Somente na sadia e equilibrada reversibilidade entre o conhecimento conatural e o racional a alma elabora adequadamente um panorama intelectual. Uma reta educação deveria orientar-se neste sentido, servindo-se dos elementos fornecidos pela inocência.
O Positivismo parte da ideia de que só é real aquilo que os sentidos captam. Aquilo que não captaram não é real. E então, o positivo — daí o Positivismo —, aquilo que certamente é verdadeiro, é o sensível. Por causa disso também, o que com certeza é verdadeiro é o ponderável. O que não é sensível ou que venha pelos sentidos, mas não é ponderável, pela criteriologia do Positivismo, fica excluído.
Um processo de educação que deveria ser seguido
E nesse pedido do positivo, entra um tanto misturado algo meio positivista, da apresentação da coisa nos seus aspectos sensíveis e explícitos. E nisso o pedido solicita o impossível, o contraditório, porque pede a coisa em termos de mera razão, e não em termos de conaturalidade.
Esse pedido do positivo tem lados criteriológicos evidentemente bons, nem vale a pena perder tempo com eles, são óbvios. Na escola de Auguste Comte1, o positivo é aquilo que passa pelos sentidos, e por causa disso também, criteriologicamente, é aquilo que se pode definir tirando da ponta do raciocínio. Se é assim, o desejo do positivo, a respeito de mil coisas que penso, acaba fazendo um pedido, subconscientemente, um tanto positivista, querendo uma definição e que a coisa fique ao alcance dos sentidos. E isto não pode ser, por causa do que vou passar a expor agora.
Há uma série de conhecimentos que estão na inocência e que são uma harmonia misteriosa, que não sei se é explicitável inteiramente, mas harmonia entre o racional e o conatural, entre o conhecimento por racionalidade e o conhecimento por conaturalidade.
De maneira tal que na alma de uma criança as duas coisas se misturam; a criança às vezes raciocina e às vezes tem a intuição de uma coisa, e ela compõe, com a verdade conhecida por raciocínio e a conhecida por conaturalidade, um só todo misturando uma coisa com a outra, sem a menor preocupação e sem nenhum problema criteriológico. E isto é sadio. Porque se ambas as coisas são meios de conhecer a verdade, é saudável que se tome umas e outras verdades e se componha com elas elementos para chegar a outras verdades.
É preciso, na disciplina do espírito formado por nós, que a pessoa tenha a propensão, o programa de levar o racional tão longe quanto possível e, mesmo quando por conaturalidade alguma coisa parecesse muito clara, ter verdadeiro gáudio, verdadeiro desejo de, tanto quanto possível, pôr a coisa em termos silogísticos. Isto é, a meu ver, um sinal da saúde do espírito.
Por quê? Porque o conhecimento maior, num certo sentido da palavra, é o racional; é o mais forte, o mais controlável, o mais seguro e, portanto, se deve ter por ele grande apreço e levá-lo, tanto quanto possível, longe.
Mas, ciente de que não é o único conhecimento que o homem tem; este possui também o conhecimento por conaturalidade, de que fala São Tomás2, que não é substituível e que se trata de afinar, de tornar mais sensível, mais perspicaz por todo um processo próprio de educação que deveria ser dado, como é feito com o lado racional do homem, ainda no tempo em que se é menino.
É da junção harmoniosa dessas coisas que a pessoa monta o seu panorama.
Modos de comunicar o inefável
Então, a apresentação do lado positivo sem indicações, sem ressaibos positivistas, daria a apresentação de um conjunto no qual muitas coisas podem ser ditas de um modo “fável”, e outras coisas devem ser comunicadas de um modo mais ou menos inefável — sempre levando o modo “fável” tão longe quanto possível —, por imponderáveis, que a linguagem humana não consegue transmitir.
Então, como se comunica de um para outro?
O normal é que o próprio modo de ser do indivíduo comunique os inefáveis que ele vê e que ele tem. E que o próprio da civilização, da educação dada pelo país, pela região, pela família, é um adelgaçamento, uma finura, um requinte de todos esses meios imponderáveis de comunicar que, com a clareza da sua linguagem própria, transmite uma porção de coisas.
A Rainha Elizabeth, por exemplo, dá uma verdadeira aula do que é a instituição monárquica pelo seu modo de ser. Um professor de Oxford poderia dar aulas magníficas, magistrais sobre a função monárquica, mas ele nunca diria o que ela diz.
Como, numa outra linha, a concepção da monarquia católica que está expressa no Escorial, Versailles não proporciona. E a concepção da aventura meio guerreira e sacral a Torre de Belém dá, ao menos no meu modo de sentir, como nenhuma outra torre. Vou dizer uma coisa que pode parecer uma enormidade: nem as torres de Notre-Dame, que não foram feitas para isso.
E haveria toda uma formação para dar neste sentido, de curso secundário — porque é onde isso se pega —, que depois duraria o resto da vida, e que tenho a impressão de ser um dos aspectos que explicam a genialidade da Companhia de Jesus, não se interessando tanto pelas universidades quanto pelo curso secundário.
Muito “vagabundo” que há por aí em aula, é aluno que faz fronda contra o curso meramente racional, que é uma coisa simplesmente horrorosa! Hoje me dou conta de que só fui bom aluno porque instintivamente, intuitivamente, completava por minha própria conta o que as aulas racionais davam. Porque, do contrário, não aguentaria. Aquela coisa é horrível.
…os fotógrafos tinham vontade de apanhar a realidade positivista como era. Eles começaram a fotografar estados de espírito, imponderáveis…
Aquilo faz uma seleção às avessas: os mais dotados numa coisa e noutra ficam à margem. E todos nós temos uma espécie de prevenção contra o primeiro aluno, porque é um homem que se amputou mentalmente e tirou toda a conaturalidade.
Progresso da arte fotográfica
Isso torna compreensível que eu tivesse toda uma coleção de exemplos, de objetos que abrisse o espírito de uma pessoa para os vários aspectos dos imponderáveis, dos ambientes, costumes, etc.
O que seria, aliás, muito mais fácil hoje em dia do que no meu tempo de menino, porque a arte fotográfica é uma das poucas coisas que progrediram, apesar dessa derrocada toda. E realmente há fotografias que são verdadeiras obras-primas de observação.
Numa revista, por exemplo, vi uma fotografia que uma pessoa sem senso dos imponderáveis não saberia avaliar: era uma mulher de uma idade indefinida, de costas, de pequena burguesia — a fotografia deixa isso claro —, que teve uma educação um tanto melhor do que o nível que ela tinha naquele momento, que está entrando de barco pelo estuário daquele rio de Nova York, o Hudson. Parece, por aquela fotografia, que o Hudson penetra fundo pelo meio dos arranha-céus. A mulher está passando em frente à ilha, com aqueles edifícios, com a mão na corda do barco para se apoiar, olhando, olhando, olhando.
Sem ver o rosto da mulher, perceber o olhar dela e tudo quanto ela está pensando, quer dizer, aquela riqueza enorme, aquele poder enorme, e ela com vontade de pegar uma migalha e, se for possível, não apenas uma migalha, mas um bom pedaço daquele “bolo” para ela, sentindo que isso é ao mesmo tempo atraente e difícil.
Sentindo-se pequena, mas com apetite não pequeno, e olhando aquilo desfilar, a partir do grau zero, porque se percebe que ela não tem nada a não ser uma maleta com três ou quatro objetos, e roupa para trocar de um dia para outro, e está enfrentando tudo aquilo. Então está olhando meio contemplando, meio com medo da aventura em que se atirou.
Para que se possa pegar isso de costas numa mulher, acho uma arte; eu quase recortei essa fotografia.
É que isso representa um verdadeiro progresso, que a meu ver seria imbecil se comparar com a pintura. Porque pintura é outra coisa. Muitos partiriam daí para comparar com a pintura e concluiriam que a fotografia é imensamente inferior à pintura. É evidente que é, mas tem ambições e possibilidades que a própria pintura não possui. E modos de pegar imponderáveis que a própria pintura não tem. É outra arte.
A fotografia, como é hoje, diferencia-se da dos anos trinta, muito inferior. Na primeira fase da fotografia, os fotógrafos tinham vontade de apanhar a realidade positivista como era. Eles começaram a fotografar estados de espírito, imponderáveis, bem mais tarde, e vão alcançando nisso possibilidades notáveis.
Então, com a arte fotográfica de hoje — sei que vou chocar no que vou dizer —, mas preferivelmente branco e preto à colorida, pois aquela tem mais imponderável, o sujeito imagina a cor que ele quer naquilo. Eu não excluo inteiramente o colorido, já seria outra unilateralidade, mas dou uma preponderância ao branco e preto.
Então, com material assim seria possível se fazer uma verdadeira maravilha, pegando, por exemplo, um adolescente, ou mesmo um homem feito, e dizer: “Agora você vai ver o olhar de uma pessoa fotografada de costas. Mas como é possível? Olhe aqui esta fotografia!” Mas é preciso ensinar a pessoa a perceber isso.
Mais ainda, imagine como é o rosto da mulher e o desenhe, se tiver talento para tal. Aí já entra uma criação dele, que o fotógrafo não insinuou. Poderíamos fazer maravilhas neste sentido, e talvez as façamos no Reino de Maria. Nesse ponto sou adictíssimo à fotografia. E não perco a seção de fotografia de certas revistas. Há coisas curiosíssimas neste sentido.
Monumentos fotogênicos
Então, fazer as duas educações e tomar qualquer coisa como exemplo. Não sei se ainda se usa atualmente uma palavra utilizada no meu tempo de moço: fotogênico. Há monumentos fotogênicos, mais uns do que outros. Acho, por exemplo, algumas coisas fotogenicíssimas: uma é a ponte sobre o Tâmisa, o Palácio do Parlamento, fotografado não de perto, mas de longe, com certo recuo.
Outra é Notre-Dame. É um hino! Uma coisa do outro mundo! Eu gostaria de aprender a fotografar para tirar fotografias de Notre-Dame, nos vários ângulos; seria meu álbum, não precisaria mostrar a ninguém. Ficaria em casa colocado em cima de uma mesa para eu ver quando quisesse.
Também, a velha Torre de Belém. Ela é fotogênica!
Há uma torre enigmática, torta, das torres mais fotogênicas que há: é a torre do palácio velho de Florença, Palácio da Senhoria. A torre não fica bem no meio da fachada, mas um pouco torta.
Acho artística a Torre de Pisa. Ela não costuma ser elogiada enquanto artística, mas só enquanto singular. Sem embargo, tem um charme extraordinário. Parece-me bonita, ela me agrada.
Poderíamos, por exemplo, fazer uma coleção “Como as torres falam”. E teríamos a possibilidade de chegar a formar um consenso, através de terceiras coisas, sobre os recônditos de nossas almas, que é prova do que estou dizendo. O que eu disse a respeito da mulher encostada no cordame e das torres, fez-nos conhecermo-nos num ponto que a palavra não exprime.
Quer dizer, todos sentimos, a respeito de nós, o seguinte: fizemos uma pequena descoberta que é um buraco de fechadura, através do qual se vê fundo. Quer dizer, todos nós vemos do mesmo modo essas coisas.
Então, na apresentação do positivo suporia uma parte de raciocínio, na medida do possível. Quantum potes tantum aude. Quanto possas, tanto ouses navegar nessas águas. Mas, complementado por isso que deveria ser o nosso formar, o nosso fazer.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 28/5/1986)
1) Filósofo francês, fundador da Sociologia e do Positivismo (*1798 – †1857).
2) Suma Teológica II-II, q. 45, a. 2.