jueves, noviembre 21, 2024

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A felicidade da infância Como se perde? Como se recupera?

Quando a pessoa é inocente, ela tem a felicidade primitiva dos prazeres simples e luminosos que lhe propiciam muita paz. Se cai na impureza, os sofrimentos inerentes à busca desenfreada de gozos passam a impregnar sua vida. Um dos principais auxílios encontrados por Dr. Plinio para a prática da virtude da pureza foi a ideia de que, cedendo às tentações, perderia a grande e tão amada paz de alma que possuía desde a mais remota infância.

Certa ocasião, percorrendo um bairro de média e baixa burguesia, à tardinha, num horário que não costumo passar por aquela região, pude notar que o casario deixava entrever, ora por uma porta, ora por uma janela entreaberta, uma vida que não se nota ao se transitar por ali mais cedo, quando as pessoas ainda não voltaram do trabalho e as residências parecem abandonadas.

O desejo de felicidade

Pude perceber, assim, como tudo estava organizado para aquelas pessoas gozarem um agradável fim de dia, com acento na nota “lar, doce lar”. Na cozinha se preparava um jantarzinho, o confortinho de todos estava assegurado, chegavam da rua, o trabalho havia terminado, uma noitezinha de despreocupação começava, surgiam os comentários a respeito do que houve ou não houve durante o dia. Era a vidoca da noite que se estendia até a hora de dormir.

Muita gente pensa que ter o dinheiro suficiente para levar uma vida como essa, com saúde para não ser perturbado no gozo dessa vidinha, sacia inteiramente o desejo de felicidade do homem. Outros têm ambições mais amplas. Não querem essa casa modesta, mas anseiam por possuir uma mansão no Morumbi; não se contentam com um automovelzinho, porém ambicionam um “automovelaço”, e daí para a frente… Mas, no fundo, é a mesma ideia: julgam que aquilo basta para tornar um homem feliz.

Quando examinamos o que os Santos contam de suas visões e revelações, percebemos que eles afirmam ter tido alegrias muito maiores, inebriantes, que os fizeram vibrar de felicidade, de tal maneira que, às vezes, entravam em êxtase. Então, somos levados a fazer a seguinte pergunta: “Esses Santos têm uma zona de alma capaz de felicidades mais altas e, portanto, não se contentam com o menos? Ou, pelo contrário, inventam essa zona de felicidade que não existe?”

PAVM (CC3.0)
A Escola de Atenas – Palácio Apostólico, Vaticano

Não podemos admitir que eles inventem. Logo, há uma zona da alma capaz de felicidades maiores do que a daquele “pessoalzinho” ou do “pessoalzão” do Morumbi.

Daí vem outra pergunta: As zonas de felicidade são só as de que gozaram os Santos? Por exemplo, os povos antigos, em geral, tinham felicidades culturais, artísticas, muito grandes. Inaugurava-se uma nova estátua ou um novo palácio, era uma festa para a cidade inteira. Num debate público, um filósofo inventava um novo argumento para derrubar a filosofia de um outro, eles assistiam àquilo com o interesse de quem acompanha uma partida de futebol hoje. Sabe-se que, na época das grandes contendas doutrinárias, iam mensageiros de uma cidade a outra, a toda brida, para contar para o povo reunido em praça pública qual a última resposta que tal pensador tinha dado à objeção de outro. Ler Platão era uma delícia, como o é assistir televisão para o homem contemporâneo.

Uma felicidade mais elevada, mais intensa

Se, pois, os antigos encontravam nisso uma felicidade, de que espécie é ela? Em que medida ela está em nós, dorme em nós, faz-nos falta ou não?

Já estou vendo a resposta de uma pessoa com espírito ascético:

— Dr. Plinio, todo esse questionário é pagão porque, uma vez que o Filho de Deus morreu numa Cruz por nós, nosso caminho é o da Cruz. Portanto, essa indagação da felicidade é uma pergunta pagã. O senhor deve só indagar pelo sofrimento, pela dor e pelo tormento. Essa questão da felicidade é uma lorota. Às favas com a felicidade! Eu sou um homem generoso, procuro só a dor.

Eu digo:

— Não, você é um poeta que não aprofundou seu tema. Porque São Tomás de Aquino afirma que, por mais que um homem sofra, um certo fundo de felicidade ele precisa ter em sua alma, do contrário não pode aguentar durante muito tempo a sua dor. E aqui se põe a questão: de que natureza é essa felicidade? É como a do pequeno burguês, do ricaço, do filósofo antigo ou a dos Santos?

Todos nós pertencemos ao mesmo gênero: um grego antigo, um romano do período da decadência, um medieval, nós somos todos igualmente homens. Há em nós capacidade de ser felizes assim? Nossa alma é um piano em cujo teclado cabem todas essas notas? É uma indagação evidentemente interessante.

A essa pergunta podem-se dar, desde logo, certas respostas de caráter experimental. Estamos tratando de uma questão muito elevada que, para a grande maioria das pessoas, é alta Filosofia. Nós conhecemos outrora, em grau maior ou menor, a felicidade que elas conhecem. Entretanto, estamos tendo uma felicidade de outra natureza, é outra nota no teclado de nossa alma que está vibrando. Esta nota dá mais felicidade do que a deles? É evidente que sim.

Quanto mais alto o tema, tanto mais é rica em felicidade a nota correspondente a ele. Por ser nosso tema muito mais elevado do que o da maioria das pessoas as quais, provavelmente, estão com a televisão ligada ou voltadas para tantos outros prazeres que não preciso descrever, nosso espírito está posto num campo mais alto, e isto faz vibrar cordas de nossas almas que nos dão uma felicidade mais elevada, mais intensa, mais saborosa do que a delas.

Flávio Lourenço
Frei Jerônimo de Guadalupe Museu de Santa Cruz, Toledo, Espanha

O senso do ser do homem leva-o para a sua plenitude

Então, qual é o zênite, o ponto mais alto dessa felicidade?

Não perguntamos isso como um gozador da vida, porque sabemos que nos encontramos em um “vale de lágrimas” e só no Céu teremos a felicidade perfeita, mas indagamos como quem se prepara para o Paraíso. A Terra nos dá algo que seja uma figura da felicidade celeste? Como é o Céu? Porque ali está a nota suprema de uma felicidade que inunda as nossas almas inteiras. Porém, qual é a felicidade que o homem pode encontrar na contemplação?

Tanto os antigos quanto os modernos, quando tratam do assunto, reconhecem que na infância o homem tem uma felicidade que o inunda, mas com o tempo ele a perde. Aliás, o conhecido verso de Casimiro de Abreu1 refere-se a isso: “Oh! que saudades que tenho da aurora de minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais!”

Tomem, por exemplo, a famosa afirmação de Napoleão Bonaparte de que o dia mais feliz de sua vida foi o da primeira Comunhão. Vai-se ver qual é a felicidade dele, é a do seu tempo de criança.

No que consiste, como se define e por que se perde essa felicidade? Recupera-se? Como? Que relações há entre ela e a vocação?

Um começo de resposta seria este: O senso do ser do homem leva-o para a sua plenitude. A primeira experiência de uma pessoa é de que ela existe. Há no fundo de todo ser inteligente este bramido: “Eu existo!” Mas ele nota que existe não como um ser pleno, e sim tendente para uma perfeição. Ele tende não para ser absoluto, porque só Deus o é, mas para se pôr em nexo com esse Ser Absoluto e ali encontrar o seu repouso.

Seria mais ou menos como uma planta que nasceu para ser trepadeira. Enquanto ela está no chão rastejando, se vegetal sentisse, dir-se-ia que ela não sentiria bem-estar. Poderia até vicejar, dar flores, mas o próprio dela é estar elevada, e por isso ansiaria por encontrar a treliça ou estaca ao longo da qual pudesse pendurar-se e subir rumo ao Sol.

Assim também conosco. Nós temos uma tendência a subir e a nos relacionar com o Absoluto, o Qual nos dá tudo quanto nos falta, mas a Quem adoramos tanto que, ainda que Ele não nos desse nada, O amaríamos porque Ele é Ele. Este é o ponto onde o píncaro da alma humana deseja ser feliz.

Poesia com profundidade de pensamento e finura de observação psicológica

Neste sentido, é muito significativo o poema de Almeida Garrett2, intitulado “As minhas asas”.

Eu tinha umas asas brancas,

Asas que um anjo me deu,

Que, em me cansando da terra,

Batia-as, voava ao céu.

Na criança é o papel primeiro do subir a essa esfera superior. Ela brinca com as coisas da Terra, mas em certo momento se cansa, no sentido de que se sacia, e então voa para o Céu, para essas maiores considerações.

Eram brancas, brancas, brancas,

Como as do anjo que mas deu:

Eu, inocente como elas,

Por isso voava ao céu.

Aqui está muito bem expresso. Depois, este “brancas, brancas, brancas…”, em português, quando se quer dizer que uma coisa é de uma alvura excepcional, repete-se três vezes. Às vezes até se diz na linguagem corrente: “brancas, brancas, branquinhas”. E o que eram essas asas dele? A tendência, o impulso para subir, que era branco e inocente como o próprio Anjo.

Veio a cobiça da terra,

Vinha para me tentar;

Por seus montes de tesouros

Minhas asas não quis dar.

Veio a ambição, com as grandezas,

Vinham para mas cortar,

Davam-me poder e glória;

Por nenhum preço as quis dar.

Então, ele resistiu às seduções da riqueza, do poder e ostentação, pois nada disso lhe dava a possibilidade de subir para o Céu.

Mas uma noite sem lua

Que eu contemplava as estrelas,

E já suspenso da terra,

Ia voar para elas,

Deixei descair os olhos

Do céu alto e das estrelas…

Vi entre a névoa da terra,

Outra luz mais bela que elas.

Está insinuada a solicitação para a impureza.

E as minhas asas brancas,

Asas que um anjo me deu,

Para a terra me pesavam,

Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta

De enfeitiçados amores…

Fatal amor, negra hora

Foi aquela hora de dores!

Tudo perdi nessa hora

Que provei nos seus amores

O doce fel do deleite,

O acre prazer das dores.

Flávio Lourenço
Os pequenos soldados Museu da Cartuxa, Douai, França

Ele provou nesses amores “o doce fel do deleite”. Já não é o Céu para o qual ele subia, mas um outro deleite que, embora doce, vem misturado com “o acre prazer das dores”. Há alguma coisa de agitado, de inquieto, mas ao mesmo tempo de deleitável na própria impureza, e que é próprio, sobretudo, à impureza vista sob o aspecto romântico: ele quer, mas ela não, então cantam e choram, e sai bagunça, etc. Passam a ser sofredores. Esse sofrimento romântico tem para o autor um deleite especial. Enquanto que antigamente ele não tinha sofrimento.

Trata-se, pois, de um ponto terminal onde a pessoa goza desse prazer misturado com a agitação, a torcida, o ciúme, a nostalgia, sentimentos que a placidez do inocente não tem.

E as minhas asas brancas,

Asas que um anjo me deu,

Pena a pena me caíram…

Nunca mais voei ao céu.

A alma dele foi perdendo a capacidade de voar e acabou. É pungente! Inegavelmente isso tem profundidade de pensamento, finura de observação psicológica e toque poético.

A impureza traz a perda da paz da alma

Um ponto para o qual eu gostaria de chamar a atenção é o seguinte: Há uma certa felicidade em ser bom, em ter nexo com essa névoa prateada, com a transesfera3 em última análise. É até uma felicidade imensa, incompatível com as outras felicidades.

Entretanto, muitas vezes acontece que o indivíduo rompe com essa felicidade das asas brancas, sem ter bem uma ideia de que aquilo é felicidade. Porque é um estado tão natural, tão nativo, que a pessoa não tem ideia da possibilidade de outra situação. Assim como, por exemplo, para uma pessoa sadia não constitui uma condição de felicidade estar respirando à vontade, mas para um asmático sim. Só quando a alma começa a sofrer a “asma” que lhe causa a falta desse “ar celeste”, ela compreende a felicidade que havia nisso.

O verdadeiro diretor espiritual – portanto, também o pai, a mãe, um irmão mais velho – deve fazer sentir e compreender os deleites dessa felicidade para a pessoa dar o devido valor ao que possui, e não se julgar abandonada por Deus, numa estrada com sofrimentos sem sentido e que não são suportáveis pelo homem. Pelo contrário, se ele for fiel terá sofrimentos e talvez até o martírio. Mas, segundo a frase do Garrett, o homem tem suas asas brancas que, de vez em quando, ele bate e sobe ao Céu.

Esse foi um ponto no qual Nossa Senhora quis me favorecer em alto grau. Eu era muito consciente desta felicidade e a prezava deliciosamente. Amava por si, por aquilo ao que ela me conduzia – era no fundo Deus –, mas também pela benesse que me dava e cujo valor eu sentia perfeitamente.

Por exemplo, eu tinha muita, mas muita paz na alma! Paz que creio ter me ajudado a desenvolver minha posterior combatividade. Eu notava que possuía essa paz e a amava. Quando comecei a ser solicitado pela impureza, percebi que um dos preços que eu pagaria pelo prazer impuro era a perda da paz.

De si, a razão determinante para não cair foi o Mandamento divino – Deus proibiu, não quero fazer –, apoiado logo de perto pela noção de que eu imergiria no prosaico. Porém, ajudou-me muito também a ideia de que eu perderia essa paz.

Metáfora do bambu

Para me ajudar a mim mesmo na prática da virtude da pureza, fiz um inventário de todas as delícias da virtude, naquilo que considero que era o amor de Deus, sem que eu soubesse. Podem crer que isso me amparou muito em épocas decisivas de minha vida.

Não há ocasião em que eu me deite na cama – acredito que isso acontece até quando estou doente – e não tenha a preocupação de fruir o prazer inocente de estar deitado e ter o repouso. Sei que não teria esse prazer se não fosse um homem puro, porque o impuro não sente deleite nisso. Era um prazer que me ajudava a manter a pureza.

Isso corresponde a fruir as castas alegrias inocentes e exclui os prazeres complicados. São os prazeres primaveris da inocência primaveril.

Muitas pessoas que pretendem gozar a vida pensam que o deleite só está nos prazeres sofisticados. Isto é um engano. Ou o indivíduo é inteiramente aberto a gostar dos prazeres simples e elementares intensamente, ou ele não compreende os outros. É um festim desses prazeres singelos e puros que ajudam a pureza. Quando o prazer complicado tira o gosto desses deleites singelos, o homem começa a apodrecer.

Não pode ser assim. Ele deve ter esses prazeres simples como base da vida, mas não pode possuir sempre o festim desses prazeres. Tudo isso precisa ser proporcionado ao homem, mas com a noção bem viva de que são coisas que se fecham se ele pecar. É próprio da impureza uma procura de requinte rebuscada, atormentada e exagerada. O senso da medida, que é tão marcado no prazer simples, desaparece. E, desaparecendo, o homem enceta pela via dos sofrimentos.

Arquivo Revista
Capela da Sede do Reino de Maria, São Paulo

Ao longo da vida a pessoa vai conhecendo, paulatinamente, as felicidades mais requintadas. Quando criança, não se é muito sensível a elas. Há uma espécie de desenvolvimento da personalidade à maneira do bambu que, à medida que cresce, vai ficando mais fino. Aqueles nós indicam etapas da vida, da história do bambu, até o vegetal grosso na raiz se transformar numa ponta delgada que qualquer vibração faz agitar.

Assim se dá mais ou menos com essas várias felicidades no homem. Ele tem na infância essa felicidade primitiva dos prazeres simples, elementares, claros, luminosos, bonitos. À medida que o intelecto se desenvolve, sua cognição vai relacionando as coisas novas que ele vai conhecendo com as antigas já conhecidas. As novas lhe dão algo que é mais e, ao mesmo tempo, menos. Entretanto, a cada etapa, o bambu – para me servir ainda da metáfora – vai ficando mais fino, mais delicado e nobre.

Os soldadinhos de chumbo, a História, o encanto pela lógica

Em contato com as felicidades do Anjo das asas brancas, a criança tem alegrias de se encher. Quando ela começa, por exemplo, a brincar com soldadinhos de chumbo – por facilidade, vou descrever o meu itinerário –, aparecem-lhe coisas pelas quais já não vai atrás das flores ou dos passarinhos que antes procurava no jardim. Ela quer os soldadinhos de chumbo porque lhe trazem um mundo de ideias, que correspondem a algo despertado no seu espírito pelo natural crescimento. Então ela se deleita inocentemente com a autenticidade daquilo, como outrora se deliciava de modo inocente com o anterior.

Não deve haver uma ruptura, mas uma soma. A criança deve gostar muito dos prazeres simples anteriores, mas seu tempo de lazer vai sendo tomado pelos deleites novos.

Depois chega o prazer da entrada da História e dos personagens míticos. Então é toda a História europeia, a vida de corte, a vida dos Santos. Entra um desejo de maravilhoso, mas com muito mais cultura do que nos soldadinhos de chumbo, os quais, aliás, são uns figurantes dentro daqueles mitos.

Mais tarde vem a pura doutrina. Lembro-me de minhas alegrias diante do silogismo, o descobrimento da lógica e o encanto por ela. A minha deleitação diante da lógica era o prolongamento da degustação do prazer inocente que eu tinha deleitando-me diante do sorvete. São reversibilidades.

Um homem que dissesse: “Qual! Para mim o tempo do sorvete acabou. Eu sou da era dos livros.” Eu fugiria dele, porque preferiria o convívio do homem do sorvete sem livro, do que o do livro sem sorvete.

Consolação espiritual, antegozo do Céu

Para mim, o prazer simples e principal nessa ordem era a felicidade religiosa do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, ou a de ver mamãe rezar a Ele em casa, ou ainda olhando para imagens de alguns Santos, dois ou três santinhos que eu recebera em minha primeira Comunhão e tinha pregado na parede, umas coisas assim. Um deles ainda está sobre meu criado-mudo até hoje. Eram as impressões primeiras, mas ricas, cheias de elementos especificamente religiosos.

Veio em segundo lugar a alegria de perceber que aquilo não se dava só na hora em que rezava, mas era uma felicidade que se estendia, em consonância com aquilo, a tudo quanto na ordem temporal eu gostava, compreendendo que era porque, em última análise, ligava-se às impressões religiosas do Coração de Jesus.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1984

Então, a ideia de sociedade temporal católica, de Civilização Cristã, coisas que aceito ou rejeito, contra as quais luto, a favor das quais eu sou, uma escolha do meu universo, uma felicidade, um bem-estar enorme! Mas com suas horas de tranquilidade, de sorvete… tudo somando e formando um todo que até hoje não abandonei.

Também a consolação espiritual, encontrando nela o auge de felicidade de minha vida. Porque nada se compara à consolação espiritual. É a felicidade por excelência, o antegozo mais próximo do Céu.

Não pensem que eu nado em consolações, nem que tenha estados místicos. Tive algumas consolações espirituais, e guardo delas uma memória atenta e ultra-analítica. Quanto mais analisadas eram essas consolações, mais me deleitavam.

Se eu não possuísse a esperança de que ainda em vida isso voltará, não teria coragem de viver. Se tivesse a convicção de que cumpri já o que Nossa Senhora possa querer de mim, também não teria coragem de viver. Pedia para morrer a fim de acabar com esse negócio e entrar na presença de Deus, de Nossa Senhora e no mundo dessas consolações. Porque não se trata de mera consolação. É algo como se fosse o contato com Deus, misturado com a alegria, que, no caso, não se distinguem.

O convívio perfeito

Meu desejo seria fazer das sedes da TFP lugares estudados para, salientemente, proporcionar essa felicidade da inocência. Desde logo, se eu pudesse faria que houvesse, em grau muitíssimo maior, o reconhecimento de que o Santíssimo Sacramento é a vida da sede. Eu gostaria que isso fosse, em todas as nossas casas, de um modo protuberante, mas não escrupuloso, com uma avidez eucarística desembaraçada, livre. De maneira que a presença do Santíssimo Sacramento se irradiasse sobre toda essa sede inocente, junto com uma bonita imagem de Nossa Senhora das Graças sorrindo, prometendo bondades e convidando para o sacrifício. Por que não? O sacrifício nasce daí. Esse é um dos traços da alma do católico, embora não a absorva inteiramente.

Neste sentido, um dos pontos em que indiscutivelmente os tempos modernos cresceram em relação à Idade Média foi o que se chamou, no Ancien Régime, a vida de salão. Esta consistia em um grupo de pessoas que se reuniam habitualmente em torno de um núcleo fixo. Nas reuniões vinham pessoas que pertenciam a diversos salões e transmitiam o que tinham ouvido em seu respectivo salão. Mas o principal da conversa não eram as novidades e sim os pensamentos. A conversa de salão era pensamento apresentado de modo leve, florido, onde entrava uma nota simbólica bonita em cada pormenor. Era a participação de um mesmo modo de ver em profundidade até as bagatelas.

Com efeito, o máximo do convívio é participar de uma mesma visão, de uma mesma concepção das coisas trazidas da inocência primaveril, que vemos melhor à luz da Fé, a qual constitui um mesmo objetivo para o qual todos nós caminhamos. Aí se estabelece um convívio perfeito.

Inclusive, com isso a pessoa escapa do cárcere da própria contingência. Porque nossa contingência nos é dolorida e só a teremos remediada quando repousarmos em Deus. Enquanto não repousarmos n’Ele, o intercâmbio dessas coisas entre nós é propriamente uma antecipação do Céu.

(Extraído de conferências de 10 e 11/5/1984)

1) Casimiro José Marques de Abreu (*1839 – †1860). Poeta brasileiro.

2) João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (*1799 – †1854). Escritor, dramaturgo e orador português.

3) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

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