes.

Aceitar o sofrimento por amor a Nosso Senhor é medicinal

Essas considerações vinham acrescidas da noção de que havia em mim um pantanal a ser secado, para desaparecerem as moscas e outras coisas. Depois, mantê-lo seco, pois chove continuamente em cima desse pantanal, o que é propriamente uma cruz. Tem-se que sofrer, porque é só assim que se consegue isso. A cada segundo estamos diante da alternativa: aceitar ou rejeitar a dor. É assim, não tem conversa!

É preciso ver nisso uma autolimpeza, uma autoadequação para este amor ao Sagrado Coração de Jesus, uma condição para se realizar essa via espiritual. Este é o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo: Ave Crux, spes unica; Mater dolorosa, ora pro nobis2.

A graça, por vezes, age assim conosco: na hora do convite, ela nos apresenta um paraíso; e quando estamos inebriados de consolações, ela nos apresenta o sofrimento: “Isto custa a cruz!”

Nessa hora, para nos sustentar, é necessário o raciocínio baseado na Fé, e uma deliberação: “Eu vou sofrer!”, compreendendo que isso é medicinal e prepara para a união com Ele já nesta Terra e, depois, no Céu. Sem essa determinação, todas aquelas graças ficam esvoaçando inúteis pelo ar, em cima de um pântano imundo.

Já aprendi também que não adianta a seguinte resolução: Vou pegar o sujeito, quando ele estiver no auge da consolação, e dizer isso para ele. Porque passa a consolação, e ele não se lembra.

Ad Maskens

Deixe os Anjos cantarem dentro dele, por ordem de Deus, o cântico da alegria e da esperança. E, em certo momento, o Altíssimo baterá na porta.

Há uma cerimônia na Semana Santa, em que o Sacerdote desvenda a Cruz aos olhos do público, em três fases, cantando: Ecce lignum Crucis… Eu acho isto uma beleza! Vem um Anjo e nos canta: “Este é o lenho da Cruz… este é o lenho da Cruz…”, cada vez mais perto. E devemos beijá-lo com muito carinho, como Nosso Senhor tomou a sua Cruz!

Ou seja, é preciso tomar esta decisão: Isso eu seguirei, vou ser sério em ver a cruz e pagarei meu preço! Pedirei forças a Nossa Senhora, pois sem a mediação d’Ela não consigo nada, mas vou fazer isso! Uma alma cheia de sabedoria deve ser assim.

A pluralidade e a desigualdade das criaturas, formando um unum

O mecanismo da visão do homem serve como exemplo para explicar o plano de Deus. Aquilo que o homem vê e a luz dentro da qual ele olha são criaturas do Altíssimo. E cada coisa foi calculada em função da outra. De maneira tal que, se a realidade externa fosse outra, meu olho seria cego, pois não a apanharia. Ele a capta porque é proporcionada a ser vista por ele.

São Tomás de Aquino ensina que, para refletirem bem a Deus, as criaturas têm que ser plurais e desiguais, porque uma só não pode dar um reflexo adequado do Criador. No sistema visual, o ser humano encontra as suas delícias na pluralidade e nas desigualdades, por detrás do que está um unum de coerência: a unidade.

Isto deve deixar a minha alma cheia, sentindo delícias nesse movimento em que ela apanha a coisa maior, e se dilata; pega a coisa menor, e se encanta; toma as coisas intermediárias e tem aquele bom repouso da mediania. A alma, portanto, se compraz em todas as dimensões.

Esta flexibilidade da alma, por onde ela é capaz de gostar de tudo segundo a dimensão de cada coisa, eu chamo bondade.

O contrário da bondade é um “reumatismo” culposo dentro da alma, que leva o indivíduo a dizer o seguinte: “Eu só gosto de tal coisa, de vê-la em tal comprimento de onda, e fico em oposição porque o universo não é assim, e não me dá essa coisa exclusiva que eu quero.”

No fundo é rebelião contra Deus, a qual leva a uma atitude má com as outras pessoas, e a um procedimento fruitivo, egoísta. Esta maldade é o contrário da santidade.

Um afeto cheio de grandeza e uma grandeza cheia de afeto

Depois de ter visto como todas as coisas são boas, ter se comprazido, compreende-se melhor a transcendência de Deus. E o brado de admiração interior diante desse quadro é resultado do reflexo disso em nós, o qual é a santidade. Ao receber esse reflexo, aceitá-lo e amá-lo, a pessoa se santifica.

É preciso ver o Sagrado Coração de Jesus assim. Percorrendo o Evangelho, notamos que foi o que Nosso Senhor fez. Ele foi assim até dar o último suspiro.

Então, olhando para a imagem do Sagrado Coração de Jesus, compreendo ainda melhor, concretamente, com os sentidos do corpo, tudo o que a minha alma pode apreciar. E meu amor não foi de Anjo, mas de homem. Porque eu via n’Ele. Aí está feito o circuito, e a pessoa se dá a Ele.

Quando se diz sanctifica me in veritate3, para mim era isso com acréscimo. Quando criança, eu percebia confusamente — mas hoje sei como é — que isto não era uma mera operação mental minha. Mas eu seria incapaz dessa operação mental se a vida d’Ele não tivesse entrado em mim, participativamente, e não me levasse a fazer isso.

Minha alma teve, portanto, um contato com Nosso Senhor, com a vida d’Ele; não só contemplei sua fisionomia, mas senti a vida d’Ele em mim. E sentir esta vida em mim dá toda a dimensão do que se diz “santidade”. É inefável, não há palavras para descrever.

Há um certo sentir da graça que é experimentar um afeto cheio de grandeza e uma grandeza cheia de afeto; uma forma de seriedade que nada no mundo dá; uma promessa de um bem superior a todo bem. Sentir tudo o que a inocência quis desde o primeiro instante, na hora em que experimenta a graça, isto vale tudo!

Quando se sentem outros dons, carismas, etc., é muito bom. Mas a graça santificante é incomparável! Tem-se vontade de ter visões, revelações, porque a graça santificante se torna mais intensa com isso, é uma ocasião para ela entrar e tomar mais conta de nós.

Se alguma coisa do que eu disse for contra a Doutrina Católica, dou desde já a mão à palmatória, com todo o gosto e agradecido por ter levado uma retificação. Mas isso me parece ultraortodoxo.

(Extraído de conferência de 24/11/1985)

1) Ver Revista Dr. Plinio, n. 195, p. 9.

2) Do latim: Salve, ó Cruz, única esperança; Mãe dolorosa, rogai por nós.

3) Do latim: Santifica-me na verdade (cf. Jo 17, 17).

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