jueves, noviembre 21, 2024

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Requintes inéditos do maravilhoso

Analisando mais uma obra do famoso pintor francês Claude Lorrain, Dr. Plinio nos oferece ensinamentos sobre o atuar humano, discernindo novos e interessantes aspectos inerentes ao maravilhoso, com os quais este se requinta e eleva.

Como temos visto, Claude Lorrain é o pintor de uma das formas de maravilhoso. Vamos considerar mais uma de suas obras e depois analisar a crítica feita por um comentador italiano que prefaciou um álbum com pinturas desse artista.

Descrevendo o fantástico e o irreal da paisagem

Percebam o fantástico e o irreal da cena. É manifestamente um porto. Observem os navios, os barquinhos lá ancorados, todo o movimento dos personagens; tudo isso corresponde a um atracadouro. O escuro da água e o modo de se moverem as ondas indicam que esse porto é cercado por um mar profundo.

O cais tem junto a si construções magníficas, entre elas uma torre ainda medieval junto ao muro que separa um parque com arvoredo. Até mesmo nesse lindo palácio, onde a influência medieval ainda não é estranha, nota-se que o enquadramento do portal de entrada lembra muito uma porta com ponte levadiça dos castelos da Idade Média. Porém, a influência clássica também se manifesta nos dois jarrões que estão no alto do terraço.

A parte superior do edifício é renascentista, mas de uma construção tal que quase daria a ideia de uma igreja, se o conjunto do edifício não sugerisse, pelo menos para mim, a ideia de uma residência.

Mais adiante se avista outra torre, pois é natural que um porto seja fortificado. Contudo, é uma grande construção com aparência de ruína abandonada, porque as janelas parecem não ter vidros, nem venezianas, e não se percebem móveis dentro, conferindo um pouco de melancolia à impressão geral do quadro.

Claude Lorrain (CC3.0)

Ao fundo, o Sol representado de duas formas curiosas. De um lado, refletido no mar tão nitidamente que dá a impressão de ser ele próprio quem brilha e espalha sua luz sobre as águas escuras. Mas de outro lado, visível e resplandecente no céu.

De qualquer maneira, a grande beleza do quadro está na luz que o inunda, a qual eu não chamaria propriamente de irreal, a não ser porque muito raras vezes ela ilumina dessa forma. Mas, quando o faz, é de um modo tão esplêndido que o homem fica encantado, e sob esse aspecto, tem-se a impressão de que Lorrain exagerou o esplêndido, uma vez que, na paisagem, a iluminação está discretamente maior do que a própria luz solar, ou em certas formas desta, quando aparece na sua maior beleza.

Ademais, na pintura apresenta-se a ideia de toda uma avenida de mar cercada de palácios muito próximos uns dos outros. De maneira que quase se tem a ilusão de uma rua. Esta justaposição de palácios magníficos e de naves que vêm e vão de um extremo do mundo para outro, a aventura do comércio, das navegações, das missões, tudo isso dá indícios de magnificência e esplendor na paisagem um tanto acima da realidade.

Resumindo, o maravilhoso do quadro reside no fato de imaginar a composição de um porto ou edifícios desse tipo, como também, no modo pelo qual a luz do Sol banha tudo isso. Inclusive o elogio que fiz em ocasiões anteriores1 da luz pousando sobre as árvores, aqui seria especialmente merecida.

Sossego nobre e elevado dentro do maravilhoso

Apesar de toda a inquietação que a náutica trazia consigo naquela época – era a grande aventura dos homens – Lorrain não dispensou o sossego dentro do maravilhoso, pois é uma das notas mais características nas pinturas dele. O maravilhoso em geral provoca uma nobre tensão. Aqui não. De tal maneira o homem tem o hábito de viver nesse ambiente que, ao mesmo tempo está inundado por ele, saboreia-o, mas não lhe dá uma atenção explícita. É o maravilhoso sossegado, debaixo de cujo esplendor a vidinha cotidiana se desenvolve banhada nele.

Agence Meurisse (CC3.0)
General Joffre e Marechal Foch, em 2 de abril de 1923

Analisem todos os personagens presentes. Estão conversando no cais como os moradores das pequenas cidades do interior conversam na estação de trem, para ver quem entra ou sai; eles fazem uma rodinha. Observem a perfeita naturalidade da conversa; é gente com tempo livre e tem o que conversar; implicitamente, estão como que flutuando no éter da luminosidade, dando a seguinte impressão: todo o ritmo das pulsações e pensamentos deles, até o modo de se relacionarem entre si, é amenizado e elevado por essa atmosfera e, sobretudo, pela luz que é a alma do ambiente.

Nessas condições, temos Claude Lorrain como o pintor que assinala o veio de uma época inclinada ao maravilhoso por muitos meios, e ao inteiro bem-estar dentro do sossego e do prazer, mas muito nobre e elevado. Dir-se-ia que assim se sentiria um fidalgo que pudesse dispor de um grande e belo salão no palácio de Versailles e passasse a vidinha dele tomando sua xícara de chocolate ou o seu cafezinho, inundado das grandezas definitivas, inarredáveis do Roi Soleil2.

Esta é a forma de maravilhoso que o quadro apresenta, pois, embora contenha os defeitos e as limitações do Ancien Régime3, em comparação com a hediondez do mundo moderno, realmente eleva o espírito.

Claude Lorrain (CC3.0)

Jacques Laumosnier (CC3.0)
Luís XIV e Felipe IV na Ilha dos Faisões, em 1659 – Museu de Tessé, França

Uma discreta melancolia inerente à grandeza do maravilhoso

Passarei a considerar duas doutrinas ali contidas: a do maravilhoso enquanto existente na terra e a do valor da melancolia; permitindo-nos fazer uma apreciação da mentalidade do homem moderno, pois envolve uma interessante questão de princípios, mais psicológicos do que propriamente especulativos.

Analisemos essas duas doutrinas sob a seguinte indagação: existe, nesta vida, um maravilhoso autêntico do qual esteja ausente uma certa melancolia?

Tomemos como exemplo um homem que deseja o êxito a cem por cento, o happy end, e outras coisas inerentes à atual sociedade desenvolvimentista. Quando, por via natural, esse homem toca no ápice do maravilhoso realizando seu ideal, eu acredito que o espírito dele pode assumir duas posturas.

De um lado, ele compreende que isso é uma imagem e semelhança de Deus e, portanto, atinge um ápice de alegria. Mas, por outro aspecto, o indivíduo também percebe aquilo que São Tomás nos ensina a esse respeito: se as criaturas representam o Criador é porque de algum modo há uma analogia com Ele; mas, sobretudo, Deus não é nem pode ser como elas, pois é insondável e incomparável a tudo. De modo que, no fim, fica uma certa saudade, nostalgia do que nós conhecemos. De onde todo grande prazer traz consigo uma notazinha de melancolia.

Por onde se pode concluir: aquilo que não tem uma discreta nota de melancolia é meio cafajeste, porque se limita a si próprio e não é capaz de chegar à sua maior altura, não remete para o último pináculo de si mesmo. De maneira que uma discreta melancolia – não se trata de choradeira – suscitada, por exemplo, pelo efêmero que a coisa tem, é inerente à grandeza e me parece em extremo adequada a tudo a quanto se possa atribuir um mínimo de maravilhoso.

Vou dar um caso concreto. O Marechal Foch4 e o General Joffre5 passando pelo Arco do Trinfo depois da I Guerra Mundial. A meu ver, foi o último triunfo bonito e estético que houve na História da humanidade. Os triunfos da segunda Guerra Mundial não tiveram a beleza dos da primeira.

Luis C.R. Abreu
Jesus crucificado (acervo particular)

Quem visse aquele espetáculo, com a população dando vivas, e tivesse apenas a alegria do happy end, seria, a meu ver, um espírito meio “vira-lata”. O espírito verdadeiramente elevado sentiria a beleza daquilo tudo e, ademais, perceberia de modo implícito algo ainda superior a ele, que lhe diria: “Sic transit gloria mundi” – assim passa a glória do mundo. Daqui a pouco esses marechais terão passado pelo Arco e esse triunfo cessará; porém, alguma coisa ficará impregnada nesse lugar para todo o sempre. Ora, também é verdade que será uma mera recordação porque tudo é transitório. E a alma se volta para o eterno.

Contudo, essa melancolia, intensamente sentida, também pode chegar a ser pungente. Mas não o é na sua primeira manifestação, porque, senão, o maravilhoso perderia o seu caráter normal de ser esplêndido.

Outra questão muito bonita seria: existe maravilhoso na dor, no desastre e na catástrofe?

Certa ocasião li em um autor a expressão la tour de la doleur – a torre da dor. Pode-se falar de uma dor monumental como uma torre? Portanto, de uma dor magnificamente pomposa, um palácio da dor? Há dores com uma magnificência e uma grandeza que no maravilhoso festivo não há?

Este último ponto é indiscutível, porque a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo foi isso. São Paulo chegou a dizer que ele não saberia pregar a não ser Jesus Cristo crucificado (cf. 1Cor 1, 23). Deus que criou e dispôs todas as maravilhas festivas da Criação, entretanto, quis que houvesse um trágico mais grandioso do que todas essas festas: a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso não é contestável.

Crítica de um autor italiano a Claude Lorrain

Por fim, consideremos a crítica feita pelo comentador italiano a Claude Lorrain.

Ele diz o seguinte: Esse quadro tem, de fato, uma apresentação muito boa da luz. Mas não se pode confundir um dos componentes do quadro, que é a luz, com o todo. E se o quadro é muito forte do ponto de vista da luminosidade, significa que todos os demais elementos nos quais não há jogo de luzes são apenas comuns. Por exemplo, não se pode dizer que o prédio seja uma maravilha. Ele apenas é um casarão muito pitoresco. Mas a torre medieval é como qualquer outra, o jardim cercado pelo muro é semelhante a qualquer jardim; a forma dessas escadas ou o palácio vazado, ao fundo, todas essas coisas são muito comuns.

Percebe-se que o pintor quer apresentar algo, mas nada disso é muito expressivo, somente a luz o é, e até se poderia dizer que ela “devorou” o quadro inteiro. Perde-se a noção de conjunto quando um elemento “devora” os outros, visto que o conjunto sempre vale mais do que uma das partes. Portanto, esse quadro tem menos valor pelo fato de ressaltar apenas uma das partes e não a sua totalidade.

Claude Lorrain (CC3.0)

A pergunta que surge, então, é a seguinte: não será uma fraqueza de Lorrain representar as coisas de modo tão comum? Se ele fosse verdadeiramente um bom artista, seria capaz de fazer o resto também bom. Logo, Claude Lorrain é um pintor de segunda categoria.

Verdadeira noção de beleza num conjunto hierárquico

O primeiro princípio que propõe esse autor, e com o qual não concordo, é a noção de conjunto. É verdade que o conjunto vale mais do que as partes, mas não se pode tirar disso uma conclusão muito cartesiana, pois a beleza do todo pode ser realçada pela ação de um elemento eminente e simbólico.

Eu dou um exemplo concreto. A nau que ali aparece é uma caravela e, como tal, foi retratada como sendo uma construção marítima comum, com as velas características. A embarcação, na sua totalidade, forma um conjunto. Mas, de tal maneira a nau exprime a beleza daquele todo que, sendo ela muito mais bonita do que o conjunto, absorve a expressão simbólica deste e o realça. Em síntese, ela está inserida no conjunto, não é um elemento isolado.

Donde acontece que, às vezes, quando num conjunto há um elemento excelente, o todo lucra até pelo fato de os outros elementos secundários ficarem um pouco negligenciados. Ora, isto não é absolutamente uma falta de senso do conjunto, mas uma excelência deste. É aplicação do princípio monárquico de forma a apresentar o todo enquanto personificado, simbolizado por um elemento capital.

Claude Lorrain (CC3.0)

De maneira que o princípio dado pelo autor italiano, de estar tudo sempre bem arranjadinho para se notar o conjunto, eu não contesto como regra geral, mas nego que não tenha suas exceções, e estas podem ser geniais. Eu acho que Lorrain abriu exatamente uma exceção na apresentação comum dos elementos, realizando de um modo especial a regra geral, e não a infringindo.

Trata-se de um tal dégagé6, se quiserem até um négligé7 do excelente – tão seguro de si que não se apresenta retesado, mas com certa bonomia – que reforça a nota fundamental.

A meu ver, nessa posição manifesta-se um requinte. Encontramos um exemplo desse requinte no quadro de Claude Lorrain, o qual confere aos elementos secundários uma possibilidade de beleza que eles não teriam sem a magnificência da luz. O resto ele negligencia, para realçar a luz.

(Extraído de conferência de 14/1/1977)

1) Ver Revista Dr. Plinio n. 280, p. 33-34.

2) Do francês: Rei Sol. Título dado a Luís XIV.

3) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

4) Ferdinand Jean Marie Foch. Marechal francês comandante-em-Chefe das forças aliadas (*2/10/1851 – †20/3/1929).

5) Joseph Jacques Césaire Joffre. General francês (*12/1/1852 – †3/1/1931).

6) Do francês: descontraído, informal.

7) Do francês: negligenciado, descuidado.

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