Apresentamos aqui a segunda parte da exposição em que Dr. Plinio considera estas duas posturas de alma: a do gozador da vida, a quem aborrecem o dever e o sacrifício, e a do herói que galga suas montanhas interiores, a exemplo do Divino Mestre vencendo o Monte Calvário.
A verdade é como um píncaro a ser conquistado. O autêntico alpinista não é o que sobe montanhas, mas aquele que, pelo esforço do pensamento, chega às altas verdades. É aquele que gosta de parar e dizer: sejamos lógicos, sejamos homens de Fé! As verdades da Fé e os princípios da moral católica me traçam o caminho do dever. Ora, tal procedimento para o qual me convida um irmão, um amigo de escola ou um anúncio de televisão, conduz-me para algo contrário à Fé e à razão. Estes me convidam para o bem e me mostram o dever. Sinto-me dividido entre duas leis: a da impressão e a da razão.
Pela lei da razão, alinhei os raciocínios e conclui o que precisa ser feito. Os regimentos dos raciocínios foram conquistando terreno em minha cabeça e em certo momento cobriram o campo de batalha: “Está resolvido, seguirei o bom caminho. Por mais que doa, por mais difícil que seja, ainda que tenha a impressão de me estraçalhar, seguirei a reta via.”
Quem procede assim, é um verdadeiro herói. Este é um católico no sentido pleno da palavra: o católico apostólico romano, seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Exemplo divino: a Paixão do Redentor
Sim, o Divino Mestre nos deu sublime exemplo dessa atitude de alma, na cena da Paixão que, por certas razões psicológicas profundas, empolga-me mais que a própria morte na Cruz: é quando Ele se dirige ao Horto das Oliveiras e se põe a rezar, pensando no que Lhe estava reservado.
Diz o Evangelho: Et coepit pavere et taedere — Ele começou a sentir pavor, tristeza e abatimento. E Jesus, Profeta, viu tudo o que ia se passar com Ele, ponto por ponto: “Meu Deus, como isto custa! Não bastará? Esta mão, é preciso que seja perfurada por um prego? É necessário que outros cravos perfurem meus pés e Eu fique suspenso, dilacerado, esgotado de forças, com o sangue correndo às torrentes de todo o meu corpo, transformado numa chaga, de modo a se cumprir o que disse Isaías: sou um verme, não um homem, o desprezo dos homens e a gargalhada do povo? Mas, meu Padre Eterno quer que Eu sofra tudo isso para resgatar os pecados da humanidade, redimir o pecado original de Adão e Eva, dos quais Eu descendo pelas entranhas puríssimas de Maria Virgem. Embora inocente, desejo expiar por eles, como o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo.”
Pois bem, se quisesse, Ele poderia escapar daquelas dores, voltar para Nazaré, ser acolhido por Nossa Senhora e, numa tarde suave, contemplar o pôr-de-sol, conversando com Aquela cuja perfeição era insondável e podia encantá-Lo pela vida inteira.
Contudo, a atitude d’Ele foi outra: “Não, não quero nem devo fugir da Cruz, porque sou Homem-Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnei-me para salvar o gênero humano. Chegou a hora, e o sacrifício — razão de ser de Eu ter as naturezas humana e divina — está posto diante de Mim. Agora tenho que realizá-lo. É lógico e virtuoso que o faça. O raciocínio, baseado nas verdades sobrenaturais que conheço, me impõe: é preciso consumar esse holocausto!”
De todos os seus poros o sangue começa a brotar. A ciência moderna explica que a perspectiva de dores e sofrimentos atrozes pode provocar no organismo essa transpiração de sangue. E foi o que se passou com Jesus: sem ninguém ter tocado n’Ele, a previsão dos tormentos Lhe arrancou o primeiro sangue.
Ele sente em si a incapacidade de sua natureza humana e suplica: “Meu Pai, meu Pai, se é possível afaste de Mim esse cálice, mas — é a vitória da lógica — faça-se em Mim a vossa vontade e não a minha”. É como se Ele dissesse: “Eu não sei como prosseguir, não tenho forças para a enormidade da Cruz que devo carregar, porém uma coisa não farei: é pô-la de lado. Cumprirei a vontade de meu Pai!”
E o Padre Eterno poderia ter dito: “Meu Filho, contento-me com seu oferecimento, e O dispenso da Paixão!” Não o fez. Mandou um anjo para consolá-Lo, sem remover o sofrimento do caminho d’Ele!
Jesus se sentiu fortificado. E compreendeu na sua natureza humana — na divina Ele o sabia desde todo o sempre — que não havia volta atrás. Não se nota n’Ele a menor hesitação. A lógica O faz amar o Padre Eterno sobre todas as coisas. E assim, Aquele que não era apenas o mais alto dos homens, mas o Homem-Deus, subiu o mais alto dos montes, o Gólgota. Sem dúvida o Himalaia supera em altitude o Calvário, mas como este é mais elevado que aquele! Nosso Senhor Jesus Cristo, carregando sua Cruz ao pináculo da montanha do Gólgota, fez incomparavelmente mais do que subir o Himalaia a pé!
A grande montanha a galgar está dentro de nós
À luz desse heroísmo divino nos faz bem contemplar o Santo Sudário de Turim. Este é a perene fixação do ato de vontade eterno: “Eu farei e não abrirei mão do meu dever!”
Reduzido a cadáver, com as mãos inertes uma sobre a outra, com os olhos fechados e os lábios silenciosos… Mas, como esses olhos fechados vêem e como esses lábios silenciosos falam! Quanta coisa Ele diz no Sudário! Em primeiro lugar, aquela deliberação: “Sacrificar-me-ei!”
Foi o amor à verdade e ao bem que levaram Nosso Senhor Jesus Cristo até essa culminância. E é isto que devemos ter em linha de conta, quando comparamos o sibarita com o homem que galga as montanhas.
Vencer os montes, que linda proeza! Mas o pobre do alpinista pode ter levado uma boa quantidade de rum e naquela mesma noite se embriagou no meio da neve. Sim, um homem é capaz de ser valente para galgar montanhas, mas não ter a coragem de ser um marido fiel, nem de — face a uma opção em sua vida — raciocinar com a firmeza e a clareza com que o faz o católico quando se põe na escola de Nosso Senhor Jesus Cristo.
No dia seguinte esse alpinista desce, é festejado pelos de sua aldeia natal… Tudo muito bonito. Mas… naquele dia ele diz uma calúnia, faz um negócio desonesto ou mente com vileza. O que é esse homem? É um pigmeu, um anão que escalou uma montanha.
O grande cume a galgar, o extraordinário alpinismo a empreender está dentro de nós. A beleza de nossa vida consiste em termos no nosso interior imensas montanhas magnificamente nevadas, dos flancos das quais pendem abismos terríveis, e devemos ser os alpinistas de nós mesmos.
Ao sermos criados, Deus teve um desígnio para cada um de nós, com vistas a que alcançássemos tal grau de virtude e ocupássemos no Céu um determinado trono. O verdadeiro alpinismo é galgar de virtude em virtude até conquistarmos esse trono, e aí cantar as glórias de Deus por toda a eternidade!
Para chegar a isso, cumpre fazer o desagradável contra nós mesmos.
Se certo sacrifício necessário me repugna, penso em Deus que me criou, em Nosso Senhor Jesus Cristo que me remiu, em Nossa Senhora cujas entranhas virginais, por obra do Espírito Santo, geraram Nosso Senhor; penso na Santa Igreja Católica e em tudo que me diz: “Meu filho, cumpre o seu dever!”
Ao contrário do demônio, que sempre nos toma o que nos havia prometido, Deus costuma nos dar muito mais do que sacrificamos por Ele. Daí a promessa do Evangelho: quem oferece alguma coisa a Deus — ou seja, cumpre os mandamentos — recebe o cêntuplo nesta Terra e depois a vida eterna.
“Queremos o sacrifício, o triunfo e a glória!”
Mas, os caminhos que levam aos cumes das montanhas são sinuosos. E quem quer atingir o píncaro, às vezes tem de descer. Nós estamos agora nesse entusiasmo e nessa alegria, sentindo a dignidade de quem é capaz de se sacrificar. Porém, esse não é um estado de espírito constante em nossa vida. Não raro, a alegria e o entusiasmo se desfazem, dando lugar a uma bruma em nossa alma. Há dias em que não temos vontade de cumprir o dever, em que não temos ímpeto de alma para voar, e nos sentimos moles como sibaritas, embora tenhamos levado uma existência de sacrifício.
Deus permite essa situação. Ele retira de nós os auxílios sobrenaturais pelos quais a vida fiel parece tão alegre, e nos vemos abandonados, tristes e sem força. São as horas em que o coração d’Ele está mais perto do nosso e em que Ele nos diz: “Meu filho, chegou o momento da aridez e da dor, para provar se é capaz de ser fiel agora como o foi na alegria. Tudo lhe parece enfadonho, você tem a tentação de pensar continuamente noutra coisa, está fascinado por algo que não presta, e não lhe sai da cabeça. Estou lhe deixando longe do prazer que teve, porque desejo que você se dê inteiro. Há de chegar um momento interior em que me dirá: ‘Meu Pai, meu Pai, por que me abandonastes?’. Mas tenha a convicção de que, depois da hora mais negra, semelhante à de uma morte, virá a ressurreição das alegrias de outrora, mais esplêndidas e maiores do que antes. Portanto, meu filho, passe esse vau!”
E nós podemos nos voltar para a Santíssima Virgem e Lhe suplicar: “Maria, Mãe de misericórdia, eu não tenho coragem para dizer sim. Como Ele, no Horto das Oliveiras, também disse: ‘Meu Pai, se for possível afaste esse cálice’, dizei a vosso Filho por mim: ‘Se for possível, afaste dele esse cálice’. Se não, minha Mãe, alcançai-me graças, dai-me forças e eu atravessarei a prova. No fim do túnel tenebroso em que estou, ó Maria, verei brilhar a vossa luz!”
Isto é ser o contrário do sibarita. E a vida a que fomos chamados, graças a Deus, é essa. Se ela não tivesse esses perigos, aplicar-se-ia a nós a expressão de um poeta francês: “Quem vence sem perigo, triunfa sem glória”.
Quando morre um católico em estado de graça, há uma glória reservada para ele no Céu, porque, se faleceu como justo, ele ganhou uma guerra. E o mérito de a ter vencido é tanto maior quanto mais sacrifícios, riscos e perigos teve de enfrentar nessa conquista.
Nós queremos o triunfo e a glória, o sacrifício e o perigo.