domingo, noviembre 10, 2024

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Revolução tendencial rumo à decadência

Uma saia que se encurta, um chapéu que toma a forma de uma cuia, uma casaca que deixa de ser usada por parecer muito solene; por essas diferenças vê-se a marcha do igualitarismo. Sim, passo a passo, a Revolução dirigiu tudo para o abismo de nossos dias. E a humanidade caminhava contente na vidinha de todos os dias, sem vislumbrar para onde rolava.

Vemos uma cena ligeiramente caricaturada. Trata-se de um banquete no qual preside, provavelmente, o governador da província ou o deputado da região de uma pequena cidade do interior.

Miniatura caricata de um ministro…

A figura o representa gordão; é daquele tipo de pessoa que engorda errado, enquanto, por exemplo, a Madame de Grand-Air engordou certo. Ele tem uma barba de orador, diferente daquela de Francisco José, pois ele a tem onde o Imperador não tinha. É o contrário do monarca em tudo.

Nesse tempo havia a preocupação de evitar fixador no cabelo. Ele compensa a sua calvície com cabelos bufantes. Usa pince-nez, mais discreto que os óculos, utilizados muito tempo depois. Veste-se com um traje de gala, uma casaca. Colarinho engomado, uma gravatinha preta e aparece a camisa com dois botões ornamentais do qual só um se vê. Ele é um representante da República e usa essa faixa tricolor, vermelha, branca e azul, símbolo da Revolução Francesa. Na parede há alguns festões por ser dia comemorativo.

Ele preside com certa solenidade. Tem diante de si um copo de cerveja, de água ou de vinho claro. Está falando com todas as manifestações de vulgaridade e demagogia próprias ao burguês de cidade pequena. Poderia, perfeitamente, ser irmão daquele lacaio de Madame de Grand-Air; talvez houvesse muitos lacaios irmãos de homens assim. Entretanto, ele toma um ar de presidente da República, mas versão camponesa; o contrário do lacaio, que é respeitoso.

O prefeito local eleito é uma miniatura do presidente da República. Então, ele também toma um ar de pequeno deputado, de ministro, de presidente, mas de maneira caricata e grotesca. Nota-se, pelo modo horrível como ele gesticula com o indicador riste, que certamente dirá uma banalidade. Nunca ninguém gesticula levantando o dedo, sobretudo em público; é o horror em matéria de gestos. Também o modo de segurar o garfo. Jamais se deve sustentá-lo no ar. É um disparate e ninguém conversa desse modo.

Ilustrações: J. Pinchon

…que não atrai e tenta monopolizar

Considerem a atitude dos outros diante desse personagem. Ele vem da cidade trazendo as notícias, pois conhece os fatos. É uma celebridade. Essa gente não lê jornal e entende apenas aquilo que ouve dizer. Não é propriamente analfabeta. Sabe assinar o próprio nome, ler um livro com letra bem grande, mas não vai além disso.

Se ele fosse um homem que soubesse conversar, deveria colocar-se um pouquinho para trás dando oportunidade de um conversar com o outro, e até fazer aquele mais distante entrar na prosa em torno da mesa. Nunca uma pessoa bem educada sentada à mesa coloca-se como monopolizadora e tira a oportunidade de seus dois vizinhos conversarem entre si.

Esse velhusco quer ouvir a conversa do homem importante e, como está meio surdo, põe a mão para captar o que ele está dizendo. O outro, ainda muito menos discreto, inclina-se completamente. E o camponesão está ouvindo, mas enquanto a celebridade fala de maneira a provocar aplausos, a atitude dos camponeses é desconfiada e discreta. Estão ouvindo, mas sem entusiasmo. Um deles, sobretudo, está sem entender claramente e sem confiar nem um pouco. Tem a sua razão de ser.

Para o estado de espírito dessa gente, as pessoas da cidade eram, com frequência sem-vergonhas, desonestas e de maus costumes. Não farei a apreciação da vida política francesa em 1914, mas eles tinham uma desconfiança enorme com a classe política, supondo que era composta por ladrões de votos e nada mais.

Um dos comensais ouve e não faz um só comentário, o outro curioso tenta ouvir, mas não exprime nada e nem demonstra solidariedade, está apenas registrando. Quando o homem for embora comentá-lo-ão entre si e farão ou não a “caveira” dele conforme o que tenha dito.

O político está fazendo tudo, exceto se divertir. Ele está trabalhando e cavando o eleitorado.

Preparação remota da modernidade

Outra cena representa um cortejo, bem distinto daquele para o batizado da Bécassine. São pessoas de outra categoria, os homens usam cartola, as senhoras estão bem vestidas. Qual é a primeira impressão? É a diferença que há entre a senhora e o homem. É o último período da História no qual as mulheres ainda eram inteira e exclusivamente femininas.

É uma cena depois da Primeira Guerra Mundial, porque eu conheci esses trajes femininos. Já encurtaram muito a saia, comparada com a de Madame de Grand-Air. Assim começou a caminhada para a minissaia com muitas décadas de antecedência. Entretanto, o processo foi lento. Um homem previdente, nessa época já poderia prevê-la. Os bobos não, porque qualquer uma dessas senhoras teria horror de usá-la, mas veriam com todo gosto as netas delas usarem. Assim caminham as modas.

Nesse tempo a influência hollywoodiana não tinha começado a masculinizar as mulheres, e elas procuravam ser inteiramente femininas. A senhora apresentava a fragilidade como um adorno e não como uma vergonha ou uma inferioridade.

Nota-se uma atitude muito leve, esguia e um tanto tímida no modo de elas andarem. Um pouco de quem está apoiada na proteção do homem que as acompanha. Em geral caminhavam sem olhar para o lado. Elas vão olhando para frente. E o homem tem uma atitude tesa, ereta, de quem toma a proteção da senhora que está guiando pelo braço. O hábito de levar pelo braço exprime propriamente isso, ou seja, dar um apoio à senhora para andar, para que ela, na sua leveza, caminhe com mais facilidade. Se tropeçar não cai, está sob o abrigo de qualquer pequeno imprevisto no caminho. Por este motivo uma senhora desse tempo só daria o braço para outra senhora mais idosa e nunca para uma amiga. Do mesmo modo dois homens nunca se dariam o braço, a não ser para um inválido. A atitude dos homens é de quem escoram bem as senhoras.

A meu ver, deve ser um casamento no interior, mas de categoria, talvez da família de Madame de Grand-Air. E os outros devem ser camponeses, trabalhadores deles, que os saúdam, tiram o chapéu e eles respondem.

Por exemplo, o homem e a senhora atrás são conhecidos do homem vestido de bege. Mas vejam a superioridade com que este de cartola responde! É a segurança do homem! E a fragilidade e a delicadeza com que a senhora fala. Ficava bem à senhora ser frágil assim. Este personagem de cima faz um pequeno cumprimento, a moça é muito mais gentil. A mulher que sobe no bonde em movimento, que pula do ônibus de qualquer jeito, esta começou a surgir uns dez anos depois.

Indícios da modernidade

Quais são os indícios de modernidade existentes aqui? Em primeiro lugar a saia mais curta; segundo, vestidos monocolores e quase sem ornatos, exigindo menos bom gosto e elegância em comparação aos trajes antigos, ou seja, são igualitários. Um vestido desses, qualquer pessoa compra, e não precisa ter muita elegância para compô-lo.

Também os chapéus. Os anteriores tinham abas enormes e enfeites, nem sempre de muito bom gosto: flores de papel ou de uma espécie de matéria plástica… Quanta coisa colocavam sobre eles! Eram colossais. Já os chapéus das duas mulheres que aparecem detrás tendem a ser cuias em cima da cabeça.

Por que o chapéu toma forma de cuia? Porque os cabelos estão curtos. Um dos traços que distingue a mulher do homem é a abundância da cabeleira. Elas têm cabelos muito abundantes, eles, muito menos. Começa a preparação remota da masculinização das senhoras, suprimindo a diferença do vulto da cabeça entre ambos.

Nesse casamento o militar está apresentado em traje de gala. Não encontro elementos sobre a patente desse oficial. Notem como já é inferior em relação ao traje do almirante, tio da Madame de Grand-Air.

Percebe-se como a Revolução, muito de longe, dirigiu tudo para o abismo de nossos dias. E a humanidade caminhava contente na vidinha de todos os dias sem vislumbrar para onde rolava.

A marcha rumo ao igualitarismo

Sobre as pessoas do povo. Notem os dois homens que saúdam, tirando os chapéus, vendo o cortejo que passa. Os que são cumprimentados, por serem de categoria muito superior, não tiram os chapéus. É a desigualdade social legítima que se exprime por um símbolo. Quando não houver mais chapéus, desaparecerá esse símbolo de desigualdade social.

No que são inferiores? Revelam-se inferiores aos outros pelas roupas surradas, pobres e, portanto, que não são da mesma categoria da casaca, por exemplo. São roupas iguais em corte, que esses outros usam quando não estão em gala. Não é mais a diferença de traje que havia entre Monsieur de Labornez e Monsieur de Grand-Air.

Por essas diferenças vê-se a marcha do igualitarismo. Mas, não assusta, porque vai passo a passo de um lado e de outro sendo imposto pelo cinema. Tem-se de vestir como é apresentada a vida dos personagens dos grandes filmes norte-americanos.

Os Estados Unidos foram construídos sobre a igualdade, os trajes são iguais para todos. Logo, o mundo inteiro tem que usar roupas padronizadas.

A casaca, um traje de alta distinção

Resta-me apenas fazer uma análise a respeito da casaca.

O paletó, nesse primeiro personagem, não chega até a calça, na parte da frente, mas sim na parte traseira das pernas; é a casaca. O corte começa bem alto e desce. O colete é branco, a camisa é engomada e branca com uma gravata borboleta preta. O colarinho é alto, também engomado e quebrado na frente. Em geral, nesse tempo usava-se menos, mas havia a clássica corrente com o relógio e a bolsinha para moedas.

Esse traje bem cortado é de alta distinção. Ele dá aos homens uma categoria, uma atitude, uma finura difícil de qualificar. O preto, apesar de ser uma cor de luto, é utilizado aqui como de solenidade, e o contraste do branco sobre o preto realça tanto a brancura quanto o negrume. É um traje de muita distinção usado nas grandes galas.

Usou-se a casaca na Europa muito mais tempo do que no Brasil. Quando eu tinha mais ou menos uns quinze anos, portanto, em 1923 e 1924, comecei a frequentar reuniões de gala. Não vi, exceto em poucas ocasiões, homens vestidos de casaca. Os rapazes, desde a minha ida de até os trinta anos, usavam smoking que é uma espécie de casaca de segunda classe. Eu, por exemplo, nunca usei casaca em minha vida, e nem mandei fazer, de tal maneira caiu rapidamente de uso no Brasil. Era reputado solene demais para os hábitos e o ambiente das três Américas. É preciso acrescentar que se usava com sapato de verniz e, às vezes, com luva branca; e quando não se usava luva, o senhor a portava na mão esquerda. Era algo muito elegante, muito bonito.

Como chapéu, a cartola. É um tubo alto, mas feito de um feltro sedoso preto que dava reflexos coloridos, repetindo o jogo branco e preto, mas lustroso. Quando a pessoa andava, todas as luzes ou o sol do caminho brilhavam na cabeça dela. Era uma espécie de auréola.

Ficava ainda mais bonito quando utilizado com condecorações postas próximo à gravata, na lapela do lado esquerdo, ou quando a condecoração era uma fita pendente do lado direito e passava para o lado esquerdo, terminando num laço. Dava muita categoria.

Ilustrações: J. Pinchon

Sinais patentes da decadência

Entretanto, li num livro uma carta do embaixador da República Francesa junto à corte de São Petersburgo, bem anteriormente a essa época, mais ou menos de 1880, na qual ele expunha ao Ministério uma dificuldade. Dizia ele:

“É preciso que Vossa Excelência considere que estou num país onde ainda não passou a Revolução Francesa e vive em monarquia absoluta. Portanto, a corte tem muitos hábitos, maneiras e exigências dos modos de ser do Ancien Régime. E, por isso, na corte russa a nobreza, os ministros e os altos dignatários, os embaixadores de cortes, que não são embaixadores de República, se vestem ao estilo das monarquias: usam uniformes e casacas todas bordadas com alamares e ornatos dourados, muitas condecorações e chapéus com pluma. É um ambiente resplandecente onde todos usam títulos de nobreza, e ainda se usa o alabardeiro nas recepções.”

O alabardeiro era uma espécie de lacaio que, quando chegava alguém, batia a alabarda no chão e anunciava o nome da pessoa que entrava.

O embaixador francês continuava:

“Ora, quando chego, o alabardeiro anuncia: “Monsieur Chose e Madame Chose”.

Chose quer dizer “coisa” em francês.

“Então, entra Monsieur Chose vestido de preto, exatamente como se vestem aqui os empregados de agências funerárias. Portanto, eu queria propor, para o brilho e realce da França, que nós, embaixadores, tenhamos também um uniforme com alamares.”

Pharamond Blanchard (CC3.0)
Casamento na Rússia, século XIX – Le Tour du monde

O ministro deu uma resposta indignada: “O senhor não tem virtude republicana! Deveria compreender que a República se afirma e brilha pela sua simplicidade e não pelos enfeites. Um homem não vale pela roupa que tem, mas por sua força moral e por sua inteligência. Imponha-se nisso e não lhe daremos outros recursos.”

Esse é o ponto ao qual eu queria chegar. Antes da Primeira Guerra Mundial, quando se usava casaca, esta parecia tão pomposa… entretanto, um embaixador francês, em 1880, tinha vergonha de usá-la. Já no meu tempo de moço, não se tinha coragem de vesti-la por ser um traje pomposo… No Rio de Janeiro ainda se usava porque estava lá a presidência da República, o corpo diplomático.

Então o que era vergonha em 1880, passava a ser esplendor em 1923 ou 1924; mas, nesse mesmo período, o que era esplendor na Europa já era visto como tão pomposo que quase não cabia ser usado em São Paulo.

Sabem qual é o nome dessa diferença? Decadência!

Mais do que entreter, fiz uma análise de Revolução e Contra-Revolução tendencial da sociedade para se ter ideia da decadência dos costumes.

(Extraído de conferência de 16/5/1980)

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