jueves, noviembre 21, 2024

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O perigo começa com a vitória!

Analisando o processo de decadência da Idade Média, Dr. Plinio explica que tal decadência se operou por meio de uma profunda transformação das mentalidades.

Dividida em dois períodos, a Idade Média apresenta um primeiro momento onde as lutas para a constituição da Cristandade, através da conversão dos povos e expansão do Cristianismo, operaram a consolidação da atmosfera triunfal da Santa Igreja Católica.

A decadência da Idade Média operou-se por meio de uma crise de mentalidade, ocasionada pelo orgulho e pela sensualidade.1

Os efeitos da sensualidade tiveram sua raiz no século XIV, quando começou a se observar na Europa cristã uma profunda transformação de mentalidade que, ao longo do século XV, cresceu cada vez mais em nitidez.

É importante observar que não foi devido a uma doutrina. Doutrina e mentalidade se diferem. Refiro-me mais propriamente a um estado de espírito, a uma mentalidade, e não a uma doutrina. Essa mentalidade nasceu de um modo confuso, mas à medida que cresceu foi se tornando mais nítida.

A decadência da Idade Média foi decorrência de uma transformação da mentalidade

Quais são os elementos dessa mentalidade?

Primeiramente, um apetite de prazeres terrenos, que tende a se transformar em ânsia; um apetite consentido que ao se tornar ânsia tem manifestações mais nítidas do que as do simples apetite.

Em segundo lugar vem a necessidade das diversões que tendem a se tornar mais complicadas, mais suntuosas, mais frequentes, com reflexos nos trajes, nas maneiras, na linguagem, na literatura, na arte e em uma vida cheia de deleites e fantasias dos sentidos, provocando a sensualidade e a moleza, o perecimento da austeridade e da seriedade, a mania de tornar tudo risonho, gracioso e festivo. Os corações se desprendem gradualmente do amor ao sacrifício; é a Cavalaria que se torna amorosa, a literatura que isto reflete e, como consequência, o excesso de luxo e a avidez de lucro.

Tudo isto é característico não de uma doutrina, mas de uma mentalidade. A doutrina se lhe segue.

Além da mentalidade, havia também o clima moral.

Mentalidade e clima moral são conceitos muito afins, que se completam. Então, não mais apenas a sensualidade impera, mas também a vaidade e o orgulho penetram mais diretamente no campo dos princípios e da doutrina. São disputas aparatosas e vazias, exibições fátuas de erudição e velhas tendências filosóficas que renascem.

Primeiro período: lutas para a constituição da Cristandade

Poderíamos dizer que quem quisesse fazer uma História da Europa, poderia dividi-la em dois períodos. Em primeiro lugar, houve um período em que a Europa viveu em meio ao perigo, e a sua sobrevivência era muito duvidosa, sendo ameaçada por inimigos de toda ordem; depois houve um segundo período em que a Europa se firmou, derrotou esses adversários e a partir de então começa uma expansão que tem o seu apogeu no século XIX e o domínio de quase todo o mundo pelo colonialismo europeu.

Reportemo-nos à Europa de Carlos Magno ou, logo após, à do século IX.

Os árabes, dominando a Espanha, constituíram um perigo permanente junto aos Pirineus. Efetuando invasões no Sul da França e na Itália, eles submetiam todo o litoral mediterrâneo do império de Carlos Magno a inúmeras provações.

Tanto os normandos quanto os germanos constituíam constante perigo à Cristandade.

Os famosos leões de São Marcos, que hoje estão em Veneza, estiveram outrora em Bizâncio. Pois bem, em seus focinhos há inscrições que permaneceram indecifráveis até se conhecerem os caracteres normandos. Ou seja, chegando a Constantinopla, os normandos marcaram injúrias nos leões. Tem-se, por estes fatos, que bem mostram a penetração normanda, uma ideia do seu enorme perigo. Carlos Magno, que nos parece haver reinado na paz do seu poder, pelo contrário, teve uma vida repleta de aventuras.

Conversão de povos e expansão da Cristandade com a consolidação da atmosfera imperial da Santa Igreja Católica

Esse destino cheio de provações para a Europa permaneceu até o século XIII, quando, podemos dizer, ela tornou-se vitoriosa. Mas em que sentido? Os árabes não foram expulsos da Espanha, mas sua influência nitidamente decadente é sinal evidente de que não venceriam. Em toda a costa mediterrânea estão também os árabes tão decadentes que, no século XV, os turcos derrotá-los-iam rapidamente.

De outro lado, os germanos foram convertidos; os húngaros, que constituíram outrora grande perigo, abraçaram também a Religião Católica; os prussianos, lituanos, que foram também perigosos, e contra os quais haviam combatido os cavaleiros da Ordem Teutônica, estão em vias de conversão; os normandos, mesclando-se, confundiram-se com outros povos, entraram na Inglaterra e já não oferecem perigo.

A sensação da Europa é de que domina completamente a situação. Começa, então, a surgir um estado moral e social vitorioso, a chamada atmosfera imperial ou triunfal da Idade Média; Nosso Senhor Jesus Cristo passa a ser apresentado nas catedrais não mais apenas como um Mártir crucificado e sofredor, mas como um Rei cheio de glória, e na Liturgia a afirmação do seu triunfo por todos os séculos, no mundo, passa a ter enorme importância.

Mas, acompanhando esta ideia, vinha, muito justificadamente, a do triunfo dos cristãos, e por detrás desta a concepção de que para todo o sempre o poder de Jesus Cristo estava firmado na Terra; o mais glorioso e mais civilizado dos continentes era cristão; tinha-se aberto um reino de paz na Terra, e as promessas do Evangelho iam ser realizadas com o triunfo da Cristandade.

Ora, para a transição que se irá operar, é preciso notar que o homem medieval sentia bem o triunfo em que esta pujança iria dar. Não nos esqueçamos de que depois veio a queda de Granada, a descoberta da América e seu povoamento; veio a formação do Império Português Colonial e o domínio do Oriente. Estava-se, então, na aurora de uma era de prodigiosa expansão europeia. Eles sentiam isso, e a atmosfera era de grande esperança, de grande expectativa, de grande alegria.

Pacificação dos espíritos preparando o apodrecimento das resistências

Ao mesmo tempo em que se delineia esse triunfo europeu, os costumes vão se mitigando, as guerras privadas se tornam menos numerosas, começa uma era de doçura e suavidade. Os católicos começam, então, a afrouxar seu modo de viver. E é propriamente nessa descompressão que se delineia um fenômeno aparentemente legítimo, lícito.

Cavaleiro medieval decadente

O homem medieval passa a organizar sua vida na qual o prazer tem certo papel. Começa-se, na vida social, a fazer festas mais numerosas, mais brilhantes; as canções populares tornam-se mais alegres e joviais, não mais apenas guerreiras; na arte a produção é mais risonha. E essa suavização dos costumes segue-se até os séculos XIII e XIV.

Depois surgem fenômenos mais complexos e começa a decadência. Poderemos fazer o histórico deste declínio, se nos reportarmos a um esquema que parte de três princípios, que adiante explicitaremos melhor.

Nada de extremo, quer no sentido do bem, quer no sentido do mal, se faz repentinamente. Ora, depois desse passo, a Europa se despenca numa crise gravíssima, que não pode ter aparecido de repente. Ela teve seus primórdios muito discretos, antes de se tornar tão grave. Este é um princípio de vida espiritual do qual não podemos abstrair.

Princípios de vida espiritual aplicados aos povos

Podemos aplicar nos problemas de vida espiritual dos povos os mesmos princípios que se aplicam à vida espiritual dos indivíduos. Poderíamos falar para um povo, coletivamente, em paixões, em livre-arbítrio, em ascese, nas três vias da vida espiritual, purgativa, iluminativa, e até mesmo unitiva. Podemos, portanto, fazer uma análise histórica, baseada nos princípios de vida espiritual aplicados aos povos.

Há um ótimo método para sabermos se um conjunto de fatos históricos está decifrado. Trata-se de aplicar uma cifra ao que está enigmático. Se a cifra der sentido a tudo, quererá dizer que os fatos estão decifrados. Ora, com os princípios da vida espiritual é possível construir uma hipótese lógica a respeito da queda da Idade Média; aplicá-los-emos e veremos explicarem-se os fatos.

Uma fina observação psicológica preparando o terreno para a explicação das teses da “RCR”

Deixemos a Idade Média um pouco à parte e consideremos os problemas de vida espiritual num homem. Sabemos que cada condição de vida tem algo que, pelo menos acidentalmente, favorece o bem e dá também ocasião ao mal. Reciprocamente, as melhores condições de vida têm algo que também dão ocasião ao mal.

Examinemos um “apache”2: vive em péssimas condições e é um homem que faz o mal, por definição. Mas a sua vida lhe dá oportunidade de praticar algumas ações, como a coragem, que, embora não sendo virtude, tem algum aspecto de virtude.

Pelo contrário, na mais santa das vidas, na de um religioso em estado de santidade, há certas ocasiões propícias ao mal.

É evidente a solidariedade que existe entre todas as virtudes e entre todos os vícios. Quando o homem progride numa virtude, progride em todas; quando progride num vício, progride em todos.

Imaginemos a história da regeneração de um bandido, de um gângster que seja o pior que se possa conceber. Ele tem certo amor pelo risco, pela luta e pelo futuro incerto, tem certa “varonilidade”, sem ser naturalmente, a verdadeira, e pode até ter certa piedade. É o caso de François Villon3, que escreveu uma Balada a Nossa Senhora. Não se pode dizer que nestas atitudes haja verdadeira piedade, mas há algo disto, e até de elegância moral.

A verdadeira conversão distingue-se da “meia-conversão”

Suponhamos que esse gângster de que tratávamos passe por um fenômeno de maturação. Começa a ficar ajuizado e a passar da fase má de ladrão para a fase boa; e pensa então que muito mais razoável é a segurança, o verdadeiro bem da vida, depois a fartura e por fim o repouso. Deixa sua vida e vai ser agente de correio numa cidade interiorana muito pacata. Torna-se homem honesto, traz suas contas com muito critério, vive como um burguês. Regenerou-se; não achou bom cálculo ser gatuno.

Com esta conversão a meias, ele perde seus defeitos de ladrão, mas perde também algumas qualidades. Ele amolece. De generoso que era, torna-se avarento e fica deselegante. Pode vir a ser piedoso e — é incrível — pode até ficar em estado de graça. Mas dele nunca sairá uma balada a Nossa Senhora. A piedade dele pode ter crescido em raízes, mas um certo jorro, um certo fogo ela não mais terá. Esta é, entre muitas outras, uma das evoluções possíveis.

Se fosse verdadeira conversão, essa transformação seria bem diferente. O ladrão regenerado não passaria nunca de um egoísmo para outro, porque, absolutamente, isto não é regeneração autêntica. Ao contrário, ele deveria passar do egoísmo para uma atitude de humildade diante de Deus e de uma verdadeira abnegação. Então, seria um homem que somaria ao seu progresso moral as virtudes de um novo estado, as qualidades de outrora, que passariam, então, a serem autênticas qualidades. Seria o seu caminho para a santificação.

A decadência da Idade Média através do afastamento do sacrifício

Deu-se na Idade Média um fenômeno semelhante e muito importante para nossa meditação, porque poderá dar-se no Reinado de Maria, no momento do triunfo sobre os inimigos da Igreja.

O homem medieval passou a organizar sua vida em função do prazer; as canções populares tornaram-se mais alegres e risonhas; as festas passaram a ser mais numerosas e brilhantes…

Na Idade Média, para os católicos de Fé muito intensa e de grande espírito de sacrifício, faltou algo muito profundo. Aceitavam a cruz e a carregavam garbosamente, mas não estavam compenetrados, de um modo consciente e explícito, de que a cruz não era na vida apenas uma contingência irremediável, devido às árduas circunstâncias que não conseguiam remover; de que a vida trabalhosa e difícil da Cristandade era inevitável, não porque há mouros, pagãos e inimigos de outra natureza, mas porque a vida do católico é penosa em sua essência mesma, após o pecado original, e corre sobre um leito falso quando não é árdua.

Cessadas as provações, deveriam ter entrado na vida nova com um verdadeiro pânico de perderem o amor à cruz, um verdadeiro pânico de perderem o senso do sacrifício.

O perigo começa com a vitória!

Tratava-se de se organizarem dentro da vitória com maior temor ainda do que quando na luta, percebendo que teriam dificuldades muito maiores para perseverar no período da descompressão do que no da provação.

Deveria ter sido esta a matéria para que os púlpitos ressoassem, os confessionários apertassem as cravelhas, para que todas as pessoas responsáveis pela vida espiritual da sociedade cristã se manifestassem insistentes: O perigo vem com a vitória! É exatamente esta a hora do desfibramento. Ganhar a vitória depois de ter vencido a guerra, em circunstâncias destas, é o grande problema.

Em tudo quanto folheamos a respeito dos séculos XIII e XIV, nada encontramos que indicasse o receio do abuso da vitória; não encontramos a ideia explícita de que nesta hora é preciso tomar redobrado cuidado. A vida do católico é uma luta perpétua, e se não houver luta ele regride! Não havendo luta é sinal de que a derrota começou!

Continua no próximo número…

(Extraído de conferência de maio de 1959)

1) Cfr. Revolução e Contra-Revolução, cap. III, 5, A

2) Bandidos que viviam nos bueiros de Paris, no início do século XX.

3) François Villon, pseudônimo de François de Montcorbier ou François des Loges (1431-1463), foi um dos maiores poetas franceses da Idade Média. Ladrão, boêmio e ébrio, é considerado precursor dos poetas malditos do Romantismo.

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