miércoles, noviembre 27, 2024

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Candura, vigilância e holocausto

Tendo por discípulos dois meninos privilegiados diariamente por uma singular visita, São Bernardo de Morlat foi agraciado com um especial convite: participar de um banquete no Céu…

Comentarei um fato muito bonito, narrado na Vie des Saints, da Bonne Presse de Paris1, mas não sei qual é o grau de sua veracidade histórica.

Muitas vezes, intencionalmente e a bom título, essas coletâneas de vidas de santos contêm, a par de fatos indiscutíveis, alguns que são discutíveis, quer dizer, não se sabe bem se ocorreram ou não. Mas o ponto que nos interessa é o seguinte: se o fato narrado é conforme à Doutrina Católica. Então, ainda que o fato não seja exato, Deus poderia ter agido assim.

A narração que passarei a comentar dá uma noção a respeito da santidade infinita de Deus e é ilustrativa para o fiel. É a esse título que me parece muito bonito o fato.

Trajes infantis antes da Revolução Francesa

São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele, como discípulos, a dois meninos, filhos de um cavaleiro de Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monásticas e daí por diante passavam os dias no convento, ajudando as Missas e estudando com o Padre Bernardo.

A pedagogia antiga preceituava que as crianças, desde pequenas, se vestissem como adultos. E daí o fato de vermos, nas pinturas de até pouco antes da Revolução Francesa, as meninas vestidas de saia balão, os meninos com trajes de homem que sai à rua para tratar de negócios, ou que vai à Corte.

Os trajes propriamente infantis foram introduzidos pelo Marquês de Girardin2, no Jardim de Luxemburgo, em Paris, pouco antes da Revolução Francesa. Eram trajes inspirados na moda inglesa e que visavam apresentar a criança não mais com a compostura e a gravidade de um adulto, mas como um ente que pula e não se quebra. Então, uma roupa qualquer do tipo que nós conhecemos. Isso foi também um dos incêndios prévios à Revolução Francesa. Uma vez que o Marquês de Girardin apresentou seus filhos assim, a moda pegou e, em poucos meses, na França inteira os hábitos antigos estavam abolidos, e as crianças sans-culotte já começavam a brincar pelos jardins da França, antes do “sanculotismo” estar implantado.

Mas a Igreja, sempre mais conservadora do que a sociedade temporal, ainda conservou esse hábito. E não posso deixar de me lembrar de que, quando era moço — tinha entre vinte e cinco e trinta anos —, fui visitar o então austero, magnífico, Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, para falar não me recordo com que padre; eu estava andando pelo convento e de repente vi dois menininhos, talvez com dez, onze anos, vestidinhos completamente como monges e caminhando graves no meio do claustro.

Eles passaram, conversando tão direitos e sérios, que eu tive a vaga impressão de que se tratasse de uma aparição. Quando o padre chegou, perguntei-lhe: “Mas padre, que menininhos são esses?” Ele disse: “É um velho costume beneditino. Nós recebemos vocações da mais tenríssima idade e, para os meninos se adaptarem à vida religiosa, já são vestidos como monges em pequeno.”

Nas minhas elucubrações a respeito de “geração nova”3, ocorre-me a ideia de que o “geração-novismo” começou quando o Marquês de Girardin adotou os trajes que não davam à criança a sede da maturidade, mas o gosto de serem como eram, sem o desejo de crescer, de maturar, retardando, portanto, a normal expansão da criança.

Traje, gesto, estilo de conversar e de pensar

Alguém poderia perguntar: “Mas traje, Dr. Plinio, que diferença faz?”

Eu digo: “Meu caro, traje supõe gesto. Gesto supõe estilo de conversar. Estilo de conversar supõe estilo de pensar.”

Então podemos imaginar aqueles dois menininhos da Idade Média, vestidos como fradinhos e recebidos na Ordem Dominicana. O hábito da Ordem Dominicana, aliás, é muito bonito.

Um dos predicados da Igreja é que Ela sabe, como nenhuma instituição, com as coisas muito simples produzir efeitos estéticos extraordinários. Por exemplo, os hábitos das Ordens religiosas geralmente são bonitos. O hábito dominicano consiste numa túnica branca, com uma grande capa preta e um capuz branco; grandes mangas, que dão ao orador, quando ergue ao alto seus braços para exprimir um mais alto pensamento, atitude de grande categoria, porque as grandes mangas que pendem dão solenidade ao gesto. É a simplicidade extrema da Igreja, o magnífico senso da beleza que Ela possui em tudo quanto faz.

Então os menininhos ajudavam as Missas todos os dias e estudavam com o Padre Bernardo, que ia formando o espírito deles.

O Divino Infante participa do desjejum com dois meninos

Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária.

Não espanta que eles morassem em casa e usassem esse hábito. Porque na Idade Média o hábito religioso era muito mais frequente e normal do que se tornou depois.

Um dia de manhã, com uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que trazia no colo o Menino Jesus…

Podemos figurar uma imagem bonita, como a de Nossa Senhora de Coromoto, com o Menino Jesus nos braços. Suponhamos toda a cena realizada diante dessa imagem, para compreendermos como fica apropriada.

…diante da qual sempre rezavam o Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum.

Eram, portanto, crianças piedosas. Toda criança amanhece com fome; e criança lusa não desmente a regra. Pois bem, elas rezam o Rosário para depois quebrarem o jejum.

Enquanto comiam, um deles voltou-se para o Menino Jesus nos braços da Virgem e disse-Lhe: “Ó belo Menino, se Vos agradar, vinde comer conosco.”

O Divino Infante não Se fez de rogado, desprendeu-Se dos braços da Mãe, e de bom grado tomou lugar entre os que O haviam convidado.

Podemos imaginar, na imagem de Nossa Senhora de Coromoto, o Menino que se move e diz com voz de criança: “Pois não!” E, de coroa na cabeça, desce do colo de Nossa Senhora, toma um pouco de comida, a introduz na boca e começa a mastigar.

Os dois repartiram então com Jesus a frugal refeição. Tendo terminado, o Menino Deus agradeceu-lhes com um sorriso, subiu ao altar e voltou aos braços de Maria.

Vemos que tudo isso é de uma candura… O importante é o seguinte: eu não me interesso, como católico, senão muito pouco, em saber se isso foi ou não foi assim. O que me interessa é que podia ter sido, porque Nosso Senhor Jesus Cristo é assim; está n’Ele realizar essas coisas. Se Ele fez ou não fez, não é tão importante.

No dia seguinte, os coroinhas voltaram renovando o pedido.

E todas as vezes o Hóspede Divino dignou-se aceitá-lo, até que qualquer convite ficara supérfluo. Apenas os meninos entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus lá estava entre eles.

É tão delicioso, que dispensa comentários.

Isso se tornou tão familiar que não só comiam juntos, mas também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.

Que encanto imaginá-los perguntando e Nosso Senhor respondendo, na intimidade de uma pequena capela do interior de Portugal!

O guizo da serpente

Veremos agora aparecer, ao lado de tanta candura, o drama, que tantas vezes surge nas relações entre a criatura e o Criador: a miséria humana vai se mostrar, do modo mais incoerente e mais inesperado, nesses meninos magníficos.

Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres.

“Não haverá muitas coisas boas no Paraíso?”, perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em murmúrios.

Coisa incrível, mas é assim a criatura humana: no conto mais encantador, ouvimos de repente o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio, também de repente, a tentação.

E resolveram confiar ao Padre Bernardo suas angústias. Este, tendo examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus que o iluminasse e o fizesse conhecer os seus desígnios sobre os meninos. Um dia, dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao menos uma vez, à casa de seu Pai?”

Não pedir alimento, mas a graça de ver o Céu

A saída do padre foi muito inteligente: não pedir ao Menino Jesus que trouxesse comida, mas que vissem o Céu.

“Oh! sim, gostaríamos muito, responderam. Mas Ele nunca nos falou sobre isso.” Disse o padre: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido, não tereis perdido nada, pois de um convite d’Ele recebereis mil vezes mais do que destes.”

Vemos que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos um pouquinho comerciais, para conseguir mover aquelas almas, entretanto tão cândidas e puras.

Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e é assim que devemos olhar a nós mesmos! Quer dizer, ou há muita vigilância, ou saem coisas dessas.

E continuando a falar-lhes, o Padre Bernardo fez entrever simbolicamente o palácio do Pai Celeste, com suas magnificências e delícias, e concluiu: ‘Quando o Menino da capela vier novamente comer convosco, não vos esqueçais de pedir que vos convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que quero também ser convidado. Não vos permito que vades sozinhos à festa. Eu vos acompanharei, ou tereis que recusar o convite, porque desejo muito ter parte nesse festim.”

No dia 21 de maio de 1277, segunda-feira das Rogações…

Há uma procissão que se faz nessa ocasião, para pedir a Deus graças; a Providência se manifesta particularmente exorável nessas ocasiões.

…o Menino Jesus desceu de novo para tomar o desjejum com os dois meninos. Terminada a refeição, antes que o Divino Infante pusesse o pé sobre o pedestal de pedra para subir aos braços de Nossa Senhora, os dois pequenos expressaram timidamente o seu desejo: “Não nos convidais também uma vez?” Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto os pequenos acrescentavam: “Nosso mestre gostaria de também participar da festa.”

Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será festa da Ascensão. Haverá grande alegria na casa de meu Pai. Dizei ao Padre Bernardo que Eu o convido convosco à minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos.”

Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao seu mestre a boa notícia. Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iriam participar de um banquete no Céu. O Padre Bernardo comunicou o mesmo ao seu diretor espiritual.

Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração, ajoelhados ao do altar do Rosário. O padre explicou aos meninos o sentido do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.

Notamos que começa a haver um movimento de desinteresse, e os meninos melhoram.

Fotos: M. Shinoda; R. Castelo.
Dr. Plinio chegando ao auditório São Miguel (São Paulo), em 1988.

Padre Bernardo e os dois meninos são levados ao Céu

Chegou o dia da Ascensão. Todas as Missas já haviam sido celebradas — isto na aldeia de Santarém. Enquanto os frades estavam no refeitório, Padre Bernardo dirigiu-se ao altar do Rosário, acompanhado por seus dois acólitos, e começou o Santo Sacrifício. Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam nos degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a morada celeste. Mais tarde, quando a comunidade chegou à igreja para a recitação das orações após a refeição, encontraram o padre e os dois acólitos imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se deles e, — oh, morte preciosa e mil vezes digna de inveja! — constataram que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna. Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar.

Não poderiam ser enterrados em outro lugar.

Em 1577, quando foi aberto o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje num rico tabernáculo.

Candura, vigilância e holocausto

Vemos aqui a candura em seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto. Sem esses dois complementos, a candura jamais é candura. Para ter verdadeira candura, a pessoa precisa vigiar constantemente sobre si mesma, noite e dia, para evitar ceder aos inúmeros impulsos maus que enxameiam, formigam, no interior de cada alma; primeiro ponto.

Segundo: quando é verdadeiramente cândida, ela é convidada para o holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência lhe pede que se imole. Esses meninos tiveram seu mau momento, foram perdoados e depois convidados ao holocausto.

Com certeza, antes de morrer, eles souberam que iam deixar esta Terra. Foram consultados sobre se queriam a morte, e aceitaram-na; suas almas foram levadas para o Céu, docemente, suavemente.

E ficou aqui consignada, muito menos a imagem dos meninos e do padre, do que a figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade. A respeito de Nosso Senhor, diz a Escritura: “Minhas delícias são estar com os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um preço. É o preço que Ele mesmo pagou: o holocausto. Em certo momento, Ele pede o sacrifício e é preciso dá-lo. Assim, a vida deles terminou maravilhosamente bem.

Candura, vigilância e holocausto formam uma tríade, que merece ser lembrada por nós na noite de hoje.

(Extraído de conferência de 12/11/1976)

1) Não possuímos a ficha utilizada por Dr. Plinio nessa ocasião.

2) René Louis de Girardin (1735-1808).

3) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com que fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”; e aos últimos, de “geração nova”.

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