Ninguém que esteve no céu empírio voltou para contar como são aquelas paragens de luminosidade, refrigério e paz. Ninguém… Esta afirmação não é exata. Alguns santos contaram haverem sido arrebatados em vida ao paraíso celestial. O difícil era depois conseguir descrever em termos humanos as maravilhas que viram. É o caso de São João Bosco. Tomando as notas que o fundador dos salesianos nos deixou a tal respeito, Dr. Plinio faz considerações sobre aquele lugar reservado para os justos.
Em uma de suas célebres visões do Céu, São João Bosco nos descreve um cenário repleto de belezas paradisíacas, superiores a quaisquer maravilhas deste mundo, embora lhe parecessem naturais. Então, árvores feitas de folhas de ouro e flores de brilhantes, raios de sol transluzindo numa claridade arrebatadora, e sons cuja harmonia excedia às mais belas músicas engendradas pelo talento humano. Nesse lugar ele viu também São Domingos Sávio, seu discípulo perfeito falecido há pouco, e que se lhe apresentava como magnífico cicerone, vestindo túnica alvíssima, cingida por um cinto cravejado de pedras preciosas, tão abundantes e tão bonitas que não tinham paralelo com as da terra. Contudo, por maiores que fossem, todos esses esplendores — frisava São João Bosco — não se encontravam no verdadeiro Céu, no Paraíso da visão beatífica.
Ora, para certos espíritos contemporâneos essa singularidade pode ter algo de paradoxal, e suscita neles a seguinte objeção: “Se existe um Céu tão mais belo do que todas aquelas grandezas naturais, qual a razão de ser delas? Não seria melhor que só existisse de uma vez o próprio Céu, sem essa espécie de lindo patamar que o antecede? Em última análise: onde pode haver o magnífico, que lugar tem o excelente ou o simplesmente bom?”
As necessárias belezas do céu empíreo
Permito-me adiantar-lhes uma resposta, dada com as devidas cautelas de quem é leigo no assunto. Parece-me, entretanto, que essa região onde São João Bosco esteve corresponde ao que nos ensina o grande teólogo Cornélio a Lápide a respeito do céu empíreo. Com efeito, baseado na opinião de vários santos e doutores da Teologia, professa ele a idéia de que, ao lado do Céu dos Céus onde veremos a Deus face a face e a nossa transbordante alegria será inexprimível — há um Céu material, de magnificência igualmente indizível, no qual nossos corpos poderão desfrutar, eles também, o prêmio de uma eternidade feliz.
Que valem os vitrais das catedrais, as estrelas do céu ou os reflexos do firmamento sobre as águas do mar, em comparação com um só minuto da visão do olhar de Jesus?!
Essa sentença é inteiramente lógica e compreensível. Sendo o homem composto de alma e corpo, e se a doutrina católica nos ensina que, condenado, ele sofrerá no inferno penas corporais e espirituais, por que não haverá no Céu, em contrapartida, uma recompensa para o corpo assim como tem a alma? E por que não existirá, portanto, no celeste Paraíso um lugar onde o corpo humano, glorificado, expurgado de todas as misérias desta vida e já na imortalidade, possa fruir de todas as delícias castas que lhe são próprias, ao mesmo tempo em que sua alma se acha perdida nos gáudios da visão direta de Deus? Não será esta uma necessidade decorrente da eterna união entre alma e corpo ressurrecto?
Essas celebridades teológicas opinam que sim. Não se trata, convém frisar, de um dogma da Igreja, mas de uma doutrina a que se pode aderir sem receios de incorrer em heresia. Alguns estudiosos que aprofundaram essa tese chegam mesmo a sustentar que, nesse céu empíreo, os corpos terão suas funções fisiológicas comuns, sem contudo — e de uma forma misteriosa — produzir qualquer espécie de podridão. Mas, uma vez que o estômago tem prazer em comer, o homem se alimentará de manjares inigualáveis; uma vez que os pulmões têm gáudio em respirar, eles respirarão os ares mais límpidos que jamais sorveram. E assim por diante, nosso corpo terá alegrias imensas, afins com os júbilos da alma imersa na visão beatífica.
Os teólogos vão mais longe em suas excogitações. Para eles, os próprios Anjos, que são puros espíritos, far-se-ão notórios de algum modo ao homem ressurrecto. Ocasionando determinados movimentos no ar, modelando certas formas ou produzindo cores e sons paradisíacos, eles nos darão uma idéia de como são. À maneira do músico que usa de um instrumento para transmitir ao ouvinte uma impressão, eles, Anjos, se servirão daqueles elementos para nos deleitar. E nada impede que imaginemos brisas ou ventos, com frescores ou tepidezes diversas, pousando sobre nossas peles como cetins, como sedas, como veludos. E que nos dêem também alegrias retas, virtuosas, símbolos das perfeições de Deus que nossas almas estarão contemplando na glória eterna. E nessa conjunção de gáudios temos uma imagem da felicidade perfeita.
O divino olhar de Jesus: fonte de inexcedível alegria
Tudo isso, bem entendido, dentro da mais inteira e absoluta castidade, dentro da santidade mais total correspondente a cada um nos vários graus de santidade existentes no Céu. Portanto, com a alegria diáfana da consciência em ordem, do dever efetivamente levado a cabo, e depois da merecida purificação feita no purgatório. De maneira tal que tudo está pago, tudo perdoado, e sobre nós pousa o olhar bondoso e jubiloso de Nossa Senhora, o olhar tão poderoso de Nosso Senhor Jesus Cristo, o olhar do próprio Deus Encarnado!
Para nós termos uma idéia do que simplesmente o olhar de Jesus pode produzir em nós, pensemos no que foi, acredito, o olhar mais famoso da história. Aliás, como seria bonito se nos fosse possível retratar esse capítulo especial do existir da humanidade, que é a história dos olhares! Dos olhares magníficos, esplendorosos; dos olhares suaves, doces ou tristes; dos olhares de esperança, dos olhares de perplexidade, dos olhares de indagação, dos olhares de ordenação e de planejamento, dos olhares de justa censura e punição. Seria algo de extrema beleza!
Pois bem, de todos esses olhares de que me lembre, nenhum é tão célebre quanto aquele que Nosso Senhor deitou em São Pedro durante a Paixão, e que transformou o Apóstolo de um instante para outro. Quem é capaz de conceber a força desse olhar? A São Pedro tinham sido entregues as chaves do Reino dos Céus; sobre ele Jesus prometera edificar sua Igreja, e entretanto, São Pedro se endureceu, se acovardou e negou o Homem-Deus. O galo cantou, ele caiu em si, Nosso Senhor passou e o fitou nessa hora… Olhou-o, e São Pedro começou a chorar. Um pranto que só cessou com o martírio do primeiro Papa.
Ora, se o olhar de Nosso Senhor pode exprimir tanta tristeza que mude a vida de um homem, e que transforme o tíbio numa tocha de admiração, de quanto gáudio o olhar de Jesus poderá encher um homem? Procuremos imaginar o olhar d’Ele, por toda a eternidade, pousando complacente sobre cada um de nós, enchendo-nos continuamente de todo o gáudio de que somos capazes! É tanto, que seríamos propensos a dizer:
“Senhor, para que mais? Não agüento felicidade maior do que essa! Vós me falais do céu empíreo, Vós me fazeis ver a pradaria que extasiou São João Bosco; mas, Senhor, eu me ponho de joelhos e Vos digo: um olhar vosso… Pudesse eu apenas ver um olhar vosso, e em condições tais que, fitando-o, eu visse nele a Vós e a mim, e me sentisse amado por Vós. O que mais, meu Deus? Eu poderia suportar tanto? Custa-me crer que, na minha limitação de criatura humana, eu seja capaz de agüentar durante toda a eternidade esse oceano de perfeições e delícias que é o vosso olhar límpido, profundo, tranqüilo, possante, cambiante de impressões… Um universo, o vosso olhar, movendo-se continuamente diante de mim.
“Meu Deus, o que são os vitrais das catedrais, o que são as estrelas do céu, o que são os reflexos do firmamento sobre as águas do mar em comparação com somente um minuto dessa visão do vosso olhar? Se, como reza o Evangelho, uma só palavra vossa e minha alma será salva, se tanto pode uma palavra — meu Deus! — quanto não poderá o vosso olhar?! Senhor, um único olhar vosso para mim, e minha alma estará salva.”
Só isso? Nos momentos em que eu me sentisse pequenino para esse olhar, vê-lo se dirigir a Nossa Senhora; vê-Los, Mãe e Filho, fitarem-se mutuamente e se perderem um no olhar do outro — que cena! Perceber o eterno e incessante co-relacionamento de ambos, não apenas nas expressões de alma, mas também nos gestos e atitudes de seus corpos gloriosamente ressurgidos, transmitindo extraordinárias impressões que meus olhos materiais e todo o meu ser, extasiados, também poderão contemplar!
Quem é capaz de conceber semelhante ventura? Nossa Senhora sentada em um trono próximo ao de Jesus, prolongando pela eternidade os colóquios que mantinham em Nazaré, em Belém, e naqueles nove meses em que Ela era o sacrário ambulante onde Ele morava! Quem, repito, pode descrever igual maravilha?
Pois essas são as alegrias que nos estão reservadas no Céu. Ao lado do gáudio ainda mais incomparável de ver Deus face a face, na sua natureza de puro espírito, eterno e perfeito.
A recompensa demasiadamente grande
Essas cogitações nos trazem à lembrança as palavras de Deus na Escritura, repassadas de harmonia e belezas incomparáveis, quando Ele diz: “Serei Eu mesmo a vossa recompensa demasiadamente grande!”
Sem dúvida, com tal promessa Nosso Senhor queria se referir ao prêmio inexcedível dessa dupla visão que nos será franqueada na eterna bem-aventurança: uma, a contemplação com nossos olhos carnais da sua celestial formosura de Homem-Deus; outra, o vê-Lo enquanto puro espírito, face a face, com os olhos da alma.
A idéia desse prêmio tão superior nos conduz de volta à questão que deu origem a esta nossa meditação: se tal é a felicidade extrema, aquele céu empíreo que concebemos tão magnífico, como nos parece pobre! Respirar? Comer? Quando sobre nós pousa um olhar divino? Quando podemos ver diretamente a Santíssima Trindade? De que é que servem essas etapas intermediárias em relação ao Bem supremo? Por que Deus as fez tão extraordinárias, se éramos chamados a esplendores ainda mais altos?
Acontece que essa passagem direta para o mais sublime não está de acordo com a natureza humana, nem com a ordem da obra realizada por Deus. De fato, fomos criados tais que lucramos em ir conhecendo e apreciando as coisas pelos seus sucessivos degraus. E para isso convém que cada degrau seja maior que o outro, oferecendo-nos sempre uma surpresa: “Ah! Então existe mais isto?! E mais aquilo que eu não imaginava!”
Cada novidade dessas nos prepara para o gáudio total, e constitui um complemento da felicidade perfeita. Elas são necessárias ao nosso corpo que, sem conhecê-las e experimentá-las todas, não se sentiria em harmonia e proporção ideais com a alegria da alma. Assim, obedecendo aos desígnios de Deus, ambos, corpo e alma, ascendem àquela recompensa demasiadamente grande, àquela dádiva que nos deixará repletos de grandeza!