domingo, noviembre 24, 2024

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Madre Francisca do Rio Negro e a santidade brasileira

Há ocasiões em que Deus desafia os seus eleitos para experimentá-los. Nesses casos não se trata de optar entre o bem e o mal, mas entre o bom e o ótimo. Nesta perspectiva, Madre Francisca nunca recusou nenhuma adversidade. Ela reflete bem a alma brasileira com uma profundidade cheia de discernimento das realidades celestes.

Madre Francisca de Jesus, falecida a 28 de maio de 1932, é geralmente desconhecida. Se não fosse o livro escrito por um grande teólogo, o Pe. Garrigou-Lagrange1, O.P., ainda tudo ignoraríamos sobre essa vida maravilhosa, marcada por inteiro com o selo da Divina Providência.

A vida católica não é passível de estandardização

O Catolicismo é essencialmente místico. A mística consiste nas relações íntimas do fiel com Deus, provenientes da generosidade com as quais este se oferece e da misericórdia com que Ele Se digna operar em cada alma, purificando-a e santificando-a. Esta purificação produzida por Deus, caracterizada pelo sofrimento, é a realização da Paixão de Cristo em cada fiel.

Na vida de Madre Francisca de Jesus, fundadora da Companhia da Virgem, percebe-se com clareza essa morte em Cristo. Em 1927, ela passou pelas provas mais terríveis que se possa imaginar. Numa grande escuridão espiritual, cria-se abandonada por Deus, como justo castigo de seus pecados, e prestes a cair no Inferno.

Nessa contingência, sob orientação de seu diretor espiritual, escreveu a um dominicano de comprovada virtude e experiência, expondo-lhe sua situação e pedindo conselho. Na resposta, lê-se o seguinte: “É necessário experimentar esse vazio absoluto, para vir a se estar cheio da plenitude de Deus. E somente Deus pode consolar quem sofre esta prova! É preciso configurar-se a Jesus Cristo no seu desfalecimento do Getsêmani e do Calvário, para encontrar uma nova vida gloriosa com Ele. Não é o ‘prelúdio de uma morte eterna’ como temeis, mas é a verdadeira morte mística para tudo e para si mesmo, e o prelúdio da vida eterna…”

Como se vê, o misticismo católico, ao contrário do que muita gente pensa, é o antídoto específico da sentimentalidade religiosa, a moeda falsa da religião.

É verdade que nem todos são chamados para os sofrimentos extraordinários que caracterizaram a vida dos grandes Santos; mas é certo que todos têm de morrer a si mesmos, ao seu egoísmo, às suas paixões, ao seu “eu”, a tudo enfim que represente uma autoafirmação do homem em face de Deus.

Divulgação (CC3.0)
Palácio do Rio Negro, onde Madre Francisca nasceu e passou sua primeira infância. À direita, o Barão do Rio Negro

Divulgação (CC3.0)

Essa vocação é universal e aqueles que não a cumprem integralmente nesta vida irão terminá-la no Purgatório. Porque o homem velho, filho e escravo do pecado, deve ser destruído, aniquilado na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, a vida católica não é passível de estandardização, que seria uma espécie de religiosidade média, relativamente boa, acessível ao grande público. O Catolicismo, por sua própria natureza, é acessível a todos, mas não comporta “programas mínimos”. Há muitos que, na faina do apostolado, na preocupação de conquistar o maior número de almas, vão passando adiante assim que notam uma certa conformação espiritual típica em seus prosélitos. Seria quase uma fabricação “em série” de católicos… Ora, enquanto não se tiver acendido o desejo de uma verdadeira santidade, tudo ainda estará por ser feito.

O corretivo para semelhante inclinação encontra-se no estudo da vida e das obras dos grandes místicos da Igreja, que realizaram o que há de mais profundo e autêntico na Religião.

Voto de virgindade perpétua

Madre Francisca de Jesus chamou-se, no século, Francisca Carvalho do Rio Negro e era a nona filha do Barão do Rio Negro2. Nasceu em Petrópolis, a 27 de março de 1877, e passou sua primeira infância no Brasil. Ainda muito jovem, mudou-se com sua família para a Europa, onde foram residir em Paris. Poucas vezes mais haveria de ver sua terra natal; porém, a obra que iria fundar em regiões distantes, pelos desígnios secretos da Providência, transportar-se-ia para o Brasil, vindo a realizar aqui, neste país tão necessitado de padres, o seu alto objetivo: a oração pelo Papa e pelas vocações sacerdotais.

Tudo isso, entretanto, não se passou sem enormes dificuldades. A futura fundadora estava longe de imaginar aquilo que o Céu esperava dela, mesmo porque o Céu não se deu pressa em lhe revelar seus desígnios, deixando-a perplexa por muito tempo.

Ainda em plena adolescência, por um impulso cuja espontaneidade só pode ser atribuída a uma inspiração sobrenatural, Francisca, diante de uma pequena imagem de Nossa Senhora de Lourdes que sempre a acompanhava, ligou-se a Deus por um voto de virgindade perpétua. Saberia ela das lutas que a defesa desse voto lhe iria custar?

Passado algum tempo, já na plena resplandecência de uma juventude magnífica, aparece-lhe a primeira proposta de casamento. O pretendente era do agrado dos Rio Negro. Francisca renova o seu voto, recusa-se com todas as forças e acaba por vencer esta primeira prova. Porém, ela ainda estava muito distante de um triunfo completo. Durante catorze anos teve que se debater resistindo à sua família, que por força queria casá-la. Mais do que isso, incompreendida por seu confessor que declarava seu voto nulo.

Acontece com as almas de eleição o que sucedeu com Jacó: têm de lutar com Anjos (cf. Gn 32, 24ss). Enquanto as pessoas imperfeitas precisam combater vícios, más inclinações, tentações da tríplice concupiscência, as almas de eleição têm de esmagar o que para outros poderia parecer obrigação de estado e até o santo dever de obediência ao diretor espiritual. É verdade que a regra é esta obediência, e a grande Santa Teresa mereceu graça diante de Deus, por haver obedecido ao seu diretor, mesmo quando a aconselhava errado; mas no caso de Madre Francisca, a obediência iria ter resultados irreparáveis, que comprometeriam de modo irremediável a sua vocação.

É o que, infelizmente, não é compreendido: há certas ocasiões em que Deus desafia os seus escolhidos para experimentá-los. Então, já não se trata de escolher entre o bem e o mal, mas entre deveres que se excluem, entre o bom e o ótimo. Se Francisca Carvalho do Rio Negro, em sua particular situação de predestinada, houvesse sido obediente aos desejos de sua família, a Igreja teria hoje uma ordem religiosa a menos.

Divulgação (CC3.0)

Beleza pura, tranquila e firme

Após anos, Francisca conseguiu convencer a todos desta verdade: Deus não a queria para o casamento. Quanto trabalho! Os pretendentes não lhe faltavam. Ela era de uma beleza pura, tranquila e firme. Em sua fisionomia tudo era calmo e preciso: a testa alta, o nariz longo, retilíneo e afilado, a boca rasgada num talho convicto e harmonioso, tudo enquadrado no oval elegante de seu rosto, e iluminado por dois olhos profundos, expressivos e resolutos.

A sua beleza era grande e digna. Nela não havia nada deste “engraçadinho” estandardizado e caricatural de girl cinematográfica, tão do agrado da pusilanimidade do gosto moderno pervertido e diminuído, que só se compraz no miúdo e bonitinho. Mas é preciso reconhecer que a beleza plena e íntegra tem um cunho tão alto de intelectualidade, que constrange qualquer sensualidade…

Francisca vencera a primeira batalha. Agora, no meio-dia dos trinta anos, sua natureza afirmava-se na madureza da idade, ao mesmo passo que sua vida espiritual era um campo fértil e trabalhado. Ei-la livre, inteiramente desobrigada por sua família e por seu diretor, pronta para atender ao primeiro apelo d’Aquele a quem ela se consagrara de corpo e alma!

Este apelo se fez esperar por mais três anos. Francisca se viu na condição de uma pessoa que, após ter sacrificado tudo por um ideal, parece perdê-lo quando pensa alcançá-lo. Seu diretor obrigou-a a fazer várias experiências, mas todas resultaram infrutíferas, sem que se descobrisse o gênero de vida que Deus queria dela. “Eu queria fazer a vontade divina custasse o que custasse, mas era impossível descobri-la!” – havia de escrever mais tarde, nas notas sobre este período de sua vida.

Era o mês de outubro. Francisca voltava com sua mãe de uma viagem ao Brasil, que nunca mais tornaria a ver. Ela não constituía mais do que um ponto perdido na imensidade do oceano, mas um ponto que era toda a predileção da Providência. Em pleno mar, foi convidada por Deus para uma oração mais profunda; e no meio do maior recolhimento, a bruma começou a desfazer-se e ela passou, pouco a pouco, a ver claro sua vocação.

Entrevistas com São Pio X

Luzes extraordinárias começaram a instruí-la sobre o sacerdócio, a hierarquia eclesiástica, o valor do Santo Sacrifício da Missa. E ela compreendeu que deveria ir a Roma falar com o Santo Padre sobre a fundação de uma Ordem religiosa que fosse destinada à oração e à imolação pelas intenções do Papa, pela hierarquia e pelas vocações sacerdotais. Durante o resto da viagem este ideal se foi precisando, completando, esclarecendo, por obra d’Aquele mesmo que o havia inspirado.

Como de costume, não faltaram as contradições. Sua mãe e seu diretor, quando lhes expôs seus desígnios, mostraram-lhe toda a dificuldade de semelhante pretensão. Mas desta vez não quiseram opor-se a nada. Pelo contrário, seu diretor escreveu uma carta de apresentação ao Cardeal Vives y Tuto3, que lhe poderia conseguir a almejada audiência com o Santo Padre.

Enfim, em 13 de dezembro de 1910, foi recebida por Sua Santidade Pio X. O grande Pontífice, que ilustrou a Igreja pela santidade de sua vida, não tardou em perceber a origem sobrenatural dos ideais de Francisca. Concedeu-lhe várias entrevistas e acabou por induzi-la a fazer um ensaio de fundação.

Datam deste tempo suas primeiras companheiras, duas jovens que também se deixaram seduzir pelo elevado objetivo da imolação pelos interesses da Igreja. Para este pequeno grupo, o Santo Padre, em 26 de maio de 1912, concedeu o favor da Consagração das Virgens, o que se realizou pouco mais tarde, em 6 de fevereiro de 1913. E este gérmen minúsculo da Companhia da Virgem fechou-se num apartamento do Corso d’Italia.

Naquele momento as forças da civilização moderna ajustavam os lances gigantescos que deveriam determinar o futuro do mundo, naturalista e pagão; os preliminares da Grande Guerra já estavam concluídos. E no meio desta imensa trama, Nosso Senhor estabelecia a “conspiração mística” de três pobres e frágeis mulheres escondidas e humildes. O tempo, entretanto, haveria de mostrar quem era mais forte.

Madre Francisca de Jesus atingiu aquela plenitude de vida cristã que é uma oposição ao terra a terra cotidiano, à mediocridade cíclica da rotina e uma libertação da vulgaridade do mundo exatamente porque as próprias coisas vulgares, que estão ligadas ao viver terreno, adquirem um sentido novo e invulgar. É uma vida em segunda potência em que as misérias, as tristezas e as alegrias são elevadas a um plano superior e transfiguradas, porque tudo é projetado para um ideal único, ao qual tudo se refere, tudo se sacrifica e tudo se compromete.

Já anteriormente Francisca tivera os primeiros reflexos desta vida maravilhosa. Aos 18 anos fora atingida, pela primeira vez, por aqueles sofrimentos de alma que são espirituais, em que o fiel se descontenta em profundo consigo mesmo, na sua fome e sede de justiça, sofrimentos muitas vezes mais pungentes que as dores deste mundo que não pode compreender tal razão de sofrer. Nesta abjeção de si mesma viveu onze anos, quando, de maneira súbita, foi iluminada por uma onda de consolações interiores, em que ela começou a ser instruída sobre o objeto de sua vocação.

Porém, depois da fundação, isso tudo atingiu a plena maturidade. Toda a sua vida tornou-se extraordinária, mesmo quando resolvia as questiúnculas engendradas pelos equívocos e contradições com que todas as fundações têm de se defrontar.

A Santa Face de Jesus imprimiu-se na parede de sua cela

Ao mesmo passo, voltaram-lhe com redobrada violência as penas interiores. E como se tudo não bastasse, sua saúde comprometeu-se irremediavelmente, pois veio a contrair a terrível moléstia de Basedow. Por causa desta doença teve de sofrer uma séria operação em 1922. Logo no ano seguinte os médicos desesperaram de salvá-la; ela deveria ser operada novamente, desta vez de um abscesso no interior do crânio. Curou-se, entretanto, depois de uma novena a Pio X. Ainda outra vez foi curada de forma milagrosa de um flegmão, por intercessão de Santa Teresinha do Menino Jesus, que lhe apareceu.

Esta avalanche de contrariedades não impediu a fundadora de organizar com cuidado a vida interna de seu convento de contemplativas. Mas ela estava arrasada. Certa vez, em 28 de outubro de 1922, pensou sucumbir aos sofrimentos internos e externos que a submergiam. Num último alento, ainda encontrou forças para fazer este supremo oferecimento: “Entretanto, eu quero sofrer convosco, meu Senhor Jesus”. Neste momento ela viu ao seu Senhor Jesus, a Cruz às costas e seguido por uma turba ululante, que lhe disse: “Quem sofreu tanto como Eu? Siga-me, preciso de ti. Recusarás vir?”

Não havia de ser a Madre Francisca de Jesus quem recusaria segui-Lo. Imediatamente Lhe pede perdão e suplica-Lhe queira infundir nela um verdadeiro amor. Como lembrança desta graça extraordinária, a Santa Face de Jesus imprimiu-se na parede da cela, como outrora no lenço da Verônica. Até hoje lá se pode ver, protegida por um vidro.

Divulgação (CC3.0)
Santa Face impressa na parede da cela de Madre Francisca

Em fins de 1928, diversas postulantes em que ela depositava as maiores esperanças abandonaram o Priorado. Madre Francisca não era pessoa para se mover ao afeto por razões superficiais; mas o afeto, nela, era um sentimento profundo e forte de como só as almas fortes são capazes, sem puerilidades ou sentimentalismos, mas grande, generoso e, mais do que tudo, racional. Aquele forfait4 de suas filhas mais queridas atingiu-lhe o fundo da alma, portanto, e despedaçou-lhe o coração. Uma voz interior se fez ouvir para a consolar: “Serás sacudida tu e a tua barca, mas nem tu nem a tua barca naufragarão!”

Julgava ter perdido a Fé

Assim, a última fase de sua vida foi recoberta daquela poeira dourada, que se encontra nos Fioretti e na Legende Dorée. Os seus menores gestos tinham uma repercussão sobrenatural. Entretanto, acima de tudo isso pairava habitualmente uma obscuridade compacta, de tal forma que Madre Francisca julgava haver perdido a Fé. Ela se sentia tão cética como um livre pensador e, contudo, ela cria porque queria crer, num esforço sobre-humano da vontade, que afrontava a escuridão da inteligência. E o seu sangue a envenenar-se cada vez mais, de modo a colocá-la próxima dos limites da demência.

Datam desta época os mais belos e inspirados escritos de Madre Francisca, pois que as suas trevas eram iluminadas momentaneamente por luzes vivíssimas, que a mergulhavam num mar de felicidade. Esses escritos são um alimento espiritual de primeira ordem, e aproximam, de modo singular, sua autora dos grandes contemplativos que a Igreja produziu.

Certa vez, Madre Francisca de Jesus recebeu uma dessas notícias negras, que revelam adversidades maciças e totais, e exclamou cheia de desalento: “Mas Senhor, que foi que eu Vos fiz, então?” Ao que Jesus Cristo lhe respondeu: “Tu me tens amado”.

Assim discorreu pelos últimos anos de sua vida até que entregou santamente a alma ao Criador, em 28 de maio de 1932. Dois anos antes, ela escrevera a suas filhas: “É preciso amar Nosso Senhor generosamente até a destruição de si mesmo, o que é absolutamente necessário se se quer amá-Lo verdadeiramente.” Pois bem, Madre Francisca fora destruída de tal forma que nela já não havia senão o que o próprio Jesus Cristo edificara; em verdade, ela nascera novamente.

Divulgação (CC3.0)
Madre Francisca em seu leito de morte

A vida dos homens considerada numa clave metafísica e teológica

Há algo na fisionomia desta dama brasileira que agrada sobremaneira e exprime um traço de santidade que deveríamos analisar para compreender um pouco quais são as possibilidades do Brasil. É o tipo do semblante de alguém com intensa vida interior, como eu imagino uma santa. Mas também como considero uma senhora de alta categoria e muito distinta.

Vê-se que é uma pessoa de pensamento. Não quer dizer que ela seja uma pensadora, no sentido técnico e especialista da palavra, mas alguém que pensa em todas as coisas com muita profundidade. Ela é profunda e só se interessa, de fato, por aquilo em que ela pensa em profundidade.

De outro lado, há qualquer coisa de enfático no seu olhar. Ela fixa um ponto ideal para o qual tende com o calor de toda a sua pessoa, o que significa deixar de lado tudo quanto seja bagatela e a si própria também. Não é uma pessoa preocupada consigo mesma nem com o papel que faz diante dos outros, mas há um ponto qualquer no olhar que indica para onde a alma dela ruma. E para isso ela vai sem que nada a detenha.

Ela não me causa a impressão de alguém que evita olhar para o que a rodeia por serem coisas temporais, as quais não se deve fitar. Mas ela olha para as coisas e sabe ver que analogia têm com Deus. E sabe encontrar o traço por onde o Criador se reflete em todas as criaturas. É uma contemplação cujo tema poderia ser a vida dos homens na Terra, a vida temporal, a vida espiritual, a existência terrena vista numa clave metafísica e teológica.

Creio que, por exemplo, ela gostaria de ir à tarde, numa bonita carruagem puxada por bons cavalos, a um ponto qualquer da fazenda dos pais dela, de onde se pudesse apreciar de modo especial um pôr do sol. E dentro do carro dela tirar um terço de madrepérolas ou de lápis-lazúli e calmamente esperar o ocaso. Às seis horas em ponto, ela rezaria o Angelus. Quando o Sol chegasse a certa altura, ela mandaria o cocheiro subir na boleia e tocar para casa.

Combate incessante numa atmosfera de bondade e seriedade

Ela poderia encontrar no caminho algum negrinho naquele estado mais feio em que uma criança pode estar: certo tipo de doença que deixa o ventre obeso, com perninhas e bracinhos esquálidos, cotovelos, mãos, joelhos e pés com uns ossinhos que quebram de encontro a qualquer coisa. Ela mandaria o carro andar mais devagar e perguntaria: “Zezinho, como vai? Você tomou tal pastilha que lhe dei?” E ele maravilhado, pulando de alegria diante dela. Entregando-lhe uma balinha ou uma coisinha qualquer, ela vai embora enquanto ele fica extasiado!

Francisca não teria repugnância do pobre negrinho de nenhum modo, mas sim a incompatibilidade completa com esse estado. Enquanto ela não tivesse feito todo o possível para que todas as crianças da fazenda não fossem assim, e soubessem se apresentar, se arranjar dentro do cabível, ela não sossegaria. Com muita suavidade, muito discreta e com distinção, essa seria uma das lutas da sua vida.

Tendo conhecimento de que se aproximava o aniversário de um colono que vivia numa casa muito miserável, ela avisaria que, para celebrar o fato, poria naquela moradia água encanada.

Quando ela chegasse para participar da festa de aniversário, acionariam a bomba e a água correria pelas instalações da choça; e ela, limpíssima, finíssima, dando muita alegria a todos, mas procurando tirar o prosaísmo do ambiente.

Quiçá daria de presente uma bonita imagem de Nossa Senhora para colocar no lugar. Antes de tudo para aprenderem a amar a Santíssima Virgem, mas de maneira a ser um elemento de regeneração dos padrões da vida dentro da casa.

Mandaria servir uns doces que ela traria de sua residência, o pessoal cantaria um pouco em torno dela e depois ela se retiraria amável. Sua passagem, durante uns quarenta e cinco minutos, seria como um sol que deixaria aquecidas as paredes da humilde habitação durante vários dias.

É como eu a imagino agindo. Isso tudo seria um aspecto dela, sabendo ver tudo de bom a ser estimulado e tudo de ruim a ser censurado. A presença dela deveria ser um combate incessante, intransigente, mas numa atmosfera de bondade e seriedade.

Aos poucos, a seriedade e a dignidade iam entrando. Seria uma contínua elevação de nível. Seria o verum, o bonum e o puchrum5 ensinando como as coisas falam de Deus. Assim eu imaginaria a presença dela numa fazenda.

Mentalidade oposta ao espírito hollywoodiano

Imaginemo-la, em traje de passeio, saindo para visitar uma amiga numa fazenda próxima. Ou recebendo uma amiga mais velha que ela, mas da mesma clave, uma outra ela mesma. Francisca a ajudaria a descer do carro, ambas se abraçariam e passariam para a entrada principal da casa, subiriam a escada conversando, tendo ao lado crianças e pessoas de várias idades.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1984

Como seria a conversa das duas amigas quando uma chegasse à casa da outra? Saudações, saudades, afeto. E logo comunicando o que leu num livro, que pensamento de piedade ou que dificuldade teve, qual graça recebeu… Depois comentam um pouco os fatos do lugar, como a Religião progrediu, como a Fé se desenvolve ali, etc. Por fim, despedem-se e com muita amabilidade se dão adeusinho. Eu assim a veria no Brasil.

Imaginar essa atmosfera e deleitar-se em viver nela é um modo de nos aguçarmos para sentir péssimo o ambiente contemporâneo. Tudo quanto recrimino do espírito hollywoodiano é o contrário dessa mentalidade, na qual se encontra o oposto das brincadeiras e do espírito de interesse. Francisca era uma pessoa despida de amor-próprio.

Haverá quem objete: “Mas aquele ar grandioso dela…”

Ar grandioso não é amor-próprio. Essa é uma objeção “heresia branca”6. Francisca é muito distinta, não tem um pingo de amor-próprio, mas amor à distinção, o que é uma coisa muito diferente de amor-próprio.

O gosto da ninharia, o horror à reflexão, ao desenvolvimento de ideias, o sabor de ser “euzinho”, há todo um curso de pensamentos por onde a pessoa se afasta desse modelo.

Olhar lucidíssimo, objetivo, bem intencionado

O olhar dela me dá a impressão de ser lucidíssimo. Não é o olhar penetrante do detetive, nem do calvinista. É um olhar objetivo, bem intencionado, que pega todas as coisas como são, sem opinião preconcebida, mas, em função daquilo que capta, sente bem as afinidades e os contrastes com o que nela é amor de Deus, isto é, com o verum, bonum, pulchrum, enquanto refletindo o Criador.

Há uma certa profundidade de olhar em que todas as coisas se espelham, e que é, em especial, característica do brasileiro quando ele corresponde à graça. A alma brasileira tem uma vocação para uma certa profundidade cheia de discernimento das coisas do Céu. A tal doçura brasileira não é senão o aspecto doce dessa profundidade.

E é curioso que o brasileiro procura fugir disso o quanto pode, mas é para onde ele deveria rumar.

A santidade é para todas as nações, de todos os modos, mas assim como há uma diferença entre os Santos europeus e os da Ásia Menor, nós poderíamos imaginar um Santo brasileiro. Eu imagino a santidade brasileira na linha da Madre Francisca do Rio Negro. Olhando para ela eu diria: “Isto é o Brasil totalmente.”

(Extraído de O Legionário n. 381, 31/12/1939 e de conferência de 18/3/1984)

1) Réginald Marie Garrigou-Lagrange, O.P., um dos maiores teólogos do século XX.

2) Manuel Gomes de Carvalho Filho, primeiro e único Barão do Rio Negro, filho dos primeiros barões do Amparo, casado com Emília Gabriela Teixeira Leite.

3) José Calassan Vives e Tuto, OFM.

4) Do francês: ato condenável.

5) Do latim: o verdadeiro, o bom e o belo.

6) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

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